9 de dezembro de 2009

Bolivarianismos


(José Mujica, presidente recém eleito do Uruguai,
e Lula, em encontro recente. Fonte: blog do Planalto)


Acabo de ler o seguinte texto, num editorial da Folha de São Paulo:

A Constituição [a nova carta aprovada na Bolívia] prevê que as altas cortes da Justiça sejam eleitas por voto popular, o que pode viabilizar o controle, por parte do grupo de Morales, dos três poderes.

Cada vez me surpreendo mais com a concepção original do que seja democracia por parte de vastos segmentos da elite brasileira e latino-americana. O "grupo de Morales" controla os poderes através do voto popular, assim como as ditaduras que assolaram o continente por décadas controlaram-nos pela força bruta. Por que a imprensa brasileira defendeu o controle dos três poderes por militares despreparados, reacionários e truculentos e ataca um ponto sagrado da democracia, que é o povo exercer o poder através do voto?

Naturalmente, os juízes terão que ser aprovados por concurso e ser preparados para a função que deverão ocupar, mas a introdução do voto popular na escolha dos ministros da suprema corte permite à população participar mais ativamente da vida democrática nacional. Além disso, torna a sociedade mais autônoma em relação às decisões do presidente da república, pois, no Brasil, os juízes são apontados pelo mandatário máximo.

*

Observo sempre que há segmentos que esnobam solenemente qualquer tentativa de avanço nas constituições latino-americanas, ao mesmo tempo que permanecem bajulando colonialmente as instituições do primeiro mundo. Não vejo porque países onde vige a monarquia, e que vivenciaram, no século XX, os maiores genocídios da história do mundo, tenham que ser nossas referências. Aliás, há sim alguns pontos onde os países europeus podem ser modelos para a América Latina: a valorização do trabalhador, que ganha salários decentes; a existência de vastos programas de assistência social, todos extremamente respeitados pelas elites e pela classe média; um sistema de educação pública de primeira categoria.

Enfim, é muito triste notar que as elites reacionárias deste lado do Atlântico criaram uma ideologia esquizóide, doentia, irreal. Acreditaram numa utopia mercadológica que nenhum país rico jamais implementou. Nem os Estados Unidos, onde a presença do Estado, ao contrário do que se propaga, sempre foi determinante. Segundo Chomsky, a maioria esmagadora das descobertas científicas realizadas nos EUA nasceram em estatais ou da cabeça de funcionários formados no serviço público. Além disso, o Pentágono, a Nasa, além de dezenas de outras agências federais, possuem uma forte autonomia orçamentária, e constituem o orgulho dos americanos. Nunca se pensou em privatizá-los, apesar de que o neoliberalismo de Reagan, Bush pai e Bush Filho, e sua turma, de fato conseguiu transferir para segmentos privados enormes nacos da indústria bélica, permitindo o surgimento de um lobby de guerra que hoje parece fora do controle, comprando parlamentares, membros do governo e jornalistas, sistematicamente, para seguir desestabilizando a paz mundial e obrigando o presidente americano a assinar cheques cada vez mais polpudos.

Obviamente é preciso considerar que o Estado, em si, não cria nada. Para que tenhamos agências públicas que produzam indivíduos criativos, é preciso driblar a burocracia, respeitar a liberdade dos funcionários, incentivar a formação.

*

Ah, lembrei de uma coisa que queria escrever há tempos. As campanhas auto-desmoralizadoras dos jornalões, sobretudo do trio ditabranda (Folha, Estadão e Globo), tem algo de muito estranho e suicida. Tudo bem que a imprensa escrita vive uma crise nos Estados Unidos, mas eles experimentam por lá uma realidade social oposta a nossa. Enquanto lá existe uma situação de empobrecimento e concentração de renda, aqui temos vastos setores da população se integrando à classe média e adquirindo maior poder aquisitivo. Não seria comercialmente lógico, portanto, que os jornalões procurassem lucrar com esse movimento? Muitos empresários enxergaram a oportunidade e ganharam muito dinheiro. Por que a Folha não seguiu esse caminho, tão natural, tão saudável e capitalista?

O que parece, francamente, é que a esses jornais não interessa conquistar um vigor financeiro autônomo: diante das negociatas sem licitação que vemos ocorrer entre governadores e grupos midiáticos, a impressão que temos é de que há um neoliberalismo sem liberalismo algum, pois continua visando exclusivamente manter empréstimos e financiamentos a juros subsidiados (ou mesmo a fundo perdido), através da eleição de políticos aliados, que fazem assinaturas em massa para o Estado e realizam grandes aquisições editoriais.

Certa feita, fiz um trabalho sobre o mercado de livros no Brasil. Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi o fato de o governo, principalmente através do Ministério da Educação, é de longe o maior comprador de livros do país.

Esse poder estatal, conferido a seus representantes pelo voto popular, confere ao Estado um papel muito importante na construção de um ideário político e cultural entre a população. O papinho de intervencionismo estatal, importado dos ianques, não cola por aqui, porque, lá nos EUA, eles tiveram uma democracia estável de mais de duzentos anos, o que permitiu a criação de um Estado poderosíssimo que, em função da instabilidade política do planeta, tornou-se exageradamente militarizado, policialesco, com forte presença igualmente no setor cultural. Eles pecaram talvez por excesso, assim como alguns países da Europa. Mas o resultado, afinal de contas, foi positivo: tornaram-se países ricos e desenvolvidos. Por que o Brasil quer ser tão diferente? Por que o Estado aqui tem que ser sempre negativo?

4 comentarios

O Anão Corcunda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
O Anão Corcunda disse...

Cabe ressaltar que os ministros do STF brasileiro são sabatinados pelo Senado Federal, e a escolha do Presidente da República leva isso em conta. Ou seja, ao contrário do que muitos vem falando, não há tanta unilateralidade assim nessa escolha, e representantes do povo podem que não o Presidente podem vetá-lo. Curioso é que essas críticas tem aparecido mais nos últimos oito anos que nos oito anteriores...

Acho que a instituição dessa espécie de "sabatina popular" que ocorre na Bolívia é bem interessante, e poderia ser trazida para o Brasil, com as mudanças que achássemos importantes. Por que não uma lista tríplice dos mais votados pelo povo para a escolha do presidente? Seria uma outra forma de pôr à prova o caráter democrático do governante. Aliás, esse mecanismo de lista tríplice é bastante usado no nosso país, em níveis federais e estaduais: seria um excelente estudo sobre democracia se averiguássemos quem são os governantes que mais escolhem os mais votados...

Acho que vamos precisar, também, alguma hora, dialetizar a questão do sufragismo. Penso nisso por uma questão: será que deveríamos incentivar um plebiscito para a aprovação da pena de morte no Brasil? A tendência é que ela seja aprovada por grande maioria... quando é que um plebiscito vale a pena?

Unknown disse...

A respeito do mesmo editorial, eu mandei o seguinte comentário para a FSP, no mesmo dia:

"Caro Ombdsman,

Não entendo como um jornal que se jacta independente faz um editorial e desconhece fatos da Bolívia que qualquer pessoa pode ter acesso, desde que procure fontes como http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRSPE5B40AC20091205

É repetição da postura que esse jornal teve quando da instituição dos Programas Sociais do Governo Lula, criticando-os acerbamente. A contragosto (ou seria melhor, envergonhada), essa FSP reconhece hoje que o mercado interno foi o responsável pelo desempenho do Brasil na crise. Não é o mesmo caso do Bolívia?

O que impede a FSP de analisar com independência (que no discurso lhe é tão cara), fato como esse?"

A resposta protocolar do Ombdsman foi:
"Obrigado pelas suas observações, que estou encaminhando aos jornalistas responsáveis pela seção para que as levem em conta.

Um abraço,

Carlos Eduardo Lins da Silva

E mais não foi dito e nem vai ser, claro. O que acontece, é que com essa ampla reforma nos três poderes, golpes "maquiados" como o de Honduras ficam inviabilizados.

Daí a grita!!!

Anônimo disse...

Fiquemos de olho, a direita Boliviana, assim como a Hondurenha, vendo a impossibilidade de voltar ao poder, pode seguir a receita Hondurenha

Ana

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