21 de março de 2006

O caseiro e o ministro

Por Urariano Mota

É possível que no momento em que vocês comecem a ler este artigo, ele já esteja obsoleto. A crise, que no Brasil quer dizer a luta política, eleitoral, é tão rápida, que mal começamos a escrever sobre ela já novos dados e informações surgem, e de tal maneira, que mudam o corpo e o espectro do que víamos antes. "O tempo não pára", como cantava Cazuza, mas não só, porque agora e nesses últimos dias o tempo é um embusteiro, a cada instante a nos enganar com novas armadilhas, a nos revelar uma face e esconder outra. O tempo não pára de ser embusteiro.

Há pouco, queremos dizer, até sexta-feira (17/3), o tempo na imprensa era a intromissão - indevida, para melhor reforço - do Judiciário sobre o Legislativo. Na véspera, o depoimento do caseiro Francenildo dos Santos Costa na "CPI do fim do mundo", aquela que acerta todas as contas, todos os pecados no dia do juízo, pois sendo CPI dos Bingos joga a sorte de todos os pecadores no Juízo Final; na véspera, o depoimento do caseiro a virtuosos republicanos fora interrompido por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Este era o assunto, esta era a indignação que corria a imprensa de Sul a Sudeste do país, e por extensão, portanto, do Norte ao Nordeste apêndice do Brasil. Anunciava a Folha de S.Paulo: "STF atende PT e cala caseiro". Completava O Globo: "Mordaça para proteger Palocci". E continuava O Estado de S.Paulo: "Supremo pára CPI, abre crise e Lula diz que Palocci não sai".

Poucos, para não dizer nenhum dos jornais, trazia a público as razões do STF para suspender o depoimento na CPI contra o Ministro Palocci. Alceu Nader, neste Observatório, lembrou e sublinhou algumas delas, quando transcreveu a decisão :

"Nenhum parlamentar pode, sem descumprimento de dever de ofício, consentir no desvirtuamento do propósito que haja norteado a criação de CPI e na conseqüente ineficácia de suas atividades... Noutras palavras, seu depoimento (do caseiro) em nada ajudaria a esclarecer ou provar a suposição de que seria dinheiro oriundo de casas de jogo! E é o que se presume à condição cultural e ao próprio trabalho que a testemunha desempenharia no local apontado." E com isto, o Ministro relator do Supremo Tribunal Federal apenas disse: 1. A CPI dos Bingos deve investigar o Bingo, o jogo ilegal; 2. O caseiro da mansão em Brasília não era bem o tesoureiro do Bingo. Coisa tão óbvia, acreditem, ninguém viu.

Uma das mais cívicas e patrióticas colunistas da Folha, que certa vez escrevera que o maior legado da Albânia para o mundo civilizado teriam sido massas de famintos e de piolhos, preferiu ver um jogo sujo na interrupção do depoimento do caseiro Francenildo:

"Como empregado da bela casa alugada em Brasília pela 'república de Ribeirão Preto' (do 'chefe' Palocci), Nildo ouvia e via muita coisa, sabia de reuniões ortodoxas e heterodoxas. Relata jogos, malas de dinheiro, as chegadas do ministro num Peugeot prata de vidro fumê e como ele pedia para apagar as luzes de fora para não ser visto -desmascarado?
Nildo sabia onde estava se metendo: 'Eu não sou nada perto dele [Palocci]. Mas ele está mentindo'. E sua versão tem início, meio, fim e credibilidade, seja ele um achado ou não da oposição. Contra fatos, não há argumentos".

Fatos... vísceras ou acontecimentos?

Para um caseiro, que até prova em contrário é um empregado que cuida dos exteriores e das cercanias da casa, Francenildo é um excelente e insuperável espião. Como poucos. Como os raros e impossíveis. Ele sabia das reuniões ortodoxas e heterodoxas - como ele as distinguia? Palocci nu a pular na sala seria a distinção? Mais: via malas, que para ele se abriam nos jardins, na garagem, no quintal, no terraço, e se estivesse escuro, o Ministro lhe gritava: "Nildo, aqui temos dinheiro. Veja". Ao que Nildo lhe respondia: "Chefe, quanto dinheiro! De onde vem tanta riqueza?" E Palocci: "Do bingo, do bingo, Nildo. Guarda esta informação, que poderás usá-la contra mim". "Onde, chefe?" E Palocci, a sorrir: "Na CPI, homem. Nas colunas dos jornais brasileiros, onde aparecerás como autor de versões de início, meio e fim e credibilidade. Não te esqueças".

E se as coisas não ocorreram assim, podemos crer que Fracenildo seria um caseiro de um gênero fantástico, pois também exercia as funções de cozinheiro, garçom, barman, camareiro, repórter, fotógrafo, cameraman, contador, auditor da Receita Federal, fiscal de alcova, confessor de igreja, ou, mais precisa e modestamente, em resumo, as funções de testemunha poderosa, ocular e invisível da história. Aquela, que é um achado para os partidos fora do poder.

