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21 de janeiro de 2009

Arquivo: Ensaio sobre o filme Cidade de Deus

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Esse artigo, publicado originalmente no extinto site Arte & Política, circulou muito pela internet, sendo reproduzido no site Janela Indiscreta. Se não me engano, é um artigo escrito em 2001 ou 2002.

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A volta do marginal




Ensaio sobre o filme Cidade de Deus

Com o filme Cidade de Deus se consolida uma nova escola do cinema brasileiro contemporâneo, superando inclusive a "Retomada", como está sendo conhecido a etapa que se seguiu ao vácuo do início dos anos 90, após o fim da Embrafilme, com os lançamentos de Carlota Joaquina e, um pouco mais tarde, Terra Estrangeira, sob os auspícios da Lei do Audivisual. A exploração estética da poesia suburbana das metrópoles representa um ressurgimento triunfal da idéia preconizada por Glauber Rocha, que nos anos 60 escrevia que o cinema dos países periféricos só alcançaria produzir um efeito estético contundente através da manipulação artística da violência e da fome. O rebelde politizado de Glauber, porém, será substituído pelo bandido cínico do cinema marginal pós-64, como por exemplo o Bandido da Luz Vermelha, visto que a produção cinematográfica estará sob severa vigilância da censura militar.

Esta nova estética marginal do cinema brasileiro não deve ser confundida com a eterna paixão pelo gangsterismo de holliwood, embora as influências sejam inevitáveis. Enquanto o bandido americano (Poderoso Chefão, Scarface, Bons Companheiros, Pulp Fiction) é um capitalista que optou pelo enriquecimento fácil, ou então um caso de perturbação psicológica (Psicose, Kannibal), o bandido brasileiro é mostrado sempre como uma vítima social, um rebelde cínico ou politizado, cujos valores morais foram submergidos por circunstâncias alheias à sua vontade.

Um épico da modernidade - Nesta volta surpreendente da estética marginal, o mesmo herói bandido aparece inserido num contexto sócio-político definido com assombrosa lucidez e encaixado numa película elaborada com um profissionalismo de fazer inveja aos melhores técnicos de holliwood.
Embora a censura tenha se esvaído com o fim da ditadura, os cineastas continuam vigiados por executivos dos departamentos de publicidade que aprovam os projetos de patrocínio. Os heróis marginais de Cidade de Deus, por exemplo, não têm nenhum discurso político consistente, porque são totalmente, ou quase, analfabetos. Ainda não é o momento do cinema engajado, se é que ele terá seu momento, já que a arte não necessita de uma forma explícita para atingir um determinado objetivo estético ou político. O ritmo da câmera, a música, as cores, enfim a linguagem, serão suficientes para influenciar a percepção moral dos personsagens. Através destes recursos, Meirelles consegue iluminar os bandidos com uma luz que parece vir da consciência do espectador, que lhes compreende o desvio moral como resultado da realidade dolorosa do Rio ou de qualquer outra metrópole.

Universalismo - Trata-se, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título bíblico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama épico. Mesmo a guerra das gangues tem um motivo digno da Ilíada: o estupro da mulher de Zé Galinha lembra o rapto de Helena, e a fúria titânica do vingador aparece como a ira de Ulisses. Nesta parte mesma, o narrador diz: "só mesmo um milagre... mas existe um lugar melhor para um milagre do que uma cidade com o nome de Cidade de Deus?". E Zé Galinha, como que protegido por Atenas, deusa da guerra, irrompe atirando, sozinho, contra um bando de mais de doze homens armados, colocando-os em fuga e matando um deles. As mulheres que o rodeiam, enquanto ele observa sua primeira vítima, recordam o coro de uma tragédia grega, expressando os pensamentos da comunidade: "Legal você... Matou bem... Esse foi um, mas ainda não foi todos...".

A galinha em pânico - Voltemos ao início do filme. Churrasco, samba, cerveja, caracterizam, em traços rápidos e precisos, o ambiente da favela. A alegria é contagiante, envolve completamente o público através do contraste desconcertante entre a realidade vibrante da comunidade e a imobilidade quase mórbida da sala de cinema. A galinha, esse personagem inesquecível, símbolo do ser em perigo, do medo e, enfim, da fuga, a galinha escapa da morte, com suas próprias pernas, e pôe-se a correr pelas ruelas, acompanhada pela câmara que, assim, apresenta o público à Cidade de Deus. A cena continua alegre, apesar dos empurrões que Zé Pequeno dá nas pessoas que atravessam seu caminho. Uma introdução clássica, idílica, que mostra de quebra o adorável vestígio rural da periferia onde as galinhas ainda são compradas vivas. Em poucos quadros, alguns elementos centrais do filme são apresentados: Zé Pequeno, líder de um bando armado, obviamente um traficante, a favela, a inocência constante dos personagens, exacerbada pela presença de crianças no grupo. A galinha chega a uma rua mais larga e encontra Buscapé, ele também um ser em fuga, como mais tarde se evidenciará no filme. Buscapé e o animal se enfrentam, como iguais. Começa de fato o drama. Não admira que uma cena tão espetacular fosse o fio que amarra o começo ao fim da história.

Estética negra - A linearidade da história é total. Depois desta introdução, o filme segue uma ordem lógica e tocantemente simples, dando mostra de uma preocupação peculiar de tornar o filme acessível a qualquer pessoa. E ainda temos um narrador onisciente - o próprio protagonista - que explica, em linguagem coloquial e voz pausada, as origens da favela e outros pontos capitais do filme. O recurso à imobilização das cenas, descansando a vista do espectador e dando tempo para a compreensão de determinada cena ou personagem, e os flash backs, que refrescam a memória ou explicam situações, completam uma linguagem assumidamente didática, legitimando a veracidade absoluta da narrativa. Esta veracidade extremada se desenvolve com diálogos espontâneos e personagens escolhidos a dedo, tipos físicos negros e mestiços absolutamente verdadeiros. Com isso, Meirelles consegue enfim superar o próprio Glauber Rocha, que apesar de sua busca apaixonada pela legitimidade social, não conseguiu nunca transformar o homem do povo em sujeito da narrativa. O vaqueiro Manuel, de Deus e Diabo, assim como Corisco, é um personagem de Glauber, uma fantasia bem construída de um diretor genial, mas o Zé Pequeno e demais personagens da Cidade de Deus não são criações de Meirelles, nem de Paulo Lins. Eles são reais, autônomos, personagens nascidos prontos, senhores de seu mundo e auto-referentes. E aí temos outra característica efetivamente revolucionária de Cidade de Deus, digna de ser louvada como um marco na história do cinema brasileiro: a consolidação estética da beleza negra. Com uma honestidade comovente, Meirelles mostrou a negritude essencial do brasileiro, sem traços finos, sem subterfúgios de espécie alguma, praticamente inaugurando uma nova referência estética-racial para o cinema nacional, ainda fortemente preso a uma estética branca e "global".

