5 de agosto de 2011

Notas antipreguiça

(Eugene Delacroix)

A substituição de Nelson Jobim por Celso Amorim balançou minha decisão de não escrever sobre política por uns tempos. O fato incendiou a blogosfera, que odiava Jobim (com razão) e ama Amorim, com mais razão ainda, pois foi um dos melhores chanceleres da nossa história, e um dos melhores do mundo, segundo a prestigiada revista Foreign Policy, especializada em política internacional.

Jobim, na verdade, "pediu para sair", após uma sequência de declarações estapafúrdias, desrespeitosas, provocadoras. Diferentemente do grande Vargas, porém, Jobim não sai da vida nem entra na história. Ele sai do governo para engrossar as fileiras da oposição.

Quando a presidenta formou seu ministério e fiquei sabendo da permanência de Jobim, eu cogitei que a decisão servia a nova estratégia do governo de suavizar um pouco a imagem de anti-americano. O Brasil havia saído de um confortável superávit comercial com os EUA para um pesado déficit. Ou seja, durante a era Lula, as exportações brasileiras para os EUA estagnaram-se - e as exportações deles para nosotros explodiram, e conhecendo a mentalidade fanática dos americanos, é possível que a política externa independente do governo tenha contribuído para esse quadro negativo.

A solução, naturalmente, não é baixar a guarda nem mudar a nossa nova postura de altivez diplomática. Mas Lula não recebeu e abraçou George Bush em 2003, no ano seguinte à invasão ao Iraque, por amor aos ianques nem interessa ao povo brasileiro esnobar o mercado americano por proselitismo ideológico.

A soberania e altivez política dos novos tempos incluem pôr de lado nossos complexos de inferioridade e sermos tão pragmáticos quanto os americanos e os chineses. O Brasil vê uma luz no fim do túnel, mas o túnel é muito comprido, e possivelmente ainda temos uns vinte anos pela frente de luta árdua para chegarmos perto dos EUA e Europa em termos de justiça social, avanços tecnológicos, educação pública e qualidade de vida, mesmo eles vivendo hoje uma crise. Talvez mais de vinte anos...

Não gosto da frase "pragmatismo tem limite". Acho que não tem sentido lógico, e reflete na verdade esse iberismo romântico e retrógrado que tão mal fez aos países latinos e a seus povos. É um lugar comum idiota. Não é que pragmatismo tenha limite, mas sim que ele não significa bater a cabeça contra a parede. Muito pelo contrário. A afirmação parte do pressuposto, algo trêmulo e inseguro, de que o pragmatismo é uma virtude pró-conservadora. Nada a ver. Não há nada mais pragmático do que a luta de classes, e se há condições históricas para a deflagração de um processo revolucionário, então o mais pragmático é fazer a revolução.

Dilma chamar Celso Amorim para o ministério da Defesa, por exemplo, foi pragmático.

Entrar numa reunião de sindicalistas e pedir desculpas pelo erro - grosseiro - de não ter criado um canal de diálogo entre governo e centrais sindicais para discutir o pacote de incentivos à indústria nacional, foi... pragmático.

Por outro lado, há uma série de coisas aparentemente bizarras que, no entanto, revelam-se pragmáticas ao longo da história. Bob Marley era um sonhador que fumava dois quilos de maconha por mês e escrevia canções. Hoje o seu nome vale mais do que o PIB da Jamaica. O que é mesmo ser pragmático?

Eu tenho a impressão, além disso, que o pós-modernismo (o supra-sumo do antipragmatismo ocioso e reacionário) não passou de uma revolução charlatã. Todos aqueles filósofos franceses e americanos, estruturalistas ou pós-estruturalistas ou coisa que o valha, a começar por Deleuze, são uns charlatães sem caráter (embora com um talento incrível para engambelar os outros) e deram início a uma tradição de charlatanismo nas universidades que tomou proporções épicas. Foi como um anti-renascimento. Uma volta à escolástica.

O que me trouxe grande alívio, e fez-me recuperar o humor e a auto-estima, foi saber que Immanuel Kant criou a filosofia moderna após confessar, a si mesmo e aos outros, que simplesmente não conseguia entender a ladainha dos pensadores da idade média.

Estou tentando estudar ciência política e desasnar-me. Há questões que me intrigam. Por exemplo: quais são os limites entre um texto de análise política e outro que visa fazer pressão política? Se um texto analítico, mesmo sem aparentar fazer nenhuma pressão, gera consequências mais positivas (no sentido progressista, ou revolucionário, se quiser), ele não também é um documento de pressão política? E mais eficiente, certo?

Qual o valor moral de um ato bem intencionado que gera danos ao bem comum? Em outras palavras: um blogueiro supostamente revolucionário que só escreve asneiras, clichês irritantes, embora repleto de boas intenções, tem valor revolucionário real?

Enfim, resolvi fazer - por diversão (olha que blasé me tornei!) - uma prova para um curso de mestrado em  ciência política. Não sei se vai dar tempo para ler aqueles livros todos: Weber, Faoro, etc. Já comecei contudo a ler um livrinho do qual sempre ouvi falar, Coronelismo, Enxada e Voto, do Victor Nunes Leal. É um pouco chato e repetitivo tanto jurisdiquês sobre a luta dos municípios brasileiros por mais autonomia política. Mas é um aula e tanto de história.

Terminei de ler um clássico, A Cultura do Renascimento na Itália, estou na metade do Antigo Regime e Revolução Francesa, do Tocqueville e avancei bastante num calhamaço do Jacques Le Goff, A Civilização do Ocidente Medieval.

Digo isso para lhes mostrar que o blogueiro está mais ativo do que nunca, mesmo que não escreva tanto, e também por vaidade, pois em se tratando de livros, sou um vaidoso convicto e satisfeito. Gosto de falar dos livros que leio, discuti-los, analisá-los, comparar suas teorias aos tempos de hoje. E observando as vicissitudes e tragédias da história, antiga e contemporânea, com todo seu rol de tiranos sádicos e truculentos, não posso deixar de olhar para nossa democracia com invencível ternura.

No entanto, meu otimismo babão quase trincou semana passada, quando levei minha esposa a uma reunião de trabalho em Bonsucesso, numa gráfica. Saímos da Avenida Brasil, entramos por algumas ruas principais da zona norte e daí viramos à direita, passando por uma pequena, feia e semi-destruída passagem subterrânea chamada Buraco do Lacerda. Daí em diante, vi-me num filme do pós-guerra alemão. Escombros e lixos diante das casas. Calçadas em ruínas. Edifícios e sobrados caindo aos pedaços.  Hordas de crianças viciadas em crack vagando nas ruas. Algumas com olhar assassino, segurando pedras. Na rua da gráfica, vimos uma cena dantesca. Dez garotos sentados no meio-fio, vestindo farrapos, sujos, olhos vidrados, fumando crack.

Eu conheço bem a cidade inteira, periferia, favelas, zona norte e oeste. Mesmo assim aquilo me impressionou terrivelmente . O Rio de Janeiro vive uma crise urbana e social muito grave! Como pode?  Uma das cidades mais ricas da América Latina, hoje capital do estado que mais produz petróleo no país, abrigar bairros completamente abandonados pelo poder público? O que me espanta mais é que não são regiões economicamente falidas. São bairros economicamente vivos, com empresas, pequenas e médias indústrias, gráficas, lojas, supermercados, e densamente povoados.

Acho que essa situação apenas irá se resolver quando tivermos um prefeito que adote decisões realmente revolucionárias. Talvez realizar uma divisão autêntica da cidade em zonas administrativas e dar dinheiro e poder para o administrador de cada zona fazer as mudanças e reformas necessários. Provavelmente, minha ideia é um tanto utópica e ingênua, afinal é sempre fácil falar e fazer revoluções no teclado de um notebook.

Seja como for, eu até que estou satisfeito com os governos locais da cidade. Pelo menos, se compararmos ao que tínhamos antes, Garotinho e César Maia, já temos um avanço e tanto. O Eduardo Paes, tirando a sua decisão destrambelhada de começar o governo fazendo um "choque de ordem" que não passou de uma perseguição covarde aos vendedores ambulantes, até que está fazendo um governo razoável, sobretudo em virtude de seu bom relacionamento com as instâncias estadual e federal. Tudo dando certo, o centro histórico do Rio passará por uma transformação incrível. Os cariocas, como bons cosmopolitas, mesclam esperança, cinismo, desconfiança, fé e desencanto. Todos reclamam da ladroagem no governo; aguardam, resignados, sarcásticos, os desvios de verba pública que as obras da Copa e Olimpíadas irão provocar; mas estão otimistas. Os bares continuam cheios e a maioria evita conversar sobre política - com exceção de algumas observações óbvias sobre escândalos de corrupção.

Em suma, tudo que eu não quero é ver a blogosfera converter-se numa caixinha de reclamações e achar que essa é a melhor maneira de fazer política. Por outro lado, não pretendo, em absoluto, desvalorizar a importância dos movimentos sociais e seu modus operandis, que é justamente... protestar. Procuro fugir também do partidarismo e, por incrível que pareça (depois de tudo que escrevi aqui contra a teoria da imparcialidade), ser... imparcial. Por exemplo, é importante que a esquerda tenha a humildade de agradecer ao governador Sérgio Cabral por ter tido a coragem que quase nenhum político petista teve: propor, defender e festejar a aprovação do casamento gay, mesmo com todos os riscos eleitorais que isso implica num estado fortemente evangélico como o Rio de Janeiro.

Quanto à Dilma, evitarei falar dela por enquanto. Deixemo-la apanhar, aprender, errar, corrigir-se. O importante, para mim, é analisar o processo político como um todo, sem esquecer o principal: as transformações econômicas e sociais. O desemprego atingiu seu patamar mais baixo na história, e isso seguramente se reflete no estado de espírito do país, inoculando confiança e auto-estima na população, que se sente mais estimulada para estudar, especializar-se, crescer profissionalmente.

Sou da opinião que o tempo, agora, é de esperar menos do governo e trabalhar duro (sendo que, às vezes, passar uma tarde na praia, lendo um livro, é também "trabalhar duro"). Sou a favor de um Estado forte e tenho uma série de ideias socialistas sobre a participação do setor público na sociedade, mas entendo igualmente que o governo é uma instituição totalmente inútil sem a criatividade, o empreendedorismo e o empenho profissional de seus cidadãos.

11 comentarios

Anônimo disse...

"(...) mesmo com todos os riscos eleitorais que isso implica num estado fortemente evangélico como o Rio de Janeiro.(...)"

Pelo que sei, as cidades evangélicas são tristes e cinzentas, pelo menos as que conheço são assim. Será que o RJ vai terminar virando isso. Lamentável uma cidade venha a ter a cara do Garotinho, quer dizer do casal Garotinho e suas histórias de malandragem da grossa.

spin

Anônimo disse...

Apesar da discordância ideológica que parece existir entre nos, parabenizo o brilhantismo do texto. Assim se fala em política , assim se formam opinioes. Feliz por saber que existe ainda lucidez! Finalmente leio um texto de opinião . @sulains

Marcelo de Matos disse...

Está para ser ativado um dos grandes ralos da República. A ministra Ideli Salvatti afirmou que o governo vair liberar R$ 150 milhões referentes a emendas de deputados e senadores. É uma forma de minimizar a insatisfação dos congressistas com o Palácio do Planalto. O esquema funciona assim: o parlamentar escolhe uma ONG para doar a verba de sua emenda parlamentar. No Ceará foram escolhidas 5 associações. Uma delas, a Associação Cultural de Pindoretama, é presidida por Renata Pinheiro Guerra - Assessora de Cerimonial do Tribunal de Contas do TCE. O presidente do TCE cearense e seus dois filhos parlamentares estão concordes em que não houve desvios na doação para a construção de banheiros. Na verdade, até agora nenhum banheiro foi construído para as famílias cadastradas para recebê-los. Isso me faz lembrar da Roma antiga. O imperador Vespasiano instituiu uma taxa sobre o uso de banheiros públicos. Seu filho Tito ficou indignado com a cobrança e o pai retrucou – O dinheiro não tem cheiro (non olet). Já não se fazem filhos como antes.

Rogério Floripa disse...

“O Governo é o sócio no meu negócio. O problema é que eu entro com o trabalho, o conhecimento e o investimento. Enquanto ele só chega para receber. É o tipo de sociedade desigual.”


Documentário - Entreatos.- Lula: 30 Dias do Poder - Documento dos primeiros 30 dias de Lula como presidente http://fwd4.me/089h

Miguel do Rosário disse...

Marcelo, essas emendas parlamentares são constitucionais e, pese à ocorrência de desvios (que a PF e o MP devem investigar e combater), também trazer obras importantes às cidades contempladas.

Miguel do Rosário disse...

Gostei, porém, do seu comentário. Da denúncia, e da menção ao filho de Vespasiano. ;)

Guilherme Scalzilli disse...

Depuração

Aos poucos Dilma Rousseff vai arrumando certas bagunças e conferindo características próprias ao seu governo. Desde já fica previsto que as defenestrações dos quadros mais indigestos do ministério fornecerão à imprensa oposicionista e aos desafetos da própria base um motivo para desqualificar a presidenta assim que alguma ocorrência fortuita arranhar sua popularidade. Se souber resistir às pressões, contudo, em poucos meses ela colherá frutos político-administrativos que sequer Lula almejou.

A excelente nomeação de Celso Amorim para a Defesa também anuncia uma gritaria desestabilizadora dentro e fora dos quartéis. O ridículo (e termerário) Nelson Jobim teve tempo e poderes suficientes para garantir que sua futura demissão causasse o máximo de barulho. É um erro subestimar a força dos lobbies militares.

Com o aval da chefe, Amorim poderia começar a gestão imitando os militares da antiga: batendo o sabre na mesa, distribuindo ordens e negando permissão para falar. Caso precise amansar as tropas, o ministro retiraria da túnica certas idéias reformistas envolvendo o Plano Nacional de Defesa (no mínimo extinguindo o abjeto serviço militar obrigatório), o fortalecimento da Comissão da Verdade e uma revisão da Lei de Anistia com apoio nos organismos internacionais de Direitos Humanos.

http://guilhermescalzilli.blogspot.com/

Paulo Werneck disse...

Prezado Miguel,
Não separo os textos entre políticos e teóricos, pois todos são, de uma forma ou de outra, políticos. A diferença é se são providos de argumentação (teoria) e se levam água para o moinho que desejamos.
Por outro lado, a intenção deve ser sopesada com os resultados. Dizem que de boas intenções o inferno está cheio e é verdade.
Comentando os comentários, o filho de Vespasiano estava preocupado é com Roma se sustentar com um imposto obtido de tão prosaica atividade. Nada a ver com desvios ou corrupção. O imperador era mais objetivo.
Quanto a Amorim, não me parece que deva imitar ninguém e sim fazer o que se espera de um ministro republicano da defesa: resolver as encrencas do passado (Comissão da Verdade, Lei de Anistia) e adequar as forças armadas às necessidades atuais (Treinamento, gestão, aparelhamento - onde se inclui o submarino nuclear, pessoal - onde se inclui a eventual extinção do serviço militar obrigatório). Quero forças armadas suficientemente preparadas para dissuadir qualquer tentativa de ataque ao país e suficientemente profissionais para que nunca mais tenhamos de temer intromissões espúrias na política nacional.

Anônimo disse...

O RJ produz petróleo ? Que interessante ! E eu que imaginava que o petróleo fosse produzido no Brasil pela União, através da Petrobrás e concessionárias. Deixando a ironia de lado, na verdade o que a Cidade Maravilhosa tem de maravilhoso é sua natureza, que não é obra dos cariocas, que produzem em sua cidade o horror que o post refere. Do mesmo modo, o RJ se beneficia de um determinismo geográfico da localização poços petrolíferos, em flagrante assimetria federativa na Constituição Federal, o que, inexoravelmente, vai mudar mais hoje ou mais amanhã. Por algo semelhante a essa distorção constitucional - privilégios políticos de SP e MG na República Velha - foi feita a Revolução de 1930, com o grande Getúlio Dorneles Vargas, que modernizou o Brasil. Sua obra de modernização de nosso País felizmente foi retomada por Lula e deve prosseguir e ser aprofundada com, entre outras coisas, o (r)estabelecimento do equilíbrio federativo na distribuição dos benefícios da exploração do petróleo. Carlos Alberto Alves Marques

Anônimo disse...

Tentei ler há poucos anos um livro filosófico sobre religião. Cada página vinha lotada de citações de autoridades. Chato pra caralho e... levando pro passado. Aí descobri Michel Serres e confirmei que filosofar é analisar a vida. Em volta da gente. Muito diferente das lápides pomposas em túmulos prestigiados.
jcmontenegro@globo.com

Anônimo disse...

Apesar de tudo, se nao fosse pela igreja evangelica, ao invez de 10 meninos no crack, vc teria visto 10 mil.

Essas igrejas existem em todo brasil porque o povo é carente.
Aqui no RJ se nota muito pois tem uma em cada esquina. O povo nao tem atenção, respeito e dignidade que merece de seus "governantes". Esses governantes nao governam nada nem ninguem, esses politicos nao inspiram ninguem a nada.

e vou discorar de você miguel, rsrs não acho o Rj cosmopolita não, acho bem pensamento engessado, as pessoas são surreal ao contrário.

queria virar linguista pra entender o que se passa na cabeça de um eduardo paes da vida, esse cara eu não engulo. sinceramente.

tb quero me desasnar... rsrsrs to tentando
Adoro este blog!

Maria

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