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5 de agosto de 2013

Um conto de protesto

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A balada do menino sem bandeira


 


Por Miguel do Rosário

Para o dileto amigo N.R.

Norberto caminhava rápido pelo viaduto, na direção da esplanada. Decidira ir a pé por causa do trânsito. Os carros eram um bando de formigas bloqueadas por uma linha de veneno. Sentiu alívio.

Curioso. Todos aqueles motoristas aflitos, querendo chegar logo em seu destino e eu tomado por um inefável bem estar por não estar entre eles. No mesmo momento, qual vingança divina contra seu pecado, sentiu uma dor aguda no joelho direito. Foi obrigado a reduzir o passo, e por fim parou junto à murada do viaduto.

Então reparou que o congestionamento era maior do que o normal. E havia também mais gente. Jovens, legiões deles. É uma passeata, concluiu, enquanto examinava o celular. Recebera uma mensagem. A reunião fora adiada em meia hora. O outro, presidente de uma fundação, também enfrentava problemas para chegar. Puxou um maço do bolso e acendeu um cigarro.

A dor no joelho sempre o arremessava violentamente ao passado, ao tempo da colheita de café. Um garoto de onze anos trabalhando catorze horas por dia. Foi lá que ferrara o joelho. Voltava pra casa uma noite tão exausto que desmaiou na descida de um barranco e se feriu.

Mais jovens chegavam, portando pequenos cartazes. Alguns vinham cantando. Norberto sentiu as lágrimas enchendo-lhe os olhos, mas logo sorriu, irônico. Não chorava de emoção pela vitalidade democrática que assistia, os jovens marchando sem medo em prol de um país melhor. Chorava por si mesmo, imaginando tolamente que a passeata era um protesto contra o que ele mesmo havia sofrido.

Respirou fundo o ar puro e seco do Planalto Central e experimentou voltar a andar. A dor diminuíra. Caminhando devagar chegaria a tempo, sem sofrer desnecessariamente. Chega de sofrimento, quase gritou em silêncio, e riu sozinho. Entrou por um atalho, desceu por uma escada e chegou à esplanada.

Agora estava ao lado dos manifestantes. Andava lentamente, tentando não mancar, olhando os cartazes. Mais quinze ou vinte minutos e chegava a seu destino. Mais quinze e vinte... anos e chegaria... Onde, exatamente? Não seria o mesmo objetivo de todos aqueles meninos e meninas? Chegar em algum lugar seguro e confortável?

Lembrou, irritado, da discussão na véspera, num restaurante. Aquele cara bêbado cagando teorias e "verdades". Talvez tivesse alguma razão, mas a perdeu totalmente porque se expressava de um jeito histérico.

Vá se foder!

Um grupo de garotos que seguia à sua frente se voltou assustado. Ele balançou as mãos, sorrindo humildemente. Tinha falado sozinho.

A multidão engrossou. As cantorias aumentaram. Norberto tentou prestar atenção na letra de uma delas. Ih, fodeu, o povo apareceu! 

O ar também parecia ter engrossado. Um oxigênio mais denso e mais perigoso. Antes do sol nascer, subia na boléia do caminhão para colher café na fazenda, mas voltava a tempo de escutar o bêbado vomitando teorias num restaurante do Rio de Janeiro. O povo gritava mais alto, ele não entendia o que o bêbado dizia. Movia a perna direita, a constante fisgada de dor fazia explodir lembranças da fazenda onde trabalhava, o sol forte castigando-lhe a cabeça. Movia a perna esquerda, o jantar da véspera, o bêbado arrogante cospindo teses.

Distraiu-se olhando um grupo de garotas realmente bonitas que marchavam um pouco mais à frente. Um helicóptero cruzou o grupo, provocando uma longa onda de vaias e gritos.

Vá se foder!

Desta vez, havia só pensado. Só que não sabia para quem se dirigia. Não pensava mais no bêbado. Nem no helicóptero, nem na fazenda. Apenas tinha vontade de mandar alguém se foder.

Então começou a chorar. Tão forte que um grupo logo o abordou, preocupado. Uma moça segurou seu braço, maternalmente.

- Estou bem, estou bem.

Seguiu andando ao lado do grupo, que instintivamente o adotara. A moça lhe dera o braço. Ele sentiu-se perdido, como se não tivesse idade nem para colher café. Ou talvez já tivesse, mas agora se recusava a sair de casa. Estava frio, muito frio, e ele tinha fome.

Os jovens gritavam à sua porta, pedindo que saísse, que era hora de trabalhar. Ele queria continuar dormindo, apesar do estômago vazio. Mas os gritos não paravam. Quando ele sai de casa, percebe que os jovens na verdade gritam a seu favor. Eles querem que ele volte pra casa. Uma garota se aproxima e lhe oferece um sanduíche. Outro, uma xícara de café com leite.

O helicóptero retorna, mas desta vez a massa reage com indiferença. Norberto pede licença à garota que o leva pelo braço e se despede. Havia chegado ao local de encontro. Ainda cogita entregar um cartão de visita à ela, mas acha melhor não. Ela devia ter menos de dezesseis.

Enquanto se encaminha ao Ministério, ouve a cantoria se agigantar na avenida principal da esplanada. No caminho, pouco antes de chegar à portaria, vê um menino tomando conta de uma banquinha de salgados e doces. Um menino da sua idade quando colhia café no norte de Minas. Aproxima-se, pega um amendoim e entrega-lha uma nota de vinte reais.

- Pode ficar com o troco.


O garoto lhe responde com um sorriso cúmplice. Eles se reconhecem. São a mesma pessoa.

10 de março de 2012

Os paradoxos de Rabelais

17 comentarios

(François Rabelais, França 1494 - 1593)


Sabe como a capital da França recebeu o nome de Paris? Segundo Rabelais, o fidalgo Gargantua chegou a cidade pela manhã e provocou tal sensação, em virtude de suas proporções físicas literalmente gigantescas, que o povo lhe seguia de uma parte a outra. Tentando fugir da perseguição, Gargantua sobe ao cume da Notre Dame, e contempla a multidão cada vez maior que se aglomera embaixo. Então, ele desabotoa a braguilha, põe para fora seu bilau e despeja uma enorme torrente de urina, causando uma inundação que afoga milhares de pessoas. Os únicos sobreviventes são os que logram refugiar-se nas partes altas de Montmartre.

Indagado por um de seus acompanhantes porque havia feito aquilo, Gargantua responde que foi somente "par ris", em francês arcaico. Pra rir. Por troça. Daí veio o nome de Paris.

A própria história é uma grande piada, como de resto é toda a literatura rabelaisiana. Por razões que não me cabe explicar no momento, sou um francófilo e um estudante apaixonado de história e literatura francesa, e há dois anos li pela primeira fez o Gargantua, que junto a Pantagruel (que é o pai de Gargantua), são as duas obras-primas de François Rabelais, cujo papel na história da cultura gálica é similar ao de Dante na Itália, Shakespeare na Inglaterra, e Camões em Portugal.

Mas Rabelais é, sobretudo, um magnífico sacana, o que foi uma surpresa para mim, que sempre ouvira falar nele apenas como um clássico tradicional. É uma leitura divertida, despretensiosa, onde topamos com todo tipo de pornografia, escatologia, guerras absurdas, comilança excessiva e, sobretudo, uma defesa incondicional do uso imoderado do vinho.

É realmente divertido pensar no que significou este livro numa época terrivelmente conservadora (século XVI). A obra, claro, foi rechaçada por boa parte do stablishment, em especial os religiosos. Mas outros defenderam Rabelais, inclusive alguns representantes mais esclarecidos do clero. Também me diverte pensar que a Igreja Católica já teve uma ala progressista em termos de cultura, como se pode constatar visitando a Capela Sistina.

Como uma obra assim passou a representar o marco inaugural do renascimento francês, um dos pilares deste humanismo alegre e irônico - e talvez por isso mesmo tão poderoso - que iria caracterizar a literatura francesa a partir de então?

Mas eu não vim aqui falar apenas de Rabelais, e sim procurar estabelecer uma ponte entre seu humor libertário, corrosivo, quase diabólico; seu entusiasmo transbordante pela vida; sua verve incendiária, que era ao mesmo tempo maligna, esperançosa, sarcástica e humanista; uma ponte entre Rabelais e o mau humor da literatura política contemporânea.

Claro, é uma comparação puramente retórica. Os contextos são outros. No tempo de Rabelais, havia uma elite escrevendo para elite. O próprio Rabelais pertencia naturalmente a um estrato social superior. Mas os historiadores atestam, por outro lado, a enorme popularidade de Rabelais junto aos leitores mais humildes, ou mesmo entre analfabetos, que apenas ouviam falar de suas histórias. Ele era engraçado. Zombava dos grandes. Inventava causos incríveis e mágicos. Aliás, Rabelais baseia-se, para escrever suas obras, em folhetins extremamente populares na época, que narravam peripécias e trapalhadas de seres gigantes.

Na verdade não pretendo fazer nenhuma comparação, apenas iluminar um contraste. No tempo de Rabelais, havia uma censura drástica a qualquer crítica abertamente política. Com sua literatura quase desesperadamente hilária, Rabelais expressa, a seu jeito, as dores e misérias de seu tempo. O que me impressionou foi que o mundo levou a sério, muito à sério, a ponto de serem escritos volumes e volumes de "estudos rabelaisianos", todas aquelas histórias sobre intermináveis bebedeiras, comilanças, sonecas vespertinas, sexo e procedimentos fisiológicos.

A leitura de Rabelais me chocou profundamente porque me pôs diante do contraste avassalador com a seriedade, correção política e convencionalismo dos dias atuais. Em nossos TV, rádio, imprensa escrita, cinema e literatura, mesmo em seus programas, seções e vertentes mais ousados e picantes, e mesmo com toda a falação contra censura, não vejo uma grama da liberdade de expressão (com raríssimas exceções na literatura) que encontro numa obra publicada no século XVI!

Bem, ninguém tem culpa disso. É um fato cultural ou sociológico, e a equiparação, eu admito, entre século XVI e hoje é um tanto absurda, mas eu não consigo deixar de pensar nesse contraste enquanto navego pela blogosfera.

Neste sentido, o romance de Reinaldo Moraes, Pornopopéia, é um oásis no deserto. Reinaldo é nosso Rabelais, tanto no conteúdo, focado no lado carnal e demasiadamente humano, quanto na forma, onde o sarcasmo, o humor, a ironia invadem e dominam a sintaxe. Toda a complexidade que outros escritores procuram dar à trama, ou à psique dos personagens, Moraes confere à relação entre os seres linguísticos. O protagonista de Moraes é a frase - na sua relação com outras frases, do mesmo sexo, do sexo oposto ou consigo mesma.

O personagem principal, inclusive, é uma espécie de gigante sobrehumano, um Gargantua pós-moderno. Ele consegue, no mesmo dia, ingerir quantidades homéricas de álcool, cocaína, maconha, lsd, praticar sexo animal, repetidamente, com várias parceiras, e no dia seguinte, enquanto continua cheirando cocaína e fumando maconha, manter os nervos em forma para escrever fluidamente um romance magistral (pois o mesmo é narrado em primeiro pessoa).

A vida às vezes é mais incrível que a realidade, talvez alguém poderia fazer isso tudo, mas o personagem de Moraes não cria a empatia que permitiria ao leitor perdoar a falta de verossimilhança. O leitor sente uma inveja tão grande (não do uso de drogas, mas da vitalidade algo divina deste anti-herói) que não consegue gostar tanto do texto.

Esta convergência entre verossimilhança, originalidade e empatia é uma fórmula poderosa, que produziu os grandes clássicos, porque ela enriquece a obra estética com densidade política. Não é a tôa que, durante séculos, a leitura da Ilíada foi a base da educação da Grécia Antiga.

Verossimilhança, modernamente falando, não significa uma história "crível", ou amarrada aos fatos da realidade concreta; significa antes coerência interior, segundo os parâmetros particulares de cada obra.

No entanto, tão difícil quanto produzir um texto verossímil, e agora me refiro a literatura propriamente política (artigos, crônicas, posts) é conferir-lhe originalidade e empatia. Sem essas características, o texto, mesmo emitindo uma opinião aparentemente justa, não gera nenhuma energia nova. Não muda efetivamente nada. Ao contrário, muitas vezes um texto político aparentemente progressista, vocalizando protestos justos e mesmo urgentes, apenas ajuda a promover desânimo. Vemos isso em toda parte. Mídia e blogosfera às vezes parecem unidos no objetivo de nos fazer acreditar que o mundo é uma droga, o Brasil é uma droga, os políticos são uma droga, e que nem o Hermeto Pascoal enxerga muito bem.

À esquerda, um bando de chorões neurastênicos, a pretexto de exercerem militância ou ativismo virtual, vomitam discursos óbvios, raivosos e desesperançados. À direita, vicejam argumentos verdadeiramente apocalípticos, alguns pintados com o sarcasmo mau-humorado e histérico de membros do Antigo Regime.

Os segmentos mais engajados da juventude, com líderes assim, não vêem nada melhor do que acampar na praça, tocando violão, e repetir discursos vazios, desconexos e tristes. "A política acabou". "Os partidos acabaram". "A democracia acabou". Fala-se em falta de perspectivas... Como assim? Até entendo que um jovem iraquiano mutilado e sem instrução pense assim, mas um jovem europeu? E a aventura do conhecimento, onde foi parar?

Na academia, inaugurou-se uma nova escolástica, com gente produzindo textos cada vez mais esquizóides, incompreensíveis, herméticos, para desespero de milhões de estudantes, que precisam fingir entendê-los, mas como isso é impossível, acabam se tornando repetidores cínicos.

Enquanto isso, o planeta gira e a cada ano a economia global incorpora centenas de milhões de seres humanos que, até há pouco, não conheciam o significado de democracia, nunca haviam estado num cinema, nem jamais consumiram quantidade satisfatória de proteínas.

E acho injusto e equivocado que se atribua esses avanços sociais, que a humanidade vem experimentando, de maneira constante e firme, há séculos, à economia de mercado ou ao capitalismo. São vitórias da humanidade! Do instinto biológico ou divino que leva o homem a se organizar e a procurar instrução. O capitalismo não existe enquanto sistema econômico, ou antes, não é um regime organizado ideologicamente, mas esse é outro debate, que fica para depois.

26 de outubro de 2011

Marcia Denser: A literatura como sentença de morte

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(Mirisola, Denser e Sérgio Sá)


Algumas considerações sobre Charque, novo romance de Marcelo Mirisola

Por Márcia Denser, publicado originalmente no Congresso em Foco

Sempre que preciso escrever um grande texto (e este será um deles, vocês podem apostar), começo examinando minhas razões. Mas é bom avisar previamente do que se trata: será uma espécie de crítica ficcional (ou vice- versa) do novo livro, o 12º. de Marcelo Mirisola, Charque (S.Paulo, Barcarolla, 2011) a ser lançado na Mercearia São Pedro dia 31 de outubro próximo.

Voltando às razões: 1) Escrevo porque gosto de Mirisola, ele é meu amigo e porque há trinta anos eu esperava aparecer no Brasil um cara que tivesse a minha envergadura literária, como é o caso – raríssimo – de MM, e a gente sempre gosta do semelhante, right? (repito, a modéstia definitivamente não é uma das minhas qualidades).

Bom, essa não serve, ninguém escreve porque gosta do sujeito e eu sou famosa precisamente por ser INSUBORNÁVEL – e tomo toda a comunidade literária como testemunha; mas no caso de MM isso não seria problema; 2) Escrevo por vaidade, pra me mostrar – provar que sou melhor que o autor! – e esta eu coloco totalmente fora de cogitação, porque: 3) Escrevo pela Literatura, que anda uma merda, equivocada, esquecida da sua condição de Grande Arte, sua função primordial – a única que ganha Prêmio Nobel.

Naturalmente, ficamos com a terceira hipótese.

Nessa altura do campeonato literário de MM, o leitor terá algumas surpresas: em primeiro lugar esta É A Biografia Pra Valer do autor mais autobiográfico do país (aliás, considerado por quase todos – crítica, público & despachantes afins – como totalmente autobiográfico ao longo dos onze livros anteriores!). Só que antes era MESMO ficção. Quer dizer, poesia, esculacho e um talento inusitado.

Mas agora é pra valer.

Charque é um romance de aventuras, fatos e ficções – o que, atualmente, significa oscilar entre a poesia e o desacontecimento – mentiras & verdades (mais mentiras que verdades embora só estas doam, posto que verdades. Ainda).

Sem contar o estilo e suas avaliações hilariantes dessa sub-realidade de merchandising (a que nós chamamos vida), dessa sub-vida, deste sub-horizonte pop de postes e parabólicas onde atrapalhamos o trânsito do passado recente (dos 80 aos 2000); algo que ele realiza com a precisão do acaso ao percorrer aleatoriamente a geografia nacional – de Manaus a Maceió, de Serra Pelada às praias de Florianópolis, com quebradas, descidas e subidas (por sinal, mais descidas que subidas, aliás todas equivocadas); um trancetê de ponte aérea Rio-Sampa onde autor/ narrador no fundo, na verdade, o tempo todo e A DESPEITO DE SI MESMO (à sua revelia) persegue um objetivo central: sua função de escritor.

Sem que o leitor tenha a menor idéia do que está REALMENTE se passando. Nem ele.

Boto a mão no fogo como MM não sabia o que estava fazendo ao imaginar que simplesmente estivesse “reincidindo” na escritura do Azul do Filho Morto. Sim, claro. Ali ele puxou o fio da infância: lambidas nos azulejos, masturbações pro cão pastor capa-preta, as empregadinhas, a cueca pelo lado do avesso, o nono, o Palestra Itália, o cazzo e por aí vai.

Certo, o menino de Pinheiros, bochechudo, rico e bem careta – protótipo do paulichão de chinelo, o da poltrona, inclusive pelo sotaque, aquele que só escrevia pra parar de escrever no dia em que se casasse na igreja da Acharopita com uma Andressa ou Juliana ou Tatiana ou Adriana que o chamasse de “benhê”, tivesse cinco filhos, assistisse ao Domingão do Faustão, etc., até que a morte e o esquecimento o apagassem, a ele & respectiva famiglia, como de praxe ocorre a 99% duma população marasmática para a quem a “apatia” virou categoria olímpica.

Mas O Azul MM publicou faz dez anos, contudo – que fique bem claro – autores de primeiro time evoluem, se transformam, senão não seriam de primeiro time.

Degradando in-extremis a coisa (porque agora me emputeci), a função, o objetivo do escritor, não é fazer gracinhas ao longo de onze livros (embora, se já ficasse por aí, MM permaneceria tranquilamente uns trinta anos luz à frente do segundo colocado). A função do escritor é dizer ao que veio, realizar pra posteridade sua absoluta originalidade; explicar porque sua obra é como uma pedra angular do edifício literário que, se deslocada, todo o edifício cai. Se for de primeiro time.

E Marcelo é o único escritor brasileiro publicado pós-90 de primeiro time. É bom esclarecer essa história de “escritores” e escritores, cuja maioria absoluta, atualmente, não passam de “despachantes” – o termo é do Miri (“micro-empresário” era a definição dos anos 90 do Contardo Calegaris – ou assemelhado, sei lá, gênero colaboradores do Caderno Mais. Esses caras que escrevem “ensaios” em quantidades industriais e durante anos e não fazem a mínima diferença).

Já notaram como TUDO fica vertiginosamente velho ANTES de brotar e amadurecer?

E vocês não acham que aí tem algo muito ERRADO? Quer dizer, aqueles que ainda acham alguma coisa.

Mas malandro é gato que nasce de bigode, certo?

Vou começar novamente: Charque, décimo segundo livro de Mirisola, é um romance a respeito da absoluta falta de imaginação nacional; Charque é um épico da poesia cruel, ressentida e extremamente eficiente, que resulta do fato do sujeito só pensar em si próprio – inconscientemente. É a Lei de Gerson posta em prática, segundo MM.

Pra escrevê-lo, como autor da série rigorosamente literária, foi preciso muita paixão, muito encanto e muitíssimo culhão. Certo. MM não é mesmo um suicida de primeira viagem, até porque lê horóscopo antes de ir para a câmara de gás.

Charque é como se o autor fizesse, paralelamente, a liquidação da sua alma e a do Brasil, donde se tratar dum guia infalível para a própria morte social. Além de histórico-geográfica: dessa vez te confiscam a cidadania!(cruzes, com a espinafração do Machado, só para “Acadimia” vais virar um mix de louco com leproso. Isso se eles forem minimamente criativos, o que eu duvido).

É a autobiografia recorrente do inconfessável, simultaneamente do autor e do Brasil. Sem desmentir o falso priaprismo metanarcísico de MM antecipadamente rendido.

É a fuga submersa pra dentro e para baixo – ao centro involuntário da covardia e da dor. Não esquecendo o roteiro de viagens tipo “conheça o Brasil!”: seu guia de compras na faixa de Gaza, sua carona garantida para a desmemória. Perdeu, perdeu, meu amigo brasileiro – desde sempre, atualmente e doravante ­– você sempre perde. De caso pensado. É teu segredo de polichinelo, ou seja, inconfessável só para você mesmo. E não é para menos, não é mesmo? Você é o PIB da cacofonia com a macaqueação, Machado de Assis incluído, “o máximo do mínimo”, segundo Marcelo.

Do livro, uma única e monumental cagada: o título – que merda é essa?

Outra: Você enche o saco com a Marisete!Quem dá cartaz pra trouxa é lavadeira!Dá serviço e um banho de loja nessa tua ânima desocupada! E protéica: mulher, animal, putíssima, gato, cachorra (e todas feias, sujas, burras e rampeiras!) – dá vontade de te mandar cultivar açafrões no jardim gay do Caio. Sei lá, sobe o nível, meu chapa (mas, oooooooops, perdão, não é de VOCÊ que se trata exatamente, mas do Brecão, o nosso brasileirinho médio e des-agregado).

A dúvida relativa e a grande frase: “Ainda que a delicadeza me escape, num arroubo de afeto e outro de repulsa merecida, será que apesar de tudo:
- Depois da queda (ainda que morto o menino),
Servirão as mesmas asas para voltar?”

Pra onde, Mirisola?

Quanto às asas, o caminho se descobre caminhando: se não te aleijarem até lá, normal.

Asas?A propósito, aqui cabe uma advertência ao autor que meus mais de cinquenta me sancionam: só não continuo escrevendo assim por preguiça, covardia, moral baixa, comodismo, falta de tesão e vergonha na cara. Elementos que nada têm a ver com asas. Se liga, Marini!

Naturalmente, não vou contar o fim do livro, mas Mirisola descobre e realiza sua função de escritor. No último capítulo. Mas dou uma dica, algo que também descobri aos 38 anos escrevendo a primeira versão do meu romance Caim. Tá lá, na primeira página:

Nem remetente, nem destinatário,
Nem sacrificante nem sacrificado, nem algoz nem vítima,
Mas se tornar ela própria o sacrifício,
A palavra redentora que já não perguntava nem respondia,
Que se consumava,
Mas isto não é meu corpo,
Isto não é meu sangue,
Posto que sombra, não tenho posteridade,
O que se multiplica é minha iniqüidade.
O meu nome, a minha assinatura,
É uma sentença de morte.
A minha sepultura
A minha lápide,
A minha cruz.

Pois é, a tua também, Mirisola.

Foda-se!

26 de junho de 2011

Pro dia nascer feliz

Do Blog De Costas pro Mar, de Nilo Oliveira

Quarta-feira, 22 de junho de 2011

Foi o Joãozinho quem me deu a letra, por telefone, lá de Foz do Iguaçu: "Vai sair este domingo um conto do Mirisola na Folha. Parece que meio inspirado naquele passeio que demos por Copacabana..."

O Joãozinho é um cara espiritualizado. No dia seguinte ao referido passeio - segundo ele, cercado de pombas-giras mercenárias, banhadas por luzes caleidoscópicas vermelhas e azuis, e exus que rodavam em torno deles num pé só, como piorras gargalhantes - confidenciou pro Mirisola que tinha sonhado com umas coisas estranhas... Mais precisamente com galeões que atracavam numa Copacabana ainda selvagem, e com piratas que caminhavam pela praia na sua direção.

- Pirata?! - gritou o Mirisola.

- É... - respondeu o João, enquanto uma sombra lhe atravessava o semblante.

- Mas pirata mesmo, com tapa-olho e tudo?

O João balançou afirmativamente a cabeça, olhando pros lados, como se forças invisíveis estivessem se aproximando pra escutar a história.

- Caralho, Baixinho!... Tem certeza que não era o fantasma de algum folião?

Não pude comprar a Folha. E também não consegui ler o conto na versão on-line. Então pedi ao Mirisola que me enviasse o arquivo, no que fui gentilmente atendido. Citando um famoso profeta carioca, "gentileza gera gentileza" - e por isto, com a devida permissão, compartilho aqui o conto com outras pessoas que também não tiveram o prazer de ler o relato desta fantasmagórica despedida do Mirisola das ruas do Rio de Janeiro.

*

Marcelo Mirisola:
Pro Dia Nascer Feliz


Aqui no centro do Rio não fico sozinho, a cidade me faz companhia. Como se eu fosse uma criança e a solidão me desse as mãos para atravessar ruas, entrar em butecos e encetar pequenas cosmogonias. Sou um bêbado discreto e só um pouco ruminante. Um vulto triste e complacente que jamais estragaria a festa das almas trôpegas que ainda pensam que estão vivas. Parece uma ninharia, mas é muito se eu for comparar a São Paulo: cidade que nunca me ofereceu nada diferente de expurgo, amigos cinzas, exílio e uma solidão que não precisa de ninguém para existir. São Paulo me cospe.

No Rio, o movimento é exatamente o contrário. A paisagem, de braços dados com a solidão, além de me tragar, também me acompanha – embora meu amigo Miguel do Rosário tenha argumentos geográficos e políticos (agora não me lembro quais...) que provam que o centro do Rio não existe.

Apesar de todas as evidências forjadas pela Secretaria de Turismo, o “Rio Antigo” não está preso numa fotografia amarelada. Isso é mentira pra decorar buteco de paulista. O Rio não é um lugar que têm promissórias a acertar com o tempo. Nem com o passado, nem com as olimpíadas de 2016. Antiga é a mania de demolir e reformar, de cumprir as obrigações do dia-a-dia, de abrir franquias e fazer “releituras”: antigo é o hábito de registrar o tempo em fotografias.

O mais grave é não ouvir o lamento das pedras. Um erro. O fato de os séculos terem passado não impede que as pedras do Beco do Barbeiro continuem gritando. São as mais sofridas e indiscretas da cidade. Antigo é não transcender.

Os burocratas da Riotur não deviam ignorar os aflitos que buscam indultos na Igreja do Carmo, vizinha do Beco. A bocarra aberta da Igreja continua – apesar de o purgatório não mais existir – cumprindo sua função de engolir almas. Nem sei se é bom negócio. Mas sei que o tempo pisado, no Rio, é bem público e privado, assim como o desamparo e os pecados do mundo, bens que não prescrevem e não tem nome.

Butecos são butecos, conventos não são jaqueiras e igrejas não são espaços culturais da Oi. Têm certas coisas que demandam apenas rumores para que existam e sejam compreendidas: os passos de um homem na Rua do Ouvidor que apressam o ritmo do sujeito que vem à frente, a aflição dos dois a caminho do trabalho um pouco antes de olharem para a mesma mulher do outro lado da calçada. Aparentemente uma cena banal. Mas esse rumor tem o mesmo efeito do silêncio que congela as ruas e os séculos imediatamente depois que os homens apressados dobram à esquerda na direção da Sete de Setembro. Claro que fantasmas existem. Eu os vejo, eles me vêem – vivos e mortos a caminho do eterno pasto. As almas do Telles juram que estou vivo. O gato preto que desaparece na próxima esquina e o arrepio que sobe pela espinha são lições de indiferença que cumprem séculos e séculos. Eu sei! Na manhã de setembro de 1711 uma espessa neblina baixou sobre a baía de Guanabara – lembram? – e facilitou a invasão de René Duguay-Trouin, o francês filho da puta que sequestrou a cidade e impôs o terror à população. Na mesma manhã de setembro, Vanusa perderia Antonio Marcos para Débora Duarte. A dor permanece nas manhãs de setembro. Em alguns casos, a redundância também. Quem é que precisa de provas?

Os fantasmas da Rua do Senado espalharam boatos que o tempo não passa. Aconteceu anteontem. Depois de comer um sanduíche de bife a milanesa no Massapê, esquina da Gomes Freire com a Rua da Relação, resolvi seguir até a Lavradio e, de lá, meu plano era simples: pegaria o bagulho na Pça.Tiradentes e me pirulitaria o mais rápido possível em direção à Cinelândia. Nem bem havia dobrado a esquina, um sujeitinho de paletó de linho branco, cabelo engomado, chapéu panamá e sapato bicolor, me pediu fogo.

O malandro foi direto ao ponto:

- Veio de lá, parceiro?

Encruzilhada braba. Eu não estava a fim de pagar de otário justo no coração da Lapa, e respondi:

- Sim, nascido e criado em São Paulo. Mas estou aqui para resgatar meu coração que ficou espanado no Morro do Livramento. E você, malandro? Saiu de um ensaio da Marie Claire ?

Se eu dissesse que o malandro evaporou estaria cometendo um ectopleonasmo (não resisti ao trocadilho, perdão). Segui na direção da Pça.Tiradentes, onde pegaria o bagulho perto da Estudantina e, no máximo em oito minutos a passos largos, chegaria ao meu destino: uma asinha de anjo no Galeto Liceu. Segundo meus cálculos, antes das 20 horas daria cabo do anjinho na brasa, e ainda me sobraria um tempo para conferir a qualidade do bagulho – ou parte dele.

As distancias no Rio são curtas, mas pesam. Ir da Lapa até a Praça XV significa cumprir uma maratona espiritual. Agora, tem uma coisa que independe da circunscrição do susto, e que me chama muito a atenção: todos os fantasmas que encontro pelo caminho, todos eles tem sede.

Ontem à noite enchi a cara na Cinelândia. Joel bate ponto lá. O Barão, que também não sai do Amarelinho, contava que seu cardiologista o havia proibido de beber às refeições. Para não contrariá-lo, teve uma idéia brilhante: decidiu abolir as refeições. Voilà! O Barão é foda, o rosto de menino atrás da barba branca e os olhinhos que brilham como se fossem um radar em busca de cascas de banana, não me enganam. Eu escolhi não facilitar com a monarquia. O ideal, a tática mais indicada, é pedir outra dose e meter o pau no Getúlio. O mesmo vale pro Joel. Recém-chegado do Sergipe, descolou um emprego na redação do “Dom Casmurro”. Os dois e mais o Brício – que tem mania de bordejar sobre as mesas – armaram o QG no Amarelinho.

À primeira vista não fui com a cara do Joel. Ele e Brício não se desgrudam. Tive a impressão que eram bookmakers, daqueles que trocam segredos de cavalariça. Me enganei. A Víbora, leia-se Joel Silveira, nos contou que está morando numa pensão na Rua das Marrecas, ali pertinho. Gamou na faxineira, logo “espichou a braguilha” na direção dela e teve sua recompensa. Sei não. Se é verdade ou mentira não me interessa: o melhor é que ele batizou a garota de “Miss-Marrecas”. Cafajeste e boa gente, glutão. Dois glutões, ele e o Barão. Só de ouvir o Barão pedir o famoso “talharim al pomidoro” dá vontade de comer a própria gravata. O Brício não, esse é mais de ficar ciscando. Antes de morrer já cultivava essa mania de bordejar sobre as mesas, um passarinho.

Por que ninguém “comete” bondades? Sim, Barão, foi isso mesmo o que eu disse. Por que apenas arquitetam-se maldades, bolam-se golpes e crimes são urdidos na calada da noite?

O Barão não se fez de rogado e soltou alguma piada, da qual – sou obrigado a confessar – não me recordo, agora não.

Enchemos literalmente os esqueletos naquela noite, e brindamos à Miss Marrecas e ao Bussunda que acabava de chegar à mesa, meio sem jeito.

No dia seguinte, acordei no largo de São Francisco da Prainha. Ouvi um batuque vindo na direção da Pedra do Sal misturado com o barulho do mar que arrebentava logo ali nas muradas do cais – o problema é que ambos, o mar e o cais, haviam sido removidos de lá há pelo menos cem anos. A gente não deve contrariar as ressacas, venham de onde vier. Não sei como, mas consegui ir do largo da Prainha até a Pedra do Sal, cheguei são e salvo na pensão da Tia Ciata que me recebeu de braços abertos. Vejam só; da Prainha até a pensão é perto, mas é longe. Sobretudo pruma alma vendida, trôpega e premida como esta que vos escreve e que era mais carne do que qualquer outra coisa depois do porre da noite anterior – e foi assim, com a alma sobre as costas, que subi os degraus escorregadios da Pedra do Sal e cheguei na pensão supracitada.

Os batuques que ouvi no largo da Prainha vinham de uma roda de Jongo, da qual Tia Ciata era madrinha. Podia estar louco, mas não surdo. “Os negros – ela me disse: – estão faceiros, mas nem eles e nem Deus não sabem, ainda não, que são brasileiros”.

Ela estava certa. Naquele 1889, o Cristo ainda não havia fixado residência no alto do Corcovado. Pelo sim, pelo não, resolvi pedir mais uma dose pra garantir guarida. A noite ia ser longa, e prometia.

Todavia o mar era o mesmo, eu lembro, o mar que há cem anos, aterrado e removido de si, rebentava das muradas do largo da Prainha, era o mesmo que ia e vinha e investia suas tempestades contra os meus miolos encharcados de álcool e assombrações. Também me recordo – vagamente – das coordenadas de Tia Ciata, ela me disse que uma louca estaria à minha espera no Morro do Livramento, e que eu deveria entregar o bagulho na quinta-feira sem falta.

As promessas da noite foram cumpridas. Acordei em Ipanema, mais ou menos entre fevereiro de 1985 e maio de 2011. O dia havia nascido feliz e eu tinha pouco tempo para aproveitá-lo – mas antes eu teria que me livrar daquele maldito bagulho de uma vez por todas.

9 de abril de 2011

Arquivo: Entrevista exclusiva com Moacyr Scliar

2 comentarios

Olha que legal. Fuçando arquivos antigos, descobri sem querer uma entrevista que fiz com o escritor Moacyr Scliar, para o jornal/site (era impresso e online) que eu editava, intitulado Arte & Política. Nem lembro de quando é: acho que de 2003 ou 2004. Publico aqui como um tributo ao escritor, que faleceu recentemente.


Arte & Política: Onde você se inspira para escrever seus livros?

Em qualquer coisa: um episódio da história do Brasil ou do mundo, uma pessoa que conheci, uma notícia de jornal, uma fantasia. A inspiração é importante, mas é como o motor de arranque: ele só dá a partida, não faz andar o carro. O que faz andar o carro é a técnica literária, o domínio da palavra, a disposição de contar a história.

Para você, como a TV e o cinema mudaram a sensibilidade das pessoas e em que isso afetou a literatura?

Certamente. Mudaram para melhor. Vou dar um exemplo: nos romances antigos, havia longas descrições de paisagens, de personagens. Não mais: nisto o escritor, por mais sensível e talentoso que seja, não pode competir com a câmera. Mas esta, por sua vez, não pode penetrar na mente dos personagens. Isto tornou a ficção mais intimista. Por último, os livros ficaram menores: por causa da tevê e do cinema, as pessoas têm menos tempo para ler. Mas livros mais curtos também é um avanço: exigem maior poder de síntese.

Nesse ano, em que o Quixote completa 400 anos, que lições você acha que podemos tirar desta obra para a literatura contemporânea?

O Quixote é daquelas raras obras que tem uma mensagem universal e atemporal. Em todas as épocas existiram pessoas que lutaram por seus ideais, mesmo em circunstâncias desfavoráveis, mesmo sofrendo ou cobrindo-se de ridículo. Bom que o fizeram! Graças aos quixotescos, a humanidade avança. Aos trancos e barrancos, mas avança.

Há alguns estudiosos que acham que se valorizou excessivamente a literatura experimentalista, como aquela do Ulisses, de Joyce, e que essa literatura fracassou, pois não atingiu o gosto do público. Quem lê Ulisses hoje em dia? Enquanto que uma literatura de Camus, de Borges, de Sartre, de Thomas Mann, que mesclam profundidade filosófica e poesia sem perder a comunicabilidade com o leitor, continuam se expandindo por todo o planeta. Concorda com essa análise? Acha que a comunicabilidade do texto ficcional é importante?

Não, não concordo. Não acho que Ulisses seja experimentalismo. Acho que se trata da forma a serviço do conteúdo. E comunicabilidade é um conceito relativo. O escritor escreve para as pessoas com as quais têm afinidade, e que podem ser poucas: Flaubert dizia que não precisava mais de cem leitores. O público destes escritores forma-se mais lentamente, ao longo do tempo, mas se forma.

Haveria, a seu ver, um certo distanciamento crescente entre alguns segmentos da ficção nacional e o grande público letrado brasileiro? O artista tem que ir aonde o povo está?

Não, não creio que tenha havido distanciamento; prova são as editoras juvenis que tem um público cada vez maior. O escritor não tem de ir aonde o público está; ele tem de seguir seu instinto, suas próprias tendências. Tem, como dizia Shakespeare, de ser fiel a si próprio.

Você é um escritor com muitos romances publicados por grandes editoras. Seria indiscrição perguntar quantos exemplares em média seus livros venderam? A comissão do escritor continua sendo 10%? Dá pra viver de literatura no Brasil?

Não costumo fazer estes cálculos mas creio, pelos números que tenho, que meus livros vendam, em média, 30 mil exemplares por título. Direitos autorais representam 10% do preço. É difícil viver só de literatura; é mais fácil viver de escrever - artigos, crônicas, roteiros. Mas quem disse que o escritor precisa viver só de escrever? Kafka era funcionário, trabalhava o dia todo e à noite produzia maravilhas.

Que sugestão daria para o Ministério da Cultura para aumentar o índice de leitura no país?

Eu investiria nos professores de literatura: treinamento, motivação - e, claro, bons salários.

Se o Ministro da Educação lhe pedisse uma sugestão, que livros de literatura tiraria do currículo escolar, e que livros acrescentaria?

Não tiraria livro algum, mas acrescentaria autores contemporâneos.

20 de janeiro de 2011

Dias quentes sem jornal

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(Basquiat)

Verão turbulento no Rio. Sem meio termo: ou temos o sol nos fervendo os miolos, a temperatura tão alta que parece diluir o sangue, ou então surgem nuvens enormes e escuras ao fim da tarde, primeiro ameaçando, depois cumprindo a ameça, alagando as ruas, ensopando os pedestres, paralisando o trânsito.

Nem desço à portaria para pegar os jornais. Prefiro terminar de ler o romance de Denis Lehane. Engraçado como todo livro de gênero (policial, terror, etc) perde força sempre que a história caminha para uma solução. Lembro de um livro do Stephen King que eu estava achando muito bom, Os Estranhos, com descrições divertidas e envolventes de personagens e situações. Quando a narrativa atinge o ponto onde os monstros começam a aparecer, a graça se esvai. O livro torna-se falso, infantil, pretensioso. A mesma coisa vale para esse Lehane.

Gosto particularmente das descrições da cidade, que se torna um personagem quase vivo na história. Quando o mistério sobre o desaparecimento da menina começa a ser desvendado, porém, a narrativa até ganha vida, a gente sente vontade de ler mais rápido e tudo, mas o texto perde em termos literários. E o problema não é uma queda súbita na técnica, mas na própria história. Talvez por não ser convincente. Talvez por ser vulgar. Na ânsia de criar um embate final, o autor simplifica o antagonista, torna-o um vilão maniqueísta. Afloram falhas de verossimilhança que provocam certo desencanto no leitor. Ele lê mais rápido agora não apenas por curiosidade, mas para terminar logo o maldito livro.

Interesso-me muito, todavia, por todo o tipo de técnica literária, e leio os romances policiais com a mesma atenção com que o faço lendo Dante Alighieri. Observo os movimentos, as pausas, as digressões constantes depois de cada diálogo. As descrições que humanizam as paisagens e criam uma atmosfera.

Há tempos tenho a impressão que a "alta literatura" teria muito a ganhar se descesse de vez em quando de seu pedestal e examinasse as técnicas literárias presentes nos romances policiais. Com certeza, teríamos livros menos chatos.

Um romance policial como os de Denis Lehane possui, além disso, uma pesada dose de crítica social, mas sem julgamento, sem tomada de posição. A postura do autor está mais para o desencanto, fazendo a linha decadente, o que aliás combina bem com o momento histórico vivido pelos Estados Unidos.

No Brasil, tenho notado, há muitos anos, uma grande falta de habilidade narrativa. O déficit neste sentido é tão grande que inúmeros escritores desistiram abertamente de trabalhar a questão do conteúdo, preocupando-se prioritariamente com a forma da linguagem. Alguns passaram a defender a primazia da forma sobre o conteúdo, talvez tentando, sem disso se aperceber, melhorar um pouco a nossa auto-estima.

Isso tem que mudar. O Brasil precisa de histórias. De romances que descrevam o desespero e a euforia nas grandes cidades, o desregramento da juventude nos municípios médios, o fim da paz nas cidadezinhas. Há tanta coisa para contar! Crimes, crepúsculos, edifícios abandonados, praias, canais sujos, tempestades, prostituição, máfias, crianças brincando nas ruas, crianças fumando crack nas ruas, não faltam elementos para compor uma nova literatura realista de que o país tanto precisa para se autoconhecer.

26 de dezembro de 2010

Um balanço dos melhores autores da década de 1980

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O teste do tempo – posteridade deve ser isto – é algo absolutamente fora do nosso controle. By the way: aguardemos em 2020 o inventário da geração de 90

Por Márcia Denser*, no Congresso em Foco.

O ano de 2010 marca o fim da década, logo balanços e listas se tornam inevitáveis. Pensando nisso, caiu a ficha: usando o critério crítico geracional (as gerações de autores se sucedem a cada 30 anos), em 2010 já se pode fazer uma avaliação da geração de escritores da década de 1980.

E na geração 70/80 (a minha) surgiram cerca duns 400 novos autores! Para se ter uma idéia, em 1976, só a Editora Ática (na época, investindo massivamente em ficção nacional; lembram as famosas capas do Elifas Andreatto?), na coleção Nosso Tempo, publicou cerca de 75 títulos de autores inéditos. E onde estão esses caras hoje?

Dos quatrocentos escritores emergentes daquela época, trezentos e setenta e cinco desapareceram por completo, porque hoje, trinta anos depois, só restam aí uns vinte e cinco, sem contar os poetas, os mortos ou ambos, tipo Leminski, Ana Cristina César...

Porque não se trata de fazer sucesso ou vender ou ganhar prêmios ou concursos ou bolsas ou petrobrases, não se trata nem de publicar muito, trata-se de escrever uma obra – pode ser apenas uma – realmente significativa, que faça diferença, que penetre o imaginário e se instale na memória profunda das gerações subsequentes. E esse critério inclui o equivalente inverso: o conjunto da obra é que se torna representativo. É o caso do escritor que publica constantemente e, pelo conjunto produzido, define um estilo, uma marca inconfundível.

Aliás, nessa categoria, de imediato posso citar três e todos gaúchos: Luís Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar e João Gilberto Nöll – este menos prolífico, todavia, mais complexo, dum nível técnico-estilístico refinadíssimo.

Tal critério – a obra exemplar ou o conjunto de obras – consagrou nossos grandes escritores, claro, incluindo os gênios – o autor de várias obras fundamentais – a exemplo de Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Osman Lins, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, etc. Mas a propósito, e citando o próprio Mário de Andrade: Uma grande literatura nacional não é feita de gênios porque o gênio aparece em qualquer lugar, até no deserto de Gobi, uma grande literatura nacional é feita por muitos escritores médios.

Agora, voltando à geração de 70/ 80, pinçando só os prosadores, lá vão (por ordem alfabética): Antonio Torres, Caio Fernando Abreu, Deonísio da Silva, Domingos Pellegrini Jr., Hilda Hilst, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, João Antonio, João Ubaldo Ribeiro, João Gilberto Nöll, João Silvério Trevisan, a primeira Lya Luft, Luiz Vilela, Luís Fernando Veríssimo, Márcia Denser, Marcio Souza, Moacyr Scliar, a primeira Marina Colasanti, Nélida Pinõn, Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Raduan Nassar, Reinaldo Moraes, Roniwalter Jatobá, Sonia Coutinho, Silvio Fiorani, Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago, Tânia Faillace, Wander Piroli.

Taí, 30 escritores, digo, 25, porque cinco já estão mortos: Caio F., Hilda Hilst, João Antonio, Roberto Drummond e Wander Piroli.

Quero assinalar que esse critério não diz respeito à idade dos escritores, mas à época em que foram consagrados graças às suas obras, ou seja, as décadas de 1970 e 1980. Razão pela qual não incluí, por exemplo, Milton Hatoun ou Cristovão Tezza, uma vez que suas obras mais relevantes foram publicadas a partir de 1990.

O teste do tempo – posteridade deve ser isto – é algo absolutamente fora do nosso controle. By the way: aguardemos em 2020 o inventário da geração de 90.

Faz tempo, mas lembro de ter lido um artigo do José Castello onde este faz aquela defesa envergonhada de Lya Luft (se é que eu ainda sei ler no subtexto) "que só porque a coitadinha agora vende, dá-lhe inveja de quem não vende" e etc., nessa linha. Cruzes, Zé, não é que ela botou o título de "Ônus" num dos tais poemas que você defende com tanta galhardia?

A propósito, tudo isso me lembra DEMAIS o grande problema que Marcos Rey criou (e o amargurou nos últimos anos de vida, sei disso porque éramos amigos) ao vender milhões de livros infanto-juvenis e - duma forma que ele não previa - comprometendo seriamente a recepção da sua verdadeira literatura adulta, que havia dado títulos como O Enterro da cafetina, Traje a rigor, O pêndulo da noite, O bar dos cento e tantos dias, Mustang cor-de-sangue, Eu e meu fusca, etc. A verdadeira obra incorporada à tradição literária (mas que pouco vendia).

E hoje? Quem se lembra dos seus livros infanto-juvenis? (que pena, tão vendidos!) Um deles, se me lembro, chegou a cinco milhões de exemplares.

Pois é, Castello, é natural que você defenda “a letra morta” (deve ser esse o Ônus da Lya) posto precisar de defesa, é compreensível, porque “a palavra viva” tem valor e substância por si mesma, logo não há porque defendê-la, não é mesmo?

A palavra viva vence o tempo.


* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), A ponte das estrelas (1990), Toda prosa (2002 - Esgotado), Caim (Record, 2006), Toda prosa II - obra escolhida (Record, 2008). É traduzida na Holanda, Bulgária, Hungria, Estados Unidos, Alemanha, Suíça, Argentina e Espanha (catalão e galaico-português).

Mirisola e o politicamente incorreto

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(Mirisola é o primeiro à direita. No meio, temos o Bactéria, sebista-intelectual da Praça Roosevelt)

Essa história do politicamente correto ou incorreto ficou bem confusa. Parece que virou politicamente correto criticar o politicamente correto, mas de uma maneira polida, ou seja, politicamente correta. Os colunistas da Folha estão sempre a criticar o politicamente correto, por exemplo. Fazem-no, porém, como que segurando a xícara de café com o dedo mindinho pra fora. Não os culpo em demasia, eles cantam o que se lhes ordena cantar, em troca de um salário razoável e do afeto dos executivos do departamento de cultura do banco Itaú.

Eu também me irrito com o politicamente correto. Entendo, todavia, que há uma coisa chamada "respeito". Esse é o valor que eu prezo. Por outro lado, há uma outra coisa chamada literatura, que flerta com que há de pior, de mais bisonho e também mais engraçado, no ser humano. Há, por exemplo, a literatura semânticamente escandalosa e herética, mas sintaticamente sofisticada e agradável, de Marcelo Mirisola, romancista que escreve crônicas para o Congresso em Foco.

Segue abaixo a sua última crônica:

A parada gay e a marcha evangélica

“Sempre estive do lado das minorias, até que elas viravam maioria, e me acusavam de estar do outro lado. Sempre assim. Logo eu, o defensor das empregadinhas e das mulatas, fui acusado de racista”

Marcelo Mirisola*

Algumas crônicas publicadas aqui no Congresso em Foco me deram subsídios para escrever Charque, meu novo romance que será publicado pela editora Barcarolla em 2011.

Os mais ardorosos castos e os depravados mais ululantes decerto devem ter na lembrança a aproximação que fiz entre a parada gay e a marcha evangélica. Nem precisaria dizer, mas o que segue é o que eu penso, só que agora em forma de ficção. Virou ficção, virou Charque:

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Um trecho, capítulo 18:

(...) porque perdi a aventura e aquilo que Ednardo, Amelinha & Belchior chamariam de sal da vida. Fui me esvaziando, e isso aos poucos se refletiu na frequência da minha quitinete de marfim, na vida das pessoas que trocaram os paralelepípedos pela purpurina e o sangue derramado por k-suco light sabor uva.

****

Uma massa colorida descia a Rua da Consolação, mais de 4 milhões de pessoas, incluindo donas de casa, padres pedófilos e escoteiros, negros e albinos, índios e canibais, mulheres & poodles & focas amestradas e – pasme! – bichas!

Todos eles escorrendo feito uma geléia colorida desde a Brigadeiro Luis Antonio até chegar na Igreja da Consolação, bem na frente da minha quitinete. Segundo estimativas da PM, eram 4 milhões de pessoas devidamente vigiadas por 2 mil homens, sendo que – segundo estimativas do organizadores da parada gay – 10% desse efetivo era composto de enrustidos que trocariam a farda por micro-tubinhos e alargariam as estimativas da PM e os seus respectivos esfíncteres na parada do próximo ano. Eis o quadro.

Porque tinha de tudo, para todos os gostos e modulações, inclusive uma espécie em extinção, a bicha louca de tempos idos. Nisso, uma melindrosa irrompeu no terraço da quitinete de um passado distante e improvável, metade desse ectoplasma era igualzinho ao Luis Fernando, meu primo, vindo diretamente de 1980, e a outra metade Salomé.

Luis Fernando, mais conhecido como Cu de Veludo, provavelmente havia se transformado numa bicha louca e velha. Porém somente 1/4 dessa metade Salomé e o outro quarto incorporaram na quitinete em forma de cu de veludo (versão anos oitenta). Os outros 2/4 do fantasma escorriam lá embaixo, junto à realidade do aqui e agora da massa colorida.

O viadinho sofreu muito no colégio, depois de todo esse tempo, ele, já um tiozinho chegado nos 40, devia – pensei – estar lá na parada junto às serpentes albinas e transgênicas, decerto engatado na trolha de algum crioulo, e se dando bem – para os parâmetros dele, sim, mesmo fantasma, muitíssimo bem.

Impressionante a roda viva, e a força dos trocadilhos. Vejam só. Apesar de tudo, e depois de todos esses anos, Luis Fernando finalmente poderia dar o cu que – segundo minhas estimativas – já não era mais aquele veludo dos anos oitenta, sossegado.

Quando o 1/4 Salomé interrompe meus pensamentos e assopra na minha nuca: “quem é enrabado por último é enrabado melhor”.

Ora, o que a melindrosa queria dizer com isso? A geléia colorida se aproximava da Igreja da Consolação; que papo era aquele? Pensei em chamar o gen. Custer ou até o coronel Erasmo Dias, tanto fazia, “alguém tem que tomar uma providência” – ouvia o velho Pascoal, meu avô que há dez anos sucumbira a um câncer de próstata pedir “providências!, providências!”. Enquanto isso, os sioux avançavam... Tínhamos que proteger o Forte Apache! A retaguarda! Cadê o Vigilante Rodoviário? A resposta veio em forma de Ronald Reagan dançando mambo com uma penca de bananas sobre a cabeça. Até você, Reagan? Maldito íncubo traidor!; onde estava o Rin Tin Tin? Amaral Neto, aonde? Só me restava pedir o auxilio da Sétima Cavalaria: os sioux do Village People invadiriam nosso forte apache, cadê você John Wayne?

E a família, a tradição e a propriedade?
– Olha o John Wayne lá, querido.
– Onde?
– Ali – apontou Salomé: – beijando o Batman na boca.

****

Fernandinho Cu de Veludo, lindinho, lindinho perdido nos 80s. Também conhecido como Boy George de Pirituba. No intervalo das aulas, lembro, eu era o único cara que conversava com ele na lanchonete. Os animais que estudavam comigo até me tiravam de fanchona. Só porque eu ia conversar com o cara. Pela memória de Jece Valadão, ela era meu primo! Ou prima, sei lá. Sempre estive do lado das minorias, até que elas viravam maioria, e me acusavam de estar do outro lado. Sempre assim. Logo eu, o defensor das empregadinhas e das mulatas, fui acusado de racista. Logo eu, que sempre respeitei o rabo de veludo do Luis Fernando, me acusaram de homofóbico; pensava nisso tudo vendo aquela multidão de 4 milhões de pessoas em ação (quer dizer: mais ou menos 2 milhões em ação, na ativa, e a outra metade na passiva, incluindo, não necessariamente nessa ordem, os padres e os poodles); pra frente Brasil, salve a seleção e salvem os cercadinhos: tudo sob controle e organizado; e eu lá, do alto da quitinete de marfim, me sentindo ultrapassado porque não era viado nem era o negro que enrabava o ex-cu de veludo do Luis Fernando, indagava de mim para mim mesmo: de que merda me serviu o livre arbítrio? E se eu não quiser ser viado?
– Quem tem livre arbítrio é urubu que nasce branco – diria o Furio Lonza (mas essa é outra história...).
Enfim, não sei como, mas praticamente esmagado pelas lembranças e assombrações dos anos oitenta, e quase surdo com o barulho do bate-estaca dos carros de som e da multidão de viados que iria se dispersar na frente da Igreja da Consolação, eu ainda consegui associar o livre arbítrio do urubu do Furio com as palavras de Bakunin la desordre c’est l’ordre moins le pouvoir *; e, a partir daí, fiz umas contas modestas e cheguei à seguinte conclusão:

Um por cento dessa viadada que “enlouquecia” na frente da Igreja da Consolação seria mais do que o suficiente para fazer uma tempestade em Brasília. Imaginei 30 mil drag queens realizando a última etapa da arquitetura de Niemeyer, varrendo aquela merda do mapa.

* A desordem é a ordem, menos o poder

****

Um dia antes, no Campo de Marte, outros 3 ou 4 milhões – segundo estimativas da PM – de neo-evangélicos (e enrustidos) em transe se reuniriam na Marcha para Jesus. Ou seja, outra multidão, igualmente organizada e pacífica, atrás de uma mentira brega contada aos guinchos e latidos. O diabo, nos 00, não era mais aquele que trazia o épico e o deserto consigo, conhecem essa história?

Numa sessão de exorcismo, no momento em que o Rituale Romanum previa a interrogação do demônio à pergunta sobre qual era seu nome, o até então “indigitado” afirmou chamar-se Sahaar e provir do deserto. O exorcista o mandou de volta para o lugar de onde veio. Ao que o demônio retrucou prontamente: “Eu carrego o deserto”. Além da retórica, sentiram a responsabilidade e a contundência poética dessa resposta: “Eu carrego o deserto”?

Voltando. Do alto da minha quitinete de marfim, cheguei a outra conclusão, um tanto óbvia. O nome do demônio – cazzo! – sempre foi legião. São exércitos. Não só de pastores. Uma legião de sertanejos, de Ivetes para jogar as mãozinhas para o alto e rebater água benta com axé e Faustão em domingos enfadonhos e eternos. Num dia, o pé quebrado está lá na parada dos viados, no outro na parada dos neo-evangélicos. Se antes ele carregava o deserto, hoje carrega o equipamento de som da banda Calypso. Brega, chapeludo, sertanejo ou disfarçado de drag queen.

E o pior de tudo, disciplinado. Eu pensava: 4 milhões de viados + 4 milhões de neo-evangélicos (segundo estimativas da PM...) = Nenhum cadáver. Nenhuma agência de banco depredada. Como é que pode?
O que me incomodava – nada mudou, as coisas somente iriam piorar – era a retórica infantil. De um lado, o tatibitate teológico. Do outro, o politicamente correto. Uma simplicidade e uma truculência que – para dizer o mínimo – metiam/metem medo e prometiam/prometem um futuro sombrio ou colorido, dependendo do ponto de vista.

No Campo de Marte, um espetáculo de puro horror e cafonice. Muito triste ver aquela gente travada e sofrida oferecendo-se à “glorificação do Senhor Jesus”. As tias de cabelos compridos e ensebados, vestidas com as burcas que compraram na C&A, ofereciam suas almas ensebadas para um acuado “Senhor Jesus”, ele mesmo, há dois mil e dez anos crucificado para salvar os homens e agora refém da histeria horripilante do povo de Deus. Ao contrário de uma celebração no candomblé – fiz meus cálculos –, onde o humano e o sobrenatural se entrelaçam numa mistura de lubricidade e alegria, faltava – principalmente – beleza pra’queles jagunços entregarem suas alminhas, tanto fazia se iriam entregá-las pro senhor capeta ou pro “senhor Jesus”.

Além da feiúra, faltava tesão, faltava calcinha vermelha. Exatamente aquilo que sobraria ou seria desperdiçado pela bicharada um dia depois, na Av. Paulista. Ambos, o bem e o mal (?) nos seus respectivos escaninhos, e sob controle.

****

Tenham todos um feliz Natal e um ótimo 2011. Tô cansado, e entro de férias. Pretendo torrar o adiantamento milionário que recebi da editora Barcarolla em Las Vegas. Volto somente no final de janeiro.
Abraços,
MM

* Mirisola é autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

22 de dezembro de 2010

O maior clássico da literatura universal

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Reproduzo abaixo um post dos tempos do Óleo do Diabo (e aproveito para publicar o desenho que o Latuff - defensor do nome Óleo do Diabo - fez pra mim outro dia num boteco da Lapa),



porque é um tema que me interessa sumamente e como tentativa de virar a página da polêmica desagradável em que me meti nos últimos dias. Sou um cara da paz, não gosto de briga.

Há uma outra razão para mudar de assunto radicalmente: o noticiário político, com esse vai-e-vem de ministros, está muito chato. O post abaixo, portanto, é algo eu queria reler e estudar com atenção, traz links que gostaria de revisitar.  E quero voltar a trocar ideias sobre esse livro - o post é sobre a Ilíada - com as pessoas que o conhecem, ou querem conhecê-lo.

Aproveito para desejar bom feriado a todos. O blog deve reduzir o ritmo nos próximos dias.

Abaixo o post mencionado:

O maior clássico da literatura universal

Às vezes acho que a Ilíada é o maior clássico da literatura universal. Todos os elementos de um romance moderno estão presentes. Mais que isso, os germes da cultura ocidental, esse caldo de orgulho, caos, ambição, generosidade, fervilham nas páginas dessa obra - cuja força dramática e estrutura formal harmonizam-se de forma tão sofisticada que chego a duvidar se houve alguma que jamais se lhe igualou.

O livro narra a famosa guerra de Tróia, e sua veracidade histórica hoje, depois de altos e baixos (anos de adventismo absoluto seguidos de ceticismo total), é bastante respeitada. Mas isso não importa tanto, já que, havendo ou não deturpado fatos reais, o glorioso relato de Homero tornou-se a primeira grande coluna da civilização grega, feita de material muito mais duradouro que o mármore das ruínas de Atenas.

Não há escritor ocidental que não seja herdeiro direto da tradição homérica. Até o início do século XX, quase todos os grandes escritores tinham bom conhecimento da língua de Sócrates.

Abaixo uma transliteração fonética dos primeiros versos da Ilíada:

menin aeide thea Peleiadeo Achileos
oulomenen, he muri' Achaiois alge' etheke

Os mesmos versos no original:

μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί' Ἀχαιοῖς ἄλγε' ἔθηκεν

Que significam:

Canta, deusa, a ira de Aquiles, filho de Peleus, a terrível ira que trouxe incontáveis desgraças aos Aqueus

A sua tradução literal é assim:

Ira canta deusa filho-de-Peleus Aquiles
Terrível, que incontáveis Aqueus aflições causou

A primeira palavra da Ilíada - μῆνιν - é pronunciada "menin" e significa "ira". Mênin. A primeira letra é nossa conhecida. É um m. A segunda é uma letra exclusivamente grega, o ῆ, o êta, que corresponde a nosso "ê". O ν deles é nosso n. Em seguida, outra velha conhecida, a letra i, ou ι. Menin. A palavra está declinada no acusativo, ou objeto direto. Em sua forma nominativa, escreve-se μῆνις e pronuncia-se Mênis. O ς grego tem sempre o som de s. A ira de Aquiles. μῆνιν Ἀχιλῆος. Menin Aquileos.

Na internet, há diversos sites com audios da Iliada no original. O melhor, para mim, é esse, de Stanley Lombardo.

Além da beleza poética, a Ilíada apresenta qualidades insuperáveis de estrutura romanesca, com diálogos extremamente divertidos. A história inicia, como se sabe, com uma briga entre Aquiles e Agamenon. Aquiles é um príncipe e chefe militar, mas de um reino relativamente pobre. Sua fama advém de suas inigualáveis habilidades marciais. É o maior guerreiro da história antiga. Tem uma personalidade irascível e soberba. Agamenon, por sua vez, é o chefe supremo dos exércitos reunidos às praias de Tróia e, de longe, o mais rico e poderoso de todos os monarcas gregos. Obrigado a restituir Criseis, sua escrava e amante, capturada durante as primeiras escaramuças em cidades vizinhas de Ílion (como Tróia é chamada pelos gregos), e irritado contra Aquiles, que o provoca constantemente, em público, Agamenon decide apossar-se da garota de Aquiles, Briseis, também uma cativa de guerra. Trata-se de uma afronta deliberada, um gesto que visa humilhar e desmoralizar Aquiles, que a suporta, todavia, sem reagir, em virtude da imensa superioridade militar de Agamenon. Atenas, a formosa deusa da inteligência e da guerra, aconselha-o a ser prudente e desafogar-se apenas verbalmente. O guerreiro, então, vocifera sua indizível cólera contra Agamenón, através do seguinte discurso (observem a liberdade com que Aquiles se dirige ao rei mais poderoso entre os gregos):

- Miserável! Bêbado! Tens a cara e a sem-vergonhice de um cachorro e o coração mais frouxo que de um bezerro! Covarde, que jamais teve a coragem de empunhar armas à frente de teus exércitos! (...) Rei tirano de teu povo, que se não mandasse em homens tão vis, seria este o último ultraje que fazes!

Sua arenga raivosa vai longe. Reproduzi apenas um pequeno trecho. O episódio revela que os gregos, na sua antiguidade (a Iliada é escrita 800 anos antes de Cristo e a guerra de Tróia havia ocorrido uns 500 ou 600 anos antes), já eram um povo que cultivava uma enorme liberdade de expressão e onde os reis, assim como os deuses, eram tratados como homens, igualitariamente.

Gosto de especular com a história antiga. Observo, por exemplo, que a Palestina, onde nasceu Jesus, é bastante próxima dos gregos e das nações onde afloraram os maiores gênios da arte e da filosofia, como o próprio Homero. Teriam os livros gregos chegado à Palestina daquela época? Teria Jesus lido os gregos? É possível. A Palestina era colonizada pelos romanos, os quais rendiam constante tributo à cultura e à lingua grega. Todos os homens cultos de Roma sabiam grego. O Novo Testamento, aliás, segundo muitos estudiosos, foi escrito em grego, e somente depois traduzido para o Latim.

*

Assim meu tempo escorre, tranquilamante, entre a Ilíada e Nine Stories, de J.D.Salinger. Os cães prosseguem latindo na pradaria. Eu os ouço pela manhã, quando leio jornais e colho meu balaio diário de café. O país vai bem e a mídia vai mal, graças a Atenas. A felicidade, enquanto isso, a gente cata na rua, nos bares, entre uma frase e uma risada, nos livros, nos discos de Charlie Parker.

*

Aliás, por falar em Parker, que tal ler o conto O Perseguidor, de Julio Cortazar, uma deliciosa ficção em torno do louco jazzista negro americano?

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Grande Sertão Veredas, diz Alexei Bueno, e eu assino embaixo, é nossa Ilíada.

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Quer viajar um pouco no grego antigo? Curte esse site. (Primeiro tem que instalar, se não o tiver feito, o Quick Time).

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Quem se interessar por estudar a Iliada no original, sugiro esses três sites:

1) http://www.library.northwestern.edu/homer/html/application.html
2) http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text.jsp?doc=Perseus:text:1999.01.0133
3) http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/grkol-2-X.html

5 de dezembro de 2010

O poema de Gutemberg

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Meus caros, esse é mais um livro-blog, com um ensaio bem legal que eu escrevi sobre filosofia de comunicação de massa, inspirado no Leviatã, de Thomas Hobbes. Vou vendê-lo a um custo bem barrratinho. R$ 5,00. Se fosse um livro normal, acho que daria umas 80 páginas, e se trata de um trabalho que faz um análise bem pertinente aos dias atuais.

Para adquirir, é só clicar no botão abaixo, daí eu cadastro pra você poder acessar o livro-blog. Só tem uma restriçãozinha, que ainda não consegui resolver. Para ler tem que ter um email do Gmail. Não se preocupe em me enviar email com comprovante porque o Pay Pal faz isso automaticamente.

Se preferir, faça um depósito. As contas estão na página da Carta Diária.

26 de novembro de 2010

Literatura, sempre

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Tive outra ideia interessante. Peguei um livro de contos inédito meu, intitulado Rua do Rezende, e fiz um livro-blog. Caso vocês não saibam, além de blogueiro, sou escritor, ou pelo menos venho tentando sê-lo há um bocado de tempo. Uma vez, lancei um livro intitulado Contos para Ler no Botequim. E agora tinha esse engavetado, que eu esperava publicar por uma editora. Um dos problemas, porém, é que eu me tornei muito viciado na plataforma blog, porque ela me permite aprimorar o trabalho indefinidamente. Eu corto um adjetivo aqui, uma vírgula acolá, até atingir algo próximo de um ideal.

Para adquiri-lo, são 15 reais. Você terá acesso a 45 contos, sobre os temas mais variados: aventuras, romantismo, sexo, política, sátiras, humor, metalinguagem e religião

Use o botão do Paypal abaixo, ou faça um depósito nas mesmas contas informadas na página da Carta Diária. Aí você manda um email (gonzumbrasil@gmail.com) com um comprovante, ou pelo menos me informando o dia e a hora da transferência. No mesmo dia, informo-lhe a senha para acessar o blog-livro. Mas tem um detalhe importante, o sistema de acesso com senha no blogspot só funciona com emails do tipo GMAIL. Você terá que fazer um, portanto.

Se fosse um livro normal, teria umas 200 páginas.


Confira um fácsímile da capa do blog-livro:


Outra coisa: tive que tirar o plugin de Post View (visitas) porque o sistema tem um problema. Quando eu faço qualquer correção no post, o contador zera, e como eu edito sistematicamente cada post, mesmo antigos, fica impossível ter ideia de quantas visitas realmente aconteceram.

23 de novembro de 2010

Revista Coyote chega ao número 21

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Recebi o seguinte email do poeta Ademir Assunção, e divulgo abaixo:

Poemas inéditos de Wilson Bueno, conto inédito de João Gilberto Noll, entrevista com a crítica norte-americana Marjorie Perloff, poemas do espanhol Leopoldo María Panero, aforismas de Franz Kafka e um ensaio de Jair Ferreira dos Santos são os destaques da revista COYOTE # 21

“A poesia contorna a Economia. É criação improdutiva como a Festa, o Amor. Não é mercadoria, ignora o interesse, está à margem do calculo” - escreve Jair Ferreira dos Santos em seu ensaio inédito, O Pavão é uma Galinha em Flor, publicado no novo número da revista Coyote que chega às livrarias do Brasil esta semana.

Editada em Londrina (PR), a revista traz poemas e narrativas de dois livros inéditos deixados pelo escritor curitibano Wilson Bueno, brutalmente assassinado em maio deste ano, um conto inédito do escritor gaúcho João Gilberto Noll e uma entrevista com a crítica norte-americana Marjorie Perloff. Julgando boa parte da poesia escrita atualmente como "prosa preguiçosa", Perloff dispara: "Minha principal crítica hoje é em relação a falta de interesse no aspecto sonoro e visual da maior parte da poesia que aparece sobre minha mesa".

Coyote 21 apresenta ao público brasileiro a poesia radical do espanhol Leopoldo María Panero, traduzido por Vinícius Lima, e aforismas de Franz Kafka, traduzidos por Silveira de Souza. A revista traz também a poética de Mariana Ianelli e apresenta a literatura de Ivan Justen Santana e Mario Domingues, dois novos talentos da poesia paranaense, além de um conto do londrinense Marco Fabiani.

Fotografias da série Autodesconstrução, da artista pernambucana Priscilla Buhr, complementam a edição.

A revista Coyote prossegue abrindo espaço para novos autores, resgatando e apresentando nomes importantes das letras e das artes, de épocas e lugares diferentes, instigando a reflexão e a criação literária. Patrocinada pelo PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) da cidade de Londrina, Coyote é editada pelos poetas Ademir Assunção, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes.

COYOTE 21 // 52 páginas // R$ 5,00 (Londrina) e R$ 10,00 (outras cidades) Uma publicação da Kan Editora. Distribuição nacional Editora Iluminuras.

Vendas em livrarias de todo o país pela Editora Iluminuras – fone (11) 3031-6161. Pode também ser adquirida pela internet através do site: www.iluminuras.com.br

Contatos: losnak@onda.com.br/zonabranca@uol.com.br/rgarcialopes@gmail.com

PATROCÍNIO: PROMIC - PROGRAMA MUNICIPAL DE INCENTIVO A CULTURA – PREFEITURA MUNICIPAL DE LONDRINA - SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA DE LONDRINA

blog: http://zonabranca.blog.uol.com.br
site: http://zonabranca.sites.uol.com.br

4 de agosto de 2010

PSDB pede que Serra peça esmola & FLIP

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Carta Diária Óleo do Diabo, Quarta-Feira 4 de agosto de 2010

Essa é demais...


Perderam a noção do ridículo. Os tucanos deveriam ter um mínimo de dignidade.

E o Globo faz uma coisa que eu acho super nojenta, que é devassar a vida de indivíduos apenas por suas ligações, mesmo que indiretas, com o PT. Eu fui brincalhão e muita gente achou graça, mas a coisa é séria. O pasquim de Kamel realmente resolveu perseguir a feiosa filha do Guido Mantega e publicou hoje uma matéria em que expõe os detalhes mais íntimos da moça, inclusive de suas redes sociais.

*

A Flip foi muito infeliz em convidar Fernando Henrique Cardoso para abrir a Flip em pleno ano eleitoral. Podia chamá-lo no ano passado ou em 2011.

Mas achei positiva a homenagem a Gilberto Freyre, um antropólogo cujos livros são obras-primas literárias. Eu já li Casa Grande & Senzala umas três vezes e leria mais três. O próprio Freyre sabia que era essencialmente um escritor, mas, segundo ele, a sua condição de nordestino e a sua formação, o forçava a ser antes de tudo um homem inteiro, um cidadão completo que usava, na escrita, todas as suas faculdades e conhecimentos, aliando a verve afiadíssima a uma postura política firme perante o mundo. As acusações de conservadorismo que sua obra sofreu deveram-se em parte a seu posicionamento partidário, anos mais tarde, quando se alinha a Lacerda. Mas não acho Casa Grande um livro conservador; muito pelo contrário, acho uma abordagem teoricamente revolucionária da realidade. Freyre inaugura no Brasil a análise histórica e política não-sectária, criativa, iluminista, onde se leva em conta não apenas os fundamentos da economia, mas também a sensibilidade, a emoção, o sexo, o amor. Aprovo entuasiasticamente essa maneira de analisar o mundo. O homem, a sociedade, e suas formas econômicas e políticas, não devem ser vistos como objetos inanimados. Freyre mostra que a forma mais científica e esclarecida de entender o homem é procurar vê-lo por inteiro, incluindo todas as suas vicissitudes espirituais e românticas, mesmo as aparentemente insignificantes.

*

O site do PSDB, Mobiliza, já está publicando a resposta do PT à acusação que o índio-vice fez ao partido. O engraçado é que, apesar da resposta não constar na capa do Mobiliza, ela consta no ranking automático dos "Mais lidos" do próprio site. A tentativa de ocultá-la, portanto, não deu certo.



Tags: Serra, arrecadação, Gilberto Freyre, Flip, eleições 2010

12 de abril de 2010

FHC, por Millor Fernandes

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(Xue Song, Time, 2007 -
Mixed -media on canvas, 150 x 120 cm)

Encontrei um texto no Esquerdopata que eu não conhecia. É muito bom. Trata-se de uma obra-prima de Millor Fernandes, intitulada...

*

O pensamento de FHC analisado por Millôr Fernandes

LIÇÃO PRIMEIRA

De uma coisa ninguém podia me acusar — de ter perdido meu tempo lendo FhC (superlativo de PhD). Achava meu tempo melhor aproveitado lendo o Almanaque da Saúde da Mulher. Mas quando o homem se tornou vosso Presidente, achei que devia ler o Mein Kampf (Minha Luta, em tradução literal) dele, quando lutava bravamente, no Chile, em sua Mercedes (“A mais linda Mercedes azul que vi na minha vida”, segundo o companheiro Weffort, na tevê, quando ainda não sabia que ia ser Ministro), e nós ficávamos aqui, numa boa, papeando descontraidamente com a amável rapaziada do Dops-DOI-CODI.

Quando, afinal, arranjei o tal Opus Magno — Dependência e Desenvolvimento na América Latina — tive que dar a mão à palmatória. O livro é muito melhor do que eu esperava. De deixar o imortal Sir Ney morrer de inveja. Sem qualquerpartipri, e sem poder supervalorizar a obra, transcrevo um trecho, apanhado no mais absoluto acaso, para que os leitores babem por si:

“É evidente que a explicação técnica das estruturas de dominação, no caso dos países latino-americanos, implica estabelecer conexões que se dão entre os determinantes internos e externos, mas essas vinculações, em que qualquer hipótese, não devem ser entendidas em termos de uma relação “casual-analítica”, nem muito menos em termos de uma determinação mecânica e imediata do interno pelo externo. Precisamente o conceito de dependência, que mais adiante será examinado, pretende outorgar significado a uma série de fatos e situações que aparecem conjuntamente em um momento dado e busca-se estabelecer, por seu intermédio, as relações que tornam inteligíveis as situações empíricas em função do modo de conexão entre os componentes estruturais internos e externos. Mas o externo, nessa perspectiva, expressa-se também como um modo particular de relação entre grupos e classes sociais de âmbito das nações subdesenvolvidas. É precisamente por isso que tem validez centrar a análise de dependência em sua manifestação interna, posto que o conceito de dependência utiliza-se como um tipo específico de “causal-significante’ — implicações determinadas por um modo de relação historicamente dado e não como conceito meramente “mecânico-causal”, que enfatiza a determinação externa, anterior, que posteriormente produziria ‘conseqüências internas’.”

Concurso – E-mail:

Qualquer leitor que conseguir sintetizar, em duas ou três linhas (210 toques), o que o ociólogo preferido por 9 entre 10 estrelas da ociologia da Sorbonne quis dizer com isso, ganhará um exemplar do outro clássico, já comentado na primeira parte desta obra: Brejal dos Guajas — de José Sarney.

LIÇÃO SEGUNDA

Como sei que todos os leitores ficaram flabbergasted (não sabem o que quer dizer? Dumbfounded, pô!) com a Lição primeira sobre Dependência e Desenvolvimento da América Latina, boto aqui outro trecho — também escolhidoabsolutamente ao acaso — do Opus Magno de gênio da “profilática hermenêutica consubstancial da infra-estrutura casuística”, perdão, pegou-me o estilo. Se não acreditam que o trecho foi escolhido ao acaso, leiam o livro todo. Vão ver o que é bom!

Estrutura e Processo: Determinações Recíprocas

“Para a análise global do desenvolvimento não é suficiente, entretanto, agregar ao conhecimento das condicionantes estruturais a compreensão dos ‘fatores sociais’, entendidos estes como novas variáveis de tipo estrutural. Para adquirir significação, tal análise requer um duplo esforço de redefinição de perspectivas: por um lado, considerar em sua totalidade as ‘condições históricas particulares’ — econômicas e sociais — subjacentes aos processos de desenvolvimento no plano nacional e no plano externo; por outro, compreender, nas situações estruturais dadas, os objetivos e interesses que dão sentido, orientam ou animam o conflito entre os grupos e classes e os movimentos sociais que ‘põem em marcha’ nas sociedades em desenvolvimento. Requer-se, portanto, e isso é fundamental, uma perspectiva que, ao realçar as mencionadas condições concretas — que são de caráter estrutural — e ao destacar os móveis dos movimentos sociais — objetivos, valores, ideologias —, analise aquelas e estes em suas relações e determinações recíprocas. (…) Isso supõe que a análise ultrapasse a abordagem que se pode chamar de enfoque estrutural, reintegrando-a em uma interpretação feita em termos de ‘processo histórico’ (1). Tal interpretação não significa aceitar o ponto de vista ingênuo, que assinala a importância da seqüência temporal para a explicação científica — origem e desenvolvimento de cada situação social — mas que o devir histórico só se explica por categorias que atribuam significação aos fatos e que, em conseqüência, sejam historicamente referidas.

(1) Ver, especialmente, W. W. Rostow, The Stages of Economic Growth, A Non-Communist Manifest, Cambridge, Cambridge University Press, 1962; Wilbert Moore, Economy and Society, Nova York, Doubleday Co., 1955; Kerr, Dunlop e outros, Industrialism and Industrial Man, Londres, Heinemann, 1962.”

Comentário do Millôr, intimidado:

A todo momento, conhecendo nossa precária capacitação para entender o objetivo e desenvolvimento do seu, de qualquer forma, inalcançável saber, o professor FhC faz uma nota de pata de página. Só uma objeçãozinha, professor. Comprei o seu livro para que o senhor me explicasse sociologia. Se não entendo o que diz, em português tão cristalino, como me remete a esses livros todos? Em inglês! Que o senhor não informa onde estão, como encontrar. E outra coisa, professor, paguei uma nota preta pelo seu tratado, sou um estudante pobre, não tenho mais dinheiro. Além do que, confesso com vergonha, não sei inglês. Olha, não vá se ofender, me dá até a impressão, sem qualquer malícia, que o senhor imita um velho amigo meu, padre que servia na Paróquia de Vigário-Geral, no Rio. Sábio, ele achava inútil tentar explicar melhor os altos desígnios de Deus pra plebe ignara do pequeno burgo e ensinava usando parábolas, epístolas, salmos e encíclicas. E me dizia: “Millôr, meu filho, em Roma, eu como os romanos. Sendo vigário em Vigário-Geral, tenho que ensinar com vigarice”.

LIÇÃO TERCEIRA

Há vezes, e não são poucas, em que FhC atinge níveis insuperáveis. Vejam, pra terminar esta pequena explanação, este pequeno trecho ainda escolhido ao acaso. Eu sei, eu sei — os defensores de FhC, a máfia de beca, dirão que o acaso está contra ele. Mas leiam:

“É oportuno assinalar aqui que a influência dos livros como o de Talcot Parsons, The Social System, Glencoe, The Free Press, 1951, ou o de Roberto K. Merton, Social Theory and Social Structure, Glencoe, The Free press, 1949, desempenharam um papel decisivo na formulação desse tipo de análise do desenvolvimento. Em outros autores enfatizaram-se mais os aspectos psicossociais da passagem do tradicionalismo para o modernismo, como em Everett Hagen, On the Theory of Social Change, Homewood, Dorsey Press, 1962, e David MacClelland, The Achieving Society, Princeton, Van Nostrand, 1961. Por outro lado, Daniel Lemer, em The Passing of Traditional Society: Modernizing the Middle East, Glencoe, The Free Press, 1958, formulou em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento, o enfoque do tradicionalismo e do modernismo como análise dos processos de mudança social”.

Amigos, não é genial? Vou até repetir pra vocês gozarem (no bom sentido) melhor: “formulou (em termos mais gerais, isto é, não especificamente orientados para o problema do desenvolvimento) o enfoque (do tradicionalismo e do modernismo) como análise (dos processos de mudança social)”.

Formulou o enfoque como análise!

É demais! É demais! E sei que o vosso sábio governando, nosso FhC, espécie de Sarney barroco-rococó, poderia ir ainda mais longe.

Poderia analisar a fórmula como enfoque.

Ou enfocar a análise como fórmula.

É evidente que só não o fez em respeito à simplicidade de estilo.

Tópico avulso sobre imodéstia e pequenos disparates do eremita preferido dos Mamonas Assassinas.

Vaidade todos vocês têm, não é mesmo? Mas há vaidades doentias, como as das pessoas capazes de acordar às três da manhã para falar dois minutos num programa de tevê visto por exatamente mais ou menos ninguém. Há vaidades patológicas, como as de Madonas e Reis do Roque, só possíveis em sociedades que criaram multidões patológicas.

Mas há vaidades indescritíveis. Vaidade em estado puro, sem retoque nem disfarce, tão vaidade que o vaidoso nem percebe que tem, pois tudo que infla sua vaidade é para ele coisa absolutamente natural. Quem é supremamente vaidoso, se acha sempre supremamente modesto. Esse ser existe materializado em FhC (superlativo de PhD). Um umbigo delirante.

O que me impressiona é que esse homem, que escreve mal — se aquilo é escrever bem o meu poodle é bicicleta — e fala pessimamente — seu falar é absolutamente vazio, as frases se contradizem entre si, quando uma frase não se contradiz nela mesma, é considerado o maior sociólogo brasileiro.

Nunca vi nada que ele fizesse (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, livro que o elevou à glória, é apenas um Brejal dos Guajas, mais acadêmico) e dissesse que não fosse tolice primária. “Também tenho um pé na cozinha”, “(os brasileiros) são todos caipiras”, “(os aposentados) são uns vagabundos”, “(o Congresso) precisa de uma assepsia”, “Ser rico é muito chato”, “Todos os trabalhadores deviam fazer checape”, “Não vou transformar isso (a moratória de Itamar) num fato político”. “Isso (a violência, chamada de Poder Paralelo) é uma anomia”. E por aí vai. Pra não lembrar o vergonhoso passado, quando sentou na cadeira da prefeitura de São Paulo, antes de ser derrotado por Jânio Quadros, segundo ele “um fantasma que não mete mais medo a ninguém”.

Eleito prefeito, no dia seguinte Jânio Quadros desinfetou a cadeira com uma bomba de Flit.

E, sempre que aproxima mais o país do abismo no qual, segundo a retórica política, o Brasil vive, esse FhC (superlativo de PhD) corre à televisão e deita a fala do trono, com a convicção de que, mais do que nunca, foi ele, the king of the black sweetmeat made of coconuts (o rei da cocada preta), quem conduziu o Brasil à salvação definitiva e à glória eterna. E que todos querem ouvi-lo mais uma vez no Hosana e na Aleluia. Haja!

Millôr Fernandes

4 de janeiro de 2010

Primeiras Estórias

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(Igreja Nossa Senhora de Fátima, da rua do Riachuelo, Lapa, RJ)



No livro de Rosa cujo título é o mesmo desse post, há um conto com um título fabuloso, O cavalo que bebia cerveja. É um conto repleto de suspense, sobre um estrangeiro que adquire uma chácara em lugar isolado do interior do Brasil, e desperta curiosidade e espanto por suas estranhezas.

Guimarães Rosa é um dos autores mais sofisticados da literatura universal. Tenho para mim que Grande Sertão é a grande obra literária do século XX, em todas as línguas, superando mesmo Ulisses, de James Joyce. A obra marca o fim do Brasil rural e o advento de uma grande nação urbana. Há essa dicotomia no livro: grandeza, lirismo, hermetismo, vem das regiões quase secretas do continental e misterioso sertão brasileiro; o cosmopolitismo idiomático, a impressionante modernidade, o ritmo galopante, sinalizam o país das cidades monstruosas, violentas, com suas noites intermináveis, barulhentas, fascinantes.

O personagem principal do conto, o rapaz que vai trabalhar na chácara do italiano, também traz o emblema nacional: indisciplinado, arredio, orgulhoso, valente, ingrato, corrupto, emotivo. Encarna defeitos e virtudes da alma brasileira, que ainda é tão mal compreendida pelos próprios brasileiros.

*

Hoje li no blog do Nassif que o Brasil ostenta um invejável e competitivo perfil demográfico, sendo esta uma das qualidades que vem atraindo tantos investimentos estrangeiros: temos, comparativamente a outros países, poucos velhos e crianças, e muitos trabalhadores adultos. Ou seja, uma grande quantidade de contribuintes para a previdência. O contrário do que ocorre na Europa e Japão, que vivem momentos extremamente difíceis neste sentido, em função da predominância de idosos no conjunto da população, o que sobrecarrega seus sistemas previdenciários.

Aposentados do Brasil, dormi tranquilos, portanto! No Brasil, vocês ainda são peso leve! Na verdade, sabemos que os aposentados brasileiros são verdadeiros pilares da família nacional. Em milhões de lares, sua renda é a única disponível. Por isso eu permaneço defendendo reajustes nas aposentadorias, incluindo, é claro, os que ganham mais de um salário mínimo.

*

Uma coisa não deve mudar muito. A batalha da contra-informação seguirá intensa. Não apenas pelo golpismo midiático, que aliás até arrefeceu nas últimas semanas, seguramente acuado pela incrível popularidade do presidente, mas pela própria razão de ser da blogosfera, que é, entre outras coisas, arrancar o tocha da opinião pública das mãos de meia dúzia de donos de jornais.

Nesta linha, quero comentar dois textos que me incomodaram nos últimos dias. Um deles é de Luiz Carlos Bresser-Pereira, publicado hoje no Caderno Dinheiro da Folha de São Paulo. Bresser-Pereira faz especulações ideológicas rasteiras, manjadas, tão ao gosto de César Maia, segundo as quais conceitos como "ordem", "estabilidade", "segurança", seriam conservadores, de direita, e que Lula apenas conseguiu vencer eleições e manter a popularidade porque os cultivou. O povão de Lula, segundo Bresser-Pereira, sempre votou na direita, "desde a eleição de Collor". Acho incrível como se pretende fazer ciência eleitoral com base em dois ou três pleitos. Noblat lembra que JK não não transferiu votos em 1960, mesmo fazendo o país crescer mais do que hoje, e conclui que não há transferência de votos no Brasil. Omite, claro, detalhes como descontrole inflacionário, ausência de programas sociais, política concentradora de renda, e o fato de que, na época, havia um enorme contingente populacional que não votava, por não possuir título de eleitor.

Outro artigo que me irritou, e por causa do mesmo tipo de indigência argumentativa sobre a contemporânea clivagem ideológica foi de Ferreira Gullar, publicado na Ilustrada da Folha, edição de domingo. Que coisa triste! O grande poeta terminar seus dias escrevendo esse amontoado de lugares-comuns midiáticos, falsos, bobos, tão facilmente desmascaráveis! A tática é a mais surrada de todas: atribuir o sucesso de Lula unicamente a sua "adesão" à política de FHC. A tentativa de Gullar, todavia, é uma das mais toscas das milhares que pululam na imprensa diariamente. Não tenho paciência para desmascarar todos os clichês bobocas que Gullar repercute. Apenas deixo registrado esse protesto.



Não entendo porque Gullar não usa seu espaço na Ilustrada, um caderno cultural, para falar de... cultura. Podia discorrer sobre artes plásticas, tema em que se especializou, ou comentar sobre a nova poesia brasileira. Não, Gullar quer escrever sobre política, mas não traz nunca nenhum pensamento original. Nem sua linguagem é interessante. Escreve em formato convencional, enjoado, repetitivo, sempre em tom ranzinza e aborrecido.