Pequenas dissonâncias - É difícil encontrar defeitos em Cidade de Deus, mas uma crítica sincera não pode deixar de opinar sobre os pontos mais problemáticos. Alguns personagens são um pouco mal construídos, como o puxa-saco de Zé Pequeno, embora ele seja importante. O próprio Zé Pequeno, apesar de interpretado magistralmente por Leandro Firmino da Hora, peca por um maniqueísmo exagerado, como vilão de história em quadrinhos, enquanto Bené, seu comparsa, assume ares de bom moço um pouco incoerentes com o seu envolvimento em tantos crimes e assassinatos. Esses defeitos, contudo, se é que são defeitos, fazem parte do filme, como nossos defeitos fazem parte de nossa personalidade.

Falta falar da fotografia e da música. Sobre a primeira, o filme consegue um efeito bastante eficiente, ao conferir uma cor antiga, fosca e tênue, e mesmo em preto e branco, aos períodos mais antigos da história, os anos 60, e cores vivas aos períodos mais recentes. A trilha sonora também participa desta ambientação histórica. A entrada das primeiras cenas dos anos 70 é acompanhada por uma música tipo discoteca que serve como uma descrição perfeita da época. Todas as músicas parecem ter sido feitas especialmente para o filme, desde o emocionante Cartola, que sublinha as cenas mais românticas, até o Seu Jorge, com seu suíngue dançante da cena inicial do churrasco.

O sacrifício dos inocentes - Muitos espectadores devem ter ficado chocados, com razão, com a cena de brutalização de duas crianças pequenas, exacerbada pelo fato de que o autor do disparo mortal em uma delas ser ainda uma criança, também violentada pela coerção da qual é vítima por parte dos bandidos mais velhos. Esta cena, porém, tem um significado crucial e representa, paradoxalmente, o momento mais humanista do filme. É porque ela é construída de maneira a evitar, a todo custo, a banalização da morte. As crianças estão ali, contorcendo-se de medo e dor, diante do espectador impotente. Não são bandidos cínicos e cruéis, nem vítimas anônimas. São crianças, frágeis, aterrorizadas, que haviam participado de um assalto tosco de uma padaria, para roubar frango assado, e que não conseguiram fugir dos algozes no momento que eles surgem para cumprir a lei da favela, que não permite assaltos dentro da comunidade. O espectador participa da cena, a qual é recortada do que vem antes e depois, aprofundando o sentido de estranhamento e perplexidade perante o ato irracional, quase inacreditável, que introduz brutalmente, com uma violência de forma perfeitamente ajustada à violência de conteúdo, uma crítica amarga e ferina a uma sociedade indiferene ao destino das primeiras gerações. Com esta cena, o filme rompe por completo certa solidariedade com o público, a qual é retomada contudo nas cenas seguintes. A participação destes guris, o bando da "caixa baixa", será constante no filme e serão eles, inclusive, que ao fim darão cabo ao vilão-mor da história. A narrativa termina com eles confabulando, de maneira infantil, e terrível, sobre quem deverá morrer na favela.

O galã marginal - O personagem Bené, comparsa boa praça de Zé Pequeno, faz parte do instrumental do diretor para forçar o público a uma atitude compreensiva perante o fenômeno do banditismo. Bené é um rapaz bom, um contra-ponto à ferocidade incontrolável do parceiro. É leal, simpático, carinhoso, sabe amar, sabe ser amigo, e o público não o vê em nenhum momento matando alguém, pelo contrário a sua intervenção é sempre no sentido de preservar a vida dos outros. "Você quer matar todo mundo!", é o protesto que ele repete mais de uma vez para Zé Pequeno. A cena do baile - a despedida de Bené - é um dos pontos altos do filme. Bené conquista o amor da musa da história, Angélica, garota de classe média baixa – filha de um sargento -, que lhe convence a abandonar o crime. Bené não é obcecado pelo poder como Zé Pequeno, ele representa a busca da felicidade. Com o dinheiro do tráfico, ele ascende socialmente, ingressando na turma dos "cocotas", usando roupas de marca, pintando o cabelo de loiro, ganhando um charme irresistível que conquista o público. Após construir uma intensa relação afetiva de Bené com o espectador, o roteirista decide matá-lo no auge da festa, provocando um forte efeito dramático. A despedida de Bené, afinal, era mesmo o fim de sua participação na história. Após sua ida, tudo fica mais sombrio na Cidade de Deus. Bené simbolizava o coração de Zé Pequeno. Sem Bené, o bandido vai desenvolver, sem limites, toda a sua crueldade, como fica claro na primeira cena após a morte do amigo, o estupro da namorada de Zé Galinha. A guerra é deflagrada. Temos um combate. Tiros, muitos tiros. Entra o personagem que vende armas, mancomunado com a polícia. Um personagem espetacular, chamado Tio Sam, numa referência interessante ao principal país produtor de armas do mundo, que gasta tanto dinheiro em repressão de drogas, mas é tão tolerante com o contrabando de armas para o terceiro mundo.

O combate - As cenas de combate, todavia, são apressadas, entrando o filme numa etapa um pouco mais descuidada e fantasiosa, o que revela talvez um certo desinteresse do diretor pelas cenas puras de violência, priorizando os dramas pessoais dos personagens. Apesar de apressadas, contudo, são eficientes e transmitem o efeito desejado, de que uma violência caótica e desorganizada se instalou na Cidade de Deus. Os assaltos do bando de Cenoura e Zé Galinha, por outro lado, são magistralmente encenados, embora bastante rápidos. A entrada de Zé Galinha na história, com todos os seus dilemas morais, reforça novamente a idéia de que um destino trágico, mais do que a má índole, força os personagens a romperem com a ordem jurídica e moral da sociedade.

The End - E aí chegamos ao final do longa-metragem, em que se repete algo da cena inicial. Buscapé, já contratado pelo jornal, consegue a foto desejada. Enquanto as crianças desfilam armadas, adultos anônimos cruzam as ruelas, atarefados. Buscapé conversa com seu amigo sobre suas expectativas profissionais. O narrador diz seu nome verdadeiro: Wilson Rodrigues. Os bandidos se perdem no passado, mortos, presos, distantes em sua aventura tresloucada, ou reduzidos a crianças inconsequentes. O personagem de Buscapé ganha realce, é um rapaz inteligente, esforçado e irremediavalmente honesto, como aliás a grande maioria dos moradores da Cidade de Deus, expostos constantemente às maiores privações, mas sempre dispostos a vencer pelo trabalho. Em tempos pós-modernos, em que não julgar, não se posicionar é sinônimo de qualidade estética, Cidade de Deus termina com uma mensagem moralista explícita e corajosa, como tudo neste filme brilhante, que abre tantas perspectivas novas para o cinema brasileiro.

20 de outubro de 2008

Política X Literatura: a vaidade do preto velho

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Eis um tema que me interessa há bastante tempo, tanto que até enjoei dele. Entretanto, mesmo que não o procure mais, ele vem até a mim, persistente, doloroso. A literatura, segundo eu mesmo, não passa de um nobilíssimo exercício de vaidade, individualista, solitário e divinamente arrogante, um jogo irresponsável, uma aventura suicida e transcendente, um combate obscuro e amoral contra a morte e o tédio, enquanto a política é um vôo de altruísmo, lucidez e sensibilidade social, um teste de coragem, uma luta quixotesca em prol da humanidade e da civilização. Ambos trazem risco, pois não há certezas na política ou nas teorias literárias, apenas fé, pesquisa e amor. Qual a relação, enfim, entre a política e a literatura?

A ligação reside, primeiramente, em quem faz política e escreve literatura: no homem, no sujeito, no escritor enquanto cidadão e no cidadão enquanto artista. Outro ponto que une os dois campos: o uso da palavra e a tentativa de seduzir o leitor. Tanto o escritor como o político querem convencer o leitor de suas verdades, usando contudo ferramentas distintas. O primeiro visa o senso estético, o segundo, o senso ético. As verdades do primeiro são estéticas, subjetivas, captadas pelos sentidos e materializadas na consciência do leitor.

O político, por sua vez, apela ao senso ético do eleitor, usando argumentos que atinjam seu lado racional, mesmo que atravessando seu inconsciente. Eleitores tendem a votar em candidatos com os quais se identificam. Leitores gostam de autores com os quais sentem alguma afinidade.

Os dois campos realizam-se em esferas absolutamente distintas, absolutamente singulares. A mistura entre as duas mediocriza a arte e debilita a política. É o que ocorre quando se vota em candidatos por conta de sua suposta "habilidade" ou "cultura" literária, ou se projeta luz sobre autores utilizando critérios estranhos à arte. Outro dia, folheei um romance de Tariq Ali, escritor paquistanês radicado em Londres, famoso e sagaz intelectual político. Não gostei, no entanto, da ficção política de Ali. Além de enfadonho, não deixa de ser previsível, mesmo onde o autor tenta ser original.

A questão permanece em mim, incômoda, e sinto alívio ao descobrir autores que conseguem unir os dois campos de forma brilhante, como Dostoievski, com todos os seus livros, principalmente em Irmãos Karamazov e n'Os Demônios, e Kafka, n'O Processo. Recentemente, um autor contemporâneo, Philip Roth, chegou perto, em Complô contra a América, um romance que inicia maravilhosamente, desenvolve-se bem, mas termina com um rotundo clichê, resultado da covardia do escritor em afrontar os tabus norte-americanos.

Ao contrário do que pensa o senso comum, a politização do texto literário ocorre, na maioria das vezes, quando o autor omite o fator político, o que é um fenômeno tipicamente brasileiro, resultado talvez de tantas décadas de ditadura militar. Por isso, às vezes se acusa o texto literário contemporâneo, no Brasil, de ser hermético, chato, pernóstico. Trata-se de uma escolha política. Não por ser "difícil" ou "elitista", por "não saber contar uma história". Escreve-se o que se sente, e não segundo um plano deliberado. A literatura vêm das entranhas e dirige-se às entranhas, e há autores de todos os tipos. A crítica destina-se, em verdade, à hierarquia promovida por mídia e curadores de eventos literários, embora não tenha coragem de assumir-se desta maneira - desvirtuando-se assim num ataque aos autores, que não têm culpa por seu hermetismo ou "chatice".

Minha experiência como blogueiro, por exemplo, mostrou-me que o interesse das pessoas pelo texto político também passa por um crivo estético, e por outro lado, os escritores que tentam interferir na política costumam falhar porque subestimam a exigência linguística do leitor não-literário: clareza, verossimilhança, agilidade verbal, persuasão, lucidez. Uma coisa que sempre me aborrece é valoração de textos ou opiniões por conta de serem emitidas por um "nome famoso". Quer dizer, compreendo o fato, compreendo o valor de uma opinião expressa por uma personalidade consagrada por seu trabalho intelectual. Mas o texto literário, e sobretudo o texto político, valem por si mesmos, têm um brilho próprio e parece-me indigno, por parte de leitor e meios de comunicação, criarem uma hierarquia baseada em nomes, e não no valor substantivo e singular de um texto específico.

23 de julho de 2008

Divagações pós-ideológicas & blasfêmias

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Tanto se fala no fim das ideologias, mas a verdade é que a humanidade já esqueceu o que elas são. Seu significado esgarçou-se, evaporou-se em meio à fumaça dos carros de luxo misturada à marola dos baseados hippies. Em verdade vos digo: minha ideologia hoje são meus livros, meu computador e alguma coisa no bolso pra cerveja, pizza e cinema. E o desejo de escrever, irreversível. Pois bem, ideologias. O problema das ideologias, assim como da política, é que se as confunde com idiossincrassias psicológicas ou culturais. Taí uma coisa que percebi há tempos. Esquerdistas e direitistas desenvolveram vícios de pensamento, uns preconceitos bobos, inclusive preconceito contra o preconceito. Partindo da premissa que é impossível viver sem preconceitos, sob o risco de nos tornarmos um software do Greenpeace, que se nos permitam tê-los. Que se nos permitam ser hipócritas, preconceituosos e maus. Isso que irrita na esquerda. A pretensão de ser bom. Ser bom não é uma questão de ideologia ou linguagem, mas de simpatia e generosidade. Já fui comunista, anarquista, capitalista, hoje percebo que esses conceitos são artificiais. Não existe capitalismo, por exemplo. Existe democracia. Por isso, os direitófilos são tão nervosos e insatisfeitos com o mundo. Outro dia, li num blog um cara dizendo que os banqueiros estão apoiando os esquerdistas do Brasil, e clama por uma articulação da direita junto aos trabalhadores. Eles acreditam que o mundo atual é socialista. É de morrer de rir. E dá o que pensar.

No entanto, respeito a política. Assim como os médicos. No fundo, sou uma besta em política assim como em medicina. Sou um escritor, e só. E defendo minha classe e que ela tenha mais poder e mais dinheiro. Não pensem, contudo, que ser escritor vale grande coisa. Vale porra nenhuma, ainda mais no Brasil, terra de analfabetos funcionais. Respeito, ia dizendo, os políticos, os médicos e os pipoqueiros. Todos dignos e úteis à sociedade. Agora, não acredito num capitalismo que subsidia grandes agricultores, bancos, seguradoras e complexos militares privados. Que merda de capitalismo é esse? No entanto, esse é o capitalismo americano, europeu, japonês. É um estatismo pior que o comunismo, porque este ao menos ainda provê educação gratuita. Mas não sou comunista porque sou doido, como diria Fernando Pessoa, "com todo o direito a sê-lo, ouviram?", e como todo doido defendo o individualismo. Os loucos são grandes individualistas, porque se acham tão diferentes, tão estranhos.

E o talento. Acredito no talento. Assim como no fracasso. Acredito que os fracos, os bunda-moles e os medrosos têm tanta dignidade quanto seus antípodas, os valorosos. Essa é minha ideologia, que não é das melhores. Talvez seja cristã. Tudo bem, eu supero. Tem uns leitores do blog, uns caras legais, que gostam do que eu escrevo, que andam protestando das minhas divagações blasfemas sobre Deus. Eu andei dizendo que as pessoas não devem confiar tanto em Deus, pois se Ele não conseguiu impedir uma moça inocente como Eva de comer uma maçã, como irá controlar a vontade de três bilhões de mulheres ambiciosas, querendo enganar outras mulheres e todos os homens? Mas sobre isso eu falo depois.

Voltando às ideologias, sempre defendi o individualismo, a liberdade e a democracia. A vaidade também. E o direito de errar e não ser humilhado por isso. Não aceito humilhação. Sei que ela é inevitável e inerente à liberdade que escolhi para mim e para os outros. Mas me revolta ver alguém ser humilhado, mesmo um adversário. Também não concordo com nosso sistema penal. Ninguém devia ir para a cadeia. Só os notoriamente psicopatas e sociopatas. Os outros deviam expiar seu crime trabalhando e pagando multas. Por isso não me tenho orgasmos com Daniel Dantas indo para a cadeira: ficaria mais satisfeito se a Justiça o obrigasse a doar uns vinte bilhões de reais aos pobres do Brasil.

Não acredito em ismos e sim em idéias práticas. Por exemplo, todas as estradas, ruas e avenidas deveriam ter um espaço protegido para pedestres e ciclistas. Acho simplesmente irracional que não seja assim, que um carro tenha direito a trânsito e uma pessoa não. Também acho que o Estado deveria criar uma estatal de aluguel de carros, para estimular as pessoas a, em vez de comprarem carro, alugarem-no na filial mais próxima, podendo entregá-lo em qualquer outra loja da mesma empresa. Idéias, idéias. E também bibliotecas. Espalhar bibliotecas públicas pelo país. E redes gratuitas de wifi.

As pessoas subestimam a importância das chamadas guerrinhas sectárias, entre petistas e tucanos. Como em toda guerra, em toda dialética, ali tambem corre uma energia filosófica, uma faísca de criatividade. Segundo Hegel, a verdade reside na própria tensão dialética, no jogo entre tese, antítese e síntese. Um eterno círculo, águas do rio deslizando, eternamente.

Falta, finalmente, uma consciência de classe por parte dos jornalistas, e coragem em assumir posições políticas, e inteligência para compreender o jogo partidário. É preciso defender um governo aliado, por exemplo, sobretudo quando ele erra. Ou seja, nos momentos difíceis. É muito fácil defendê-lo quando as coisas estão bem. Se alguém acreditou na história de que pragmatismo é um defeito, não tem idéia do que seja a vida. São ranços ibéricos, aristocráticos, quase escravagistas, que ainda nos assolam. Pragmatismo é uma das principais qualidades da política. Dom Quixote foi um grande cara. Admiro-o, amo-o. Mas ele era totalmente insano e ridículo. Sancho Pança que o diga. Suas sandices criavam mais problemas do que ajudavam as pessoas. Isso está bem claro no livro de Cervantes.

Boa noite.

1 de julho de 2008

O maior clássico da literatura universal

4 comentarios

Ás vezes acho que a Ilíada é o maior clássico da literatura universal. Todos os elementos de um romance moderno estão presentes. Mais que isso, os germes da cultura ocidental, esse caldo de orgulho, caos, ambição, generosidade, fervilham nas páginas dessa obra - cuja força dramática e estrutura formal harmonizam-se de forma tão sofisticada que chego a duvidar se houve alguma que jamais se lhe igualou.

O livro narra a famosa guerra de Tróia, e sua veracidade histórica hoje, depois de altos e baixos (anos de adventismo absoluto seguidos de ceticismo total), é bastante respeitada. Mas isso não importa tanto, já que, havendo ou não deturpado fatos reais, o glorioso relato de Homero tornou-se a primeira grande coluna da civilização grega, feita de material muito mais duradouro que o mármore.

Não há escritor ocidental que não seja herdeiro direto da tradição homérica. Eu amo tanto esse livro que estou estudando grego antigo para lê-lo no original. Antigamente, o ensino de grego, assim como latim, era obrigatório em escolas públicas. Parece uma excentricidade, e é mesmo - provavelmente eu desista desse empreendimento dentro de alguns dias, como eu fiz com o árabe, o chinês e o alemão. Até o início do século XX, quase todos os grandes escritores tinham bom conhecimento da língua de Sócrates. Seja como for, já consegui ler os primeiros versos.

Abaixo uma transliteração fonética dos primeiros versos da Ilíada:

menin aeide thea Peleiadeo Achileos
oulomenen, he muri' Achaiois alge' etheke

Os mesmos versos no original:

μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί' Ἀχαιοῖς ἄλγε' ἔθηκεν

Que significam:

Canta, deusa, a ira de Aquiles, filho de Peleus, a terrível ira que trouxe incontáveis desgraças aos Aqueus

A sua tradução literal é assim:

Ira canta deusa filho-de-Peleus Aquiles
Terrível, que incontáveis Aqueus aflições causaram

A primeira palavra da Ilíada - μῆνιν - é pronunciada "menin" e significa "ira". Mênin. A primeira letra é nossa conhecida. É um m. A segunda é uma letra exclusivamente grega, o ῆ, o êta, que corresponde a nosso "ê". O ν deles é nosso n. Em seguida, outra velha conhecida, a letra i, ou ι. Menin. A palavra está declinada no acusativo, ou objeto direto. Em sua forma nominativa, escreve-se μῆνις e pronuncia-se Mênis. O ς grego tem sempre o som de s. A ira de Aquiles. μῆνιν Ἀχιλῆος. Menin Aquileos.


Na internet, há diversos sites com audios da Iliada no original. O melhor, para mim, é esse, de Stanley Lombardo.


Além da beleza poética, a Ilíada apresenta qualidades insuperáveis de estrutura romanesca, com diálogos extremamente divertidos. A história inicia, como se sabe, com uma briga entre Aquiles e Agamenon. Aquiles é um príncipe e chefe militar, mas de um reino relativamente pobre. Sua fama advém de suas inigualáveis habilidades marciais. É o maior guerreiro da história antiga. Tem uma personalidade irascível e soberba. Agamenon, por sua vez, é o chefe supremo dos exércitos reunidos às praias de Tróia e, de longe, o mais rico e poderoso de todos os monarcas gregos. Obrigado a restituir Criseis, sua escrava e amante, capturada durante as primeiras escaramuças em cidades vizinhas de Ílion (como Tróia é chamada pelos gregos), e irritado contra Aquiles, que o provoca constantemente, em público, Agamenon decide apossar-se da garota de Aquiles, Briseis, também uma cativa de guerra. Trata-se de uma afronta deliberada, um gesto que visa humilhar e desmoralizar Aquiles, que a suporta, todavia, sem reagir, em virtude da imensa superioridade militar de Agamenon. Atenas, a formosa deusa da inteligência e da guerra, aconselha-o a ser prudente e desafogar-se apenas verbalmente. O guerreiro, então, vocifera sua indizível cólera contra Agamenón, através do seguinte discurso (observem a liberdade com que Aquiles se dirige ao rei mais poderoso entre os gregos):

- Miserável! Bêbado! Tens a cara e a sem-vergonhice de um cachorro e o coração mais frouxo que de um bezerro! Covarde, que jamais teve a coragem de empunhar armas à frente de teus exércitos! (...) Rei tirano de teu povo, que se não mandasse em homens tão vis, seria este o último ultraje que fazes!

Sua arenga raivosa vai longe. Reproduzi apenas um pequeno trecho. O episódio revela que os gregos, na sua antiguidade (a Iliada é escrita 800 anos antes de Cristo e a guerra de Tróia havia ocorrido uns 500 ou 600 anos antes), já eram um povo que cultivava uma enorme liberdade de expressão e onde os reis, assim como os deuses, eram tratados como homens, igualitariamente.

Gosto de especular com a história antiga. Observo, por exemplo, que a Palestina, onde nasceu Jesus, é bastante próxima dos gregos e das nações onde afloraram os maiores gênios da arte e da filosofia, como o próprio Homero. Teriam os livros gregos chegado à Palestina daquela época? Teria Jesus lido os gregos? É possível. A Palestina era colonizada pelos romanos, os quais rendiam constante tributo à cultura e à lingua grega. Todos os homens cultos de Roma sabiam grego. O Novo Testamento, aliás, segundo muitos estudiosos, foi escrito em grego, e somente depois traduzido para o Latim.


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Assim meu tempo escorre, tranquilamante, entre a Ilíada e Nine Stories, de J.D.Salinger. Os cães prosseguem latindo na pradaria. Eu os ouço pela manhã, quando leio jornais e colho meu balaio diário de café. O país vai bem e a mídia vai mal, graças a Atenas. A felicidade, enquanto isso, a gente cata na rua, nos bares, entre uma frase e uma risada, nos livros, nos discos de Charlie Parker.

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Aliás, por falar em Parker, que tal ler o conto O Perseguidor, de Julio Cortazar, uma deliciosa ficção em torno do louco jazzista negro americano?


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Grande Sertão Veredas, diz Alexei Bueno, e eu assino embaixo, é nossa Ilíada.


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Quer viajar um pouco no grego antigo? Curte esse site. (Primeiro tem que instalar, se não o tiver feito, o Quick Time).

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Quem se interessar por estudar a Iliada no original, sugiro esses três sites:

1) http://www.library.northwestern.edu/homer/html/application.html
2) http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text.jsp?doc=Perseus:text:1999.01.0133
3) http://www.utexas.edu/cola/centers/lrc/eieol/grkol-2-X.html

4 de junho de 2008

O belo e o escalafobético

(Escrevi o artigo abaixo em 2005. Publico aqui, porque estou reunindo todos meus escritos nesse blog, onde eles podem ser catalogados automaticamente. É um texto sobre arte contemporânea. Hoje eu o considero pomposo e, provavelmente, devo discordar de mim mesmo em um ponto ou outro. Mas foi um texto que me custou muita leitura e esforço e, por isso, tenho um carinho especial por ele).



Escrever sobre arte é como escrever sobre Deus. Quanto mais pesquisamos o assunto, mais profundamente sentimos seu mistério. E talvez a arte deva mesmo seu sentido ao que existe de misterioso, de infinito, de inatingível em nossa cultura e em nossa história. Mas enfim, qual o critério para se afirmar que tal obra é bela e outra não? Para Kant, que inaugurou a filosofia estética moderna, o belo na arte é o que nos proporciona prazer. Não o prazer vulgar das sensações físicas, como o deleite de se beber um vinho famoso. Tampouco o prazer de realizar ou ver realizada uma ação moralmente boa. A sensação estética causa uma espécie distinta de prazer, mais espiritual, mais profunda, que agita nosso entendimento e nossa imaginação. Durante a contemplação da obra, estas duas faculdades do conhecimento brincam, jogam e dançam. Utilizando a metáfora preferida de Kandinsky, a arte não seria útil nem agradável, mas teria o poder de tocar um piano existente em nosso espírito, fazendo-o emitir uma melodia suave ou brutal, amorosa ou sombria, gerando um prazer incomparável. A pior violência inflingida pelo capitalismo aos trabalhadores, dizia Marx, é a falta de dinheiro, tempo e educação necessários para se maravilhar e se transformar diante de um quadro de Leonardo ou uma sinfonia de Beethoven.

Entretanto, fala-se em crise da arte. De fato, diante da imensa gama de instalações escalafobéticas, experimentações multimídia e bizarrices conceituais, que desde algum tempo invadiram nossos museus e galerias, lastreadas no discurso de que a arte tradicional estaria ultrapassada, o público se depara, enfastiado, com obras que não lhe despertam nenhum prazer, não estimulam a imaginação e nem atiçam a inteligência. Entre um bocejo e outro, lê explicações acadêmicas, em linguagem metafísica, sobre a suposta qualidade revolucionária daqueles trabalhos. Enfim, o espectador vai para casa certo de que é um ignorante incorrigível e decidido a não pisar novamente numa galeria de arte. E os aspirantes a críticos de arte resolvem seguir - antes tarde do que nunca - uma carreira menos intangível.

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Antes de continuar, cumpre ressalvar duas exceções relevantes da arte conceitual brasileira, por sinal seus pioneiros no país: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os inesquecíveis parangolés seguramente estarão para sempre inscritos nos anais de nossa história de arte. Mas, conforme muito bem argumenta o crítico Rodrigo Naves, em artigo recente, houve uma super-valorização destes dois artistas em detrimento de figuras mais expressivas de nossa modesta porém singela história de arte. Curadores internacionais, sobretudo americanos e europeus, interessados em divulgar as obras conceituais de seus próprios países, pescaram no terceiro mundo os representantes do mesmo estilo. Fazendo isso, acabaram perturbando a evolução singular de nossas artes, com uma desvalorização injusta de grandes nomes como Iberê Camargo, Oswaldo Goeldi e Flávio Shiró. Desvalorização, naturalmente, não entre os amantes das artes, mas nos circuitos oficiais de divulgação cultural, que passaram a cortejar seguidores de Oiticica nem sempre - ou quase nunca - à altura do mestre.

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Nos últimos anos, as grandes exposições internacionais vêm encorajando um determinado tipo de arte extremamente duvidosa, apresentando como obra um bando de peladões em fila, além de outras dezenas de obras-evento que, embora inegavelmente exóticas, esgotaram seu efeito estético sobre o público. Urinóis e rodas de bicicleta não causam mais nenhum espanto. A ousadia de Duchamp (1908 – 1968) foi importante para libertar a arte de todas as amarras, mas agora esta mesma liberdade deve ser usada com responsabilidade, técnica e objetivo estético. A perplexidade das pessoas diante de formas vazias de expressão é confundida com estranhamento por críticos dóceis, ideólogos fervorosos das teses fragmentadas e fragmentantes do pós-modernismo. Mas no fundo grande parte destas obras causam somente náusea e tédio. Então, os artistas conceituais, desesperados com o enfado crescente do público, apelam para as soluções mais patéticas, como o caso daquele que se mutilou diante dos visitantes de uma exposição. O estranhamento provocado por uma obra não é dissociado da sensação de prazer que sentimos diante do enigmático. As figuras humanas distorcidas de Francis Bacon (1909 – 1992) continuam a nos causar uma espécie de repulsa, mas não deixam de acender nossa imaginação e entendimento, fazendo-nos refletir sobre a condição humana e despertando um intenso prazer estético. Mesmo as pinturas de Basquiat (1960 – 1988), que nos assustam num primeiro momento, acabam por fazer vibrar nossas cordas íntimas, deixando em festa o espírito que consegue captar, no meio daquelas formas extravantantes, a poesia intensa e trágica deste nova-iorquino rebelde. Uma instalação escalafobética, como aquelas de Bispo do Rosário é genial porque consegue causar forte prazer estético no espectador.

A discussão sobre a validade de uma obra de arte nos remete novamente à tese kantiana, que aponta outro fator determinante na identificação do belo na arte: a universalidade. A beleza na obra não é uma questão de gosto individual do espectador. Quer dizer, uma pintura de Delacroix não é bela porque tu ou eles determinaram, mas sim porque todos gostamos dela, sentimos prazer com ela. Esta universalidade é obrigatória, pois sem ela simplesmente não existiria arte; e significa que a beleza artística é guardiã de arcanos poderosos que afetam a todos os membros de nossa civilização. Afetam de maneira estética, quer dizer, através do prazer estético, que tem o poder de atingir tanto nossa consciência mais superficial como as camadas mais ocultas de nosso inconsciente.

Esta comunicabilidade universal, fator necessário da boa arte, nos conduz aos pioneiros da arte moderna, que realizaram ao final do século XIX uma verdadeira revolução estética, ao resgatar a poesia épica dos grandes mestres renascentistas e ao mesmo tempo conquistar um público mais amplo, através da expressão, sob uma linguagem atualizada, das angústias e anseios de liberdade dos novos tempos. E, de fato, após uma primeira fase de perplexidade e mesmo hostilidade (Cézanne foi chamado de louco, tarado, que pintava sob o efeito de delirius tremendus), os modernos conseguiram multiplicar de maneira extraordinária o público amantes das artes. Não fosse esta preocupação de tocar ao coração das pessoas, de um Degas, Gauguin e Van Gogh, talvez a arte moderna não se difundisse de maneira tão avassaladora pelos quatro cantos do mundo, rompendo todo elitismo e atingindo, com sua mensagem carregada de humanismo, todas as classes sociais.

Vale lembrar um artigo de Baudelaire, publicado num jornal parisiense, por ocasião da morte de Delacroix, em que ele relata que um dia viu o grande pintor romântico a passear no Louvre, em companhia de sua velha criada, explicando-lhe os mistérios da escultura assíria. Filho de um ministro da revolução francesa, Delacroix cultivou em toda a sua vida esta paixão pelo homem e seu destino, esta esperança ardente na possibilidade de libertação através do conhecimento e da arte. Da mesma forma, algumas décadas depois, Picasso irá resgatar este mesmo humanismo irredutível, sob uma forma mais objetiva e racional, interferindo conscientemente no curso da história. Não custa recordar de Guernica, pintada em 1937, que foi uma resposta calculada e contundente ao massacre de civis por aviadores alemães, que a pedido de Franco bombardearam a pequena cidade espanhola insurgente.

Falando em humanismo, vale citar este movimento formidável, o expressionismo alemão, fundado por jovens inspirados na revolução cromática de Van Gogh e no existencialismo sombrio e desesperado de Munch. A Alemanha do início do século XX - unificada sob a mão-de-ferro de Bismarck e realizada enfim sua própria revolução burguesa - emergia como uma grande potência econômica e cultural. As obras de Kant, Hegel e Marx incendiavam os círculos intelectuais, gerando correntes variadas de pensamento e instilando na sociedade a ânsia por reformas que minorassem a miséria de grande parte da população. Os expressionistas refletiam esta inquietação. O advento da Primeira Guerra Mundial, que põe a nu os conflitos de classe, irá intensificar ainda mais a verve revolucionária de pintores como Kirchnner, Otto Dix e Max Beckman. Alguns anos depois, serão banidos e execrados pelos nazistas, que irão lhes atribuir a excêntrica qualificação de arte degenerada. Há uma curiosa anedota contada por aquele que foi um de nossos maiores críticos de arte, Mario Pedrosa, em que ele relata uma conversa com Georgio Morandi, em Bolonha. O grande pintor de naturezas mortas lembra que, em 1942, no auge da glória do III Reich, Hitler e Mussolini inauguraram pessoalmente uma exposição fascista em Roma, apoiada e divulgada pela mídia oficial e incensada pelos críticos. Morandi decide, junto com um amigo, ir à capital conhecer os novos artistas que tanto agradavam Il Ducce. Ao ver as pinturas retratando mancebos de raça pura saudando seus líderes, matronas heróicas e exércitos em armas, faz uma observação visionária a seu companheiro: “Com esta pintura, acho que vamos perder a guerra”.

Voltando a nossas plagas tropicais, vale a pena sair dos círculos convencionais e andar um pouco pela periferia cultural de nossas grandes cidades, para notar que amadurece nas sombras uma nova geração de artistas plásticos, vacinados contra este vanguardismo importado e conscientes de seu papel num país como o Brasil, dilacerado por agudas mazelas sociais. Isso não significa que sacrificam sua arte em prol de um panfletarismo vulgar. Muito pelo contrário. Os artistas que os neo-liberais anos 90 relegaram aos subterrâneos desenvolveram uma linguagem vigorosa, original e ferozmente moderna. Alguns se apoderaram inclusive de técnicas contemporâneas, como colagens e reciclagem de objetos cotidianos, sem esquecer a tradição e a lição dos grandes mestres do passado.

Existem diferenças fundamentais entre os falsos e os legítimos artistas, que podem ser avaliadas pela técnica apurada, resultado de longos e exaustivos exercícios, pela força expressiva, sofisticada sem ser hermética e, sobretudo, por esta beleza misteriosa e profunda que só as grandes obras possuem. Beleza esta que nos paralisa e nos transforma, interferindo em maior ou menor grau em nossa cultura. O urinol de Duchamp pode ter sido muito importante para a história da arte, mas não quero crer que valeu mais que o David de Michelângelo.

Pode-se admitir que não existe, necessariamente, relação entre arte e a luta de classes, mas ninguém pode negar que as obras realmente belas são históricas e marcam as épocas. Se são históricas, estão inseridas, de maneira participante, neste magma eternamente em transformação a que chamamos vida. Participando da vida, muitas vezes decisivamente, as obras são também políticas, visto que influenciam no rumo histórico trilhado pelo homem. Finalizando, os argumentos expostos até aqui têm um objetivo claro: é chegado o momento de pararmos de falar em fim da arte. O patrimônio artístico é peça fundamental no desenvolvimento cultural e político de um povo, e em sua projeção para o resto do mundo. É tempo de inagurarmos uma nova crítica, mais poética e mais apaixonada, sem deixar de ser esclarecida e ponderada. Menos acadêmica e técnica, mas respeitando a tradição bibliográfica. Enfim, a arte pode ser misteriosa, mas o prazer estético, que sentimos em sua apreciação, é real e palpável e, através dele, pode-se avaliar com alguma objetividade o valor da obra. Com uma crítica corajosa, moderna e afirmativa, talvez consigamos mudar as políticas públicas, que relegam ao limbo e à pobreza os melhores talentos. E contribuir para que haja uma renovação saudável dos critérios de seleção vigentes em nossos espaços culturais.

25 de março de 2008

O socialista de hoje é um capitalista de esquerda?

2 comentarios

A humanidade está sempre reinventando os atores que desempenharão os papéis de profeta, fariseu, ignorante. E sempre reconfigurando o modelo mais poderoso, o coringa que atravessa todos os tipos e que os dissolve, ao fim das batalhas de cada geração, na mesma massa borbulhante e atrevida - o cidadão comum.

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Quando se decreta o fim de uma idéia, em verdade se procura aplicar mais um golpe nela. As idéias, todas elas, têm flancos macios para receber punhaladas. Mas não morrem tão fácil. Ao contrário, absorvem a força dos que lhes atacam.


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O erro sempre foi entender as ideologias enquanto dicotomias absolutas: capitalismo X socialismo, capital X trabalho. Marx explicou que o trabalho é uma forma de capital, neste caso de propriedade do trabalhador, e que o sistema moderno de trocas comerciais são resultado de uma evolução milenar da humanidade. Uma evolução conturbada, sangrenta, árdua. No últimos milhares de anos, os homens experimentaram diversas formas de governo, organização social e religião. O comércio, no entanto, é a instituição mais antiga. A revolução francesa tinha como objetivo principal libertar o comércio das garras do Estado, da aristocracia, da Igreja. O comércio tinha que pertencer ao povo, aos comerciantes, sob um regime jurídico que consolidasse a nova ordem. O erro do socialismo foi esse, a ingenuidade de querer restituir ao Estado o controle absoluto sobre o comércio, regredindo a uma condição medieval. O que levou Marx a esse erro colossal? Terá sido esse anti-semitismo, tipicamente (mas não só) germânico, místico, obscuro, às vezes disfarçado de comunismo, de associar o simples comerciante a uma força maligna? Um anti-semitismo que consumia inclusive judeus? Repare que esse comunismo arcaico floresceu com mais força na Alemanha, Rússia e China, países que passaram ao largo da renovação cultural vivida na França e EUA, no final do século XVIII, com as revoluções francesa e americana, e que abandonaram mais tarde a vida idílica (?) e estável do Medievo.

Existem, provavelmente, no inconsciente da humanidade, grandes guerras ainda não totalmente resolvidas, entre as civilizações agrícolas e as comerciais. Os gregos acreditavam que, por trás das guerras dos homens, haveria disputas entre os deuses. Estavam certos, em parte. Nos conflitos pontuais da humanidade, mesmo nas inocentes discussões entre blogueiros, há forças arquétipas milenares e poderosas lutando entre si.

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O socialismo vive enquanto idéia em construção. Uma ideologia é, antes de tudo, um sentimento, e não é por outra razão que os tipos psicológicos tendem, de forma quase inexorável, por intuição, a formas de pensar que lhes sejam mais afins.

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O socialista hoje é um capitalista de esquerda. A frase é polêmica, mas advém da própria confusão conceitual e terminológica produzida pelos ideólogos do capitalismo. O sistema moderno dominante de organização econômica e política é baseado na democracia, no sufrágio universal, em Constituições mais ou menos homogêneas, em princípios humanitários universais, num comércio regulado de forma justa e livre. Não se pode confundir liberdade com caos. Se o nome aplicado a esse sistema for "capitalismo", então somos todos capitalistas. Mas o adversário do socialista (ou capitalista de esquerda) contemporâneo não é esse capitalismo. Seu adversário é o capitalista de direita, que por isso mesmo se auto-reveste, com pompa e armas engalanadas, de anti-comunista, mesmo sabendo que seu adversário não é, exatamente, o comunista, mas também e sobretudo o capitalista de esquerda.

Qual a diferença entre os dois? O capitalista de direita, pelo menos os seus representantes do Brasil assim o fazem, defende o Bush e a guerra no Iraque, independente das mentiras e das consequências nefastas, em vidas, em danos materiais e em resultados na luta contra o terrorismo.

O capitalista de esquerda, ou o socialista contemporâneo, é contra a guerra. Também é contra o terrorismo. Contra as Farc. Contra a violação dos direitos na China. Contra o stalinismo. Também não lhe agrada o anti-americanismo falastrão de Chávez, embora o apóie enquanto presidente eleito e representante legítimo do povo venezuelano.

O capitalismo de direita não quer programas sociais, vê com antipatia as políticas de expansão de crédito, faz um silêncio irritado diante da elevação do salário mínimo e recusa-se, terminantemente, a dar crédito ao governo Lula pelos excelentes índices econômicos registrados nos últimos anos. O capitalismo de direita tem partido. É o PSDB. Por mais que tente flertar com algum centro-esquerdismo, ou mesmo centro, o PSDB irremediavelmente, tornou-se o receptáculo do direitismo tupinambá. Todos as correntes do direitismo nacional fluem para o PSDB, assim como grande parte das forças esquerdistas fluem, de uma forma ou outra, para o PT, o que explica a obsessão dos direitistas nacionais de enxergarem no PT o seu grande inimigo e tacharem qualquer pessoa que não comungue em suas cartilhas de "petista". No fim das contas, as quatro últimas eleições presidenciais foram uma disputa entre PT e PSDB. E tudo indica que a próxima repetirá o duelo.

Esse bipartidarismo, no entanto, não dá conta da complexidade política brasileira. Há muitos redemoinhos e mesmo desvios nos rios que nos levam a esse duplo destino. Continuamos a conversa mais tarde.

8 de julho de 2007

O maximalismo hoje (arquivo)

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"Livre das velhas fanfarras do heroísmo - que ainda nos atacam cabeça e coração - longe dos velhos assassinos. Oh! A bandeira em carne viva sobre a seda dos oceanos e flores árticas", Rimbaud.



Que a arte é absolutamente necessária, acho que isso está claro para todos. E o final da frase de Jean Cocteau: "se ao menos eu soubesse para quê...", já ficou obsoleto. A arte serve para educar e para perturbar o espírito. Quer dizer, educa no sentido de oferecer-lhe um tema de reflexão, exercitar os sentidos e estimular a imaginação. Perturba porque nada há mais perturbador que uma insinuante beleza a propor verdades profanas, misteriosas, que negam insistentemente a validade de um sistema moral em cujo altar os homens sacrificam a liberdade.

Após um doloroso período de crise, durante os anos 80 e 90, a arte parece estar novamente encontrando seu sentido, seu caminho, seu destino. De Tókio a Nova Iorque, de Londres a São Paulo, ouve-se um clamor ganhar vida e ecoar cada vez mais alto nos meios de comunicação: "a arte não morreu!". E não morreu porque só agora tenham surgido novos van goghs, novos picassos - na verdade, eles surgiram e estão aí, mas não é por isso. A arte não morreu pela mesma razão pela qual o amor e o desespero não morreram. Quer dizer, o amor pela arte, com todo o seu desespero implícito, está vivo. Talvez curadores e críticos realmente tenham medo de expressar sua opinião sincera sobre muita coisa conhecida como arte conceitual, pós-moderna, instalações. Mas, graças a deus, eles não são os donos do mundo. O público faz ouvir sua voz através de centenas de escritores e jornalistas que interpretam o repúdio global pela arte medíocre, preguiçosa e sem-graça que tomou conta de bienais e galerias.

Entretanto, ao movimento negativo de repúdio faltava sua sequência dialética. À esta antí-tese faltava a síntese. E é nisto que o chamado movimento maximalista moderno pode vir a dar grande contribuição, trazendo à luz novos artistas que tragam esperança a um mundo torturado por guerras, miséria e pós-modernismo.

O maximalismo não é exatamente um estilo de pintura. É mais um grau de intensidade. Uma marca humana e trágica. Um toque dionisíaco. Um transbordamento de beleza. A marca maximalista não confere, necessariamente, um atributo estético à obra de arte. Cada artista tem seu estilo. Cada estilo, sua coleção de trabalhos. Cada trabalho tem seu efeito estético diferenciado.

Entretanto, o maximalismo está como que mergulhado em nossa contemporaneidade de maneira ainda mais profunda que a chamada arte conceitual se pretende estar. Porque o maximalismo é a expressão suprema da carência de imagens fortes, contundentes, sensuais, violentas, plenas, que caracterizam o homem moderno. Apesar de poder adquirir estes mesmos estímulos através da televisão, do cinema, das revistas e da publicidade em geral - justamente por ser bombardeado por imagens a todo instante, o homem moderno precisa da arte maximalista para compreender a enxurrada de formas e cores com as quais seus desejos e sonhos são manipulados e transformados em lucro.

O enfado crescente do público para com obras esvaziadas de conteúdo estético, mesquinhas em sua oferta de prazer, é explicado porque elas não tocam as mais íntimas cordas da alma artística que todo o ser humano traz dentro de si. As pessoas querem ação, movimento, vida. Não no sentido vulgar. Mas no mesmo sentido com que os renascentistas passaram a retratar santos e figuras divinas com traços marcadamente realistas, humanos, chocando os acadêmicos, mas agradando ao público. No mesmo sentido com que os expressionistas alemães queriam colocar a própria vida em seus quadros. Podemos admitir que esta intenção possa estar presente, ou sugerida, em alguns trabalhos conceituais. O que distingue, porém, o maximalismo, não é tanto a intenção de transportar a vida, com todos seus excessos, para as telas, mas a forma com que faz isso.

Além disso, diferentemente do conceitualismo pós-moderno, o maximalismo não tem vergonha de ser clássico. Neste sentido, é conservador. Um conservadorismo que está posicionado hoje na margem revolucionária da história da arte. O maximalismo traz assim de volta o respeito pela tradição. O respeito, não a submissão. O respeito pelo conhecimento, pelo estudo, pelo trabalho, pelo esforço. Respeito pela inteligência. Respeito pela subversão inteligente.

O maximalismo representa o retorno da generosidade do artista perante o público. Tudo bem, o artista não pode se curvar à ditadura da opinião pública, mas precisa querer fazer algo que toque o coração das pessoas. Que as faça rir, chorar, amar e gozar. E quando o faz, elas gostam, e vão às galerias e se divertem, se educam, se perturbam. A arte maximalista hoje é um dos principais movimentos integrados a uma corrente maior, histórica, abrangente, que corresponde ao renascimento, em grande estilo, das artes plásticas contemporâneas no Brasil e na América Latina. Isso para ficarmos só por estas plagas. Uma arte não conceitual. Uma arte que atinge mais a espiritualidade do que a razão. O mistério. E terminamos como começamos, com este intrigante poeta francês: "Será possível que Ela me faça perdoar as ambições continuamente esmagadas - que um final feliz compense os anos de indigência, - que um dia de sucesso nos adormeça sobre o vexame de nossa fatal incompetência?".