No outro dia

No fim da tarde de sábado (18/3), o tempo, que não pára, voltou a mudar. Descobriu-se que a poderosa testemunha, o senhor múltiplo de espionagem, recebera depósitos em uma conta que alcançam o valor de R$ 38.860,00. Furo de reportagem da revista Época. Segundo os repórteres, no começo do ano o caseiro possuía apenas R$ 24,76 na conta. Depois de sucessivos depósitos e saques, no dia do depoimento na CPI estava com R$ 19.662,35. Então veio rápido a explicação do advogado do caseiro: os depósitos seriam, na verdade, 25 mil reais, dos quais o caseiro teria sacado 15 mil, para, arrependido, devolver 13 mil à conta. A fonte dos depósitos seria de um pai distante, constrangido e envergonhado, que assim se redimia frente ao filho que não reconhecera, porque o caseiro veio de uma relação fora do casamento.

Então a boa imprensa, tão boa e melhor em desmontar mentiras e versões petistas, primeiro se pôs incrédula. Dos depósitos. E como não acreditava no que via, perdeu o ânimo de perseguição investigatória. Aceitou como natural a coincidência de depósitos e depoimento do caseiro, e passou a ver um fato muito mais estarrecedor.

Rápido parêntese. Aqui deve ser mencionado que em relação ao governo Lula os grandes jornais e os mais honrados partidos da oposição, PFL e PSDB, auxiliados pelos acima de qualquer suspeita PPS e PSOL, estão cada vez mais estarrecidos. O termômetro do susto e da fúria são os números de Lula nas pesquisas eleitorais. Pela última, o presidente ganharia as eleições já no primeiro turno. Parêntese fechado.

Então os partidos, de hipocrisia e terror, depois da intromissão do Judiciário no Congresso, "um fato nuca visto desde a ditadura", conforme as palavras do abismado senador Antonio Carlos Magalhães, então os partidos, de mágoa e desespero, se depararam com essa violência: a quebra do sigilo bancário do caseiro, de uma testemunha, de um espião fundamental no processo contra o governo Lula. Escândalo! E o caseiro, um pequeno Davi, vítima dessa luta desigual, declarou à Folha de S.Paulo: "Mexeram nas minhas contas. O que posso esperar mais?". Sim, o que mais pode esperar um homem íntegro, porque se mostra inteiro, um autêntico homem do povo à margem da esperança dos despossuídos, que se presta ao papel de informante; sim, o que mais pode esperar?

Uma vista desarmada a mirar bem as fotos do caseiro nas entrevistas e depoimentos, uma leitura atenta da sua paisagem em torno perceberá o que ele pode esperar. Há de chegar um momento em que o senhor de terno a seu lado abrirá uma grande caixa, pegará o corpo da testemunha nas costas e o largará, encolhido, na caixa que será fechada. Imóvel e mudo permanecerá até o próximo show. Este é o destino e futuro de todo boneco de ventríloquo. Se houver espetáculo, voltará a abrir a boca.

Neste "exato" instante

Mas o tempo não pára. Neste exato instante, enquanto os ventríloquos recorrem contra a decisão do STF, eis o passo que a honrada oposição ameaça contra o governo Lula. Acreditem e creiam:

"O prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia (PFL), afirmou que garotas de programa agenciadas pela promotora de eventos Jeane Mary Corner poderiam confirmar a ida do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, a uma mansão em Brasília... 'Eu soube que tem menina da Jeane querendo falar, já procuraram parlamentares nossos dizendo que querem falar... É muito melhor que chamem o caseiro e o motorista e deixem as meninas da Jeane na casa delas porque a vergonha vai ser menor assim"".

Isto deveria estar gravado em letras de ouro, em placa, à entrada do Congresso brasileiro. Prostitutas na CPI. Das que vendem e alugam sexo, queremos dizer. O tempo não pára de ser embusteiro.

Esse artigo, escrito por Uraniano Mota, foi publicado originalmente no Observatório da Imprensa.

4 comentarios

Anônimo disse...

Um fato muito curioso, mas nem tanto para quem está antenado nos acontecimentos, é a imprensa ainda não ter apurado em qual(is) condições se deram os depósitos nas contas do caseiro, perguntando, óbvio, ao próprio pai do respectivo, verificando os comprovantes dos depósitos ou a forma como foram feitos. Esse pequeno fato, aliado a outros de grande importância e fartamente denunciados nos diversos veículos de informação fora do eixo das renomadas corporações da notícia, os blogs isentos, coloca por terra a chanchada, que me perdoem os produtores do gênero, oposicionista. Está tão claro como a luz do sol que o desespero tomou conta em gênero, número e grau dos oposicionistas do governo do presidente Lula. A união das forças do mal, pois não querem o bem do Brasil, caracterizada pelos meios de comunicação e partidos de oposição, acostumados com as benesses que o poder lhes conferiu, é capaz de sonegar informações relevantes ao cidadão brasileiro sobre um golpