18 de maio de 2011

Arquivo: A luz irrompe onde nenhum sol brilha

Tô resgatando uns posts (nem tão) antigos, publicados no meu outro blog, o Hell Bar. Faço isso de vez em quando para concentrar todos os textos no Óleo. Esse aí, de 2006, recebeu um comentário hoje, então me lembrei dele e resolvi publicá-lo aqui. Naquela época, eu tinha dois blogs, um mais literário, o Hell, e outro mais político, o Óleo. Mas foi ficando meio esquizofrênico, como se eu tivesse duas personalidades, então resolvi focar num blog só, mesmo sabendo que poderia perder alguns leitores, que estranhariam os textos políticos.


Esse cara é o Dylan Thomas, poeta britânico nascido em 1914. Não me lembro direito como o conheci. Acho que foi através do conto O Perseguidor, de Cortázar, no qual o personagem principal, o saxofonista Johnny Walker - inspirado no músico realíssimo Charlie Parker - é leitor assíduo de Dylan. Ou então foi através de alguma biografia de Robert Allen Zimmerman, nosso querido Bob Dylan, que homenageou seu ídolo tomando-lhe emprestado o sobrenome. Vale dizer que o músico Dylan fez jus ao empréstimo. Quem sabe um dia eu, enchendo o saco do meu próprio sobrenome, não resolvo me chamar Miguel Dylan? Não, melhor não.

Na época em que eu lia Dylan pela primeira vez, no início dos 90's, aconteceu uma coisa chata. Meu pai teve um infarte e foi hospitalizado. Eu estava fora de casa, acho que em outra cidade. Voltando ao Rio, peguei um ônibus para visitá-lo no CTI. Consegui a proeza de escrever um poema no próprio ônibus. Um poema inspirado em Dylan Thomas, no texto intitulado A morte perderá seu domínio. Lembro que foi uma poesia muito forte, ou pelo menos me pareceu assim (infelizmente, perdi esse poema), que tinha o objetivo bem ambicioso de salvar a vida do meu pai. Minha poesia falava algo como não se deixar levar pelo caminho mais fácil, não se deixar seduzir pelo canto sedutor da morte. Não pude vê-lo naquele dia, mas entreguei o poema ao médico, para que repassasse a meu pai após a operação de safena. Quando retornei ao hospital, no dia seguinte, seus olhos brilhavam, febris, vivíssimos. Disse-me que tinha amado o poema. Aquilo foi importante pra mim. Tive a impressão de que o poema ajudou-lhe num momento difícil. Ele viveu, depois disso, muitos anos. Ainda pôde trabalhar muito e consumir muitos litros de uísque.

José Barbosa do Rosário, meu pai, foi um grande sujeito. Exagerava na bebida, mas sempre foi muito trabalhador e absolutamente íntegro. Chegou do sertão mineiro com 21 anos de idade e algumas notas escondidas na cueca. Nada ver com aquele infeliz assessor do irmão do Genoíno, pego com cem mil dólares no cuecão. Meu pai carregava seus parcos recursos num bolso costurado na roupa de baixo porque minha avó achava - com razão - que o Rio tava cheio de ladrão.

O velho teve dois grandes sofrimentos na vida. Um foi a destruição mental do irmão Cirilo, internado aos vinte anos numa clínica psiquiátrica obscurantista que torrou seus neurônios de tanto choque elétrico. O tio Cirilo ainda está vivo. Eu e meu pai fomos visitá-lo em vários hospícios dos arredores do Rio.

O segundo trauma foi a morte bárbara de seu outro irmão, Francisco, torturado medievalmente por policiais da nona DP do Rio de Janeiro, no finalzinho da ditadura, 1981, o que motivou meu pai a escrever seu único livro, Quando a polícia mata.

Dia desses conto mais histórias do meu pai e dos meus famíliares do Triângulo Mineiro. Adianto só que um tio avô meu era jagunço autônomo, cobrava para matar e colecionava orelhas de suas vítimas numa bolsa de couro que levava sempre consigo, à guisa de curriculum vitae.

É isso, deixo vocês agora, com 2 poemas do Dylan Thomas, tirados de um site com excelentes traduções de Ivan Junqueira e Fernando Guimarães. Para os feras do inglês, pode-se ler originais do poeta por aqui.
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A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.

Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.

A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.

A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde não existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se nas pálpebras.

A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

( tradução: Fernando Guimarães)

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E A MORTE PERDERÁ O SEU DOMÍNIO

E a morte perderá o seu domínio.
Nus, os homens mortos irão confundir-se
com o homem no vento e na lua do poente;
quando, descarnados e limpos, desaparecerem os ossos
hão-de nos seus braços e pés brilhar as estrelas.
Mesmo que se tornem loucos permanecerá o espírito lúcido;
mesmo que sejam submersos pelo mar, eles hão-de ressurgir;
mesmo que os amantes se percam, continuará o amor;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá o seu domínio.

E a morte perderá o seu domínio.
Não hão-de gritar mais as gaivotas aos seus ouvidos
nem as vagas romper tumultuosamente nas praias;
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma flor
erguer a sua corola em direcção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, hão-de descer
como pregos as suas cabeças pelas margaridas;
é no sol que irrompem até que o sol se extinga,
e a morte perderá o seu domínio.


( tradução: Fernando Guimarães)



PS: Por último, pero not least, dêem um chego no site do Claudinei, para ler o texto do Mirisola sobre a Flip.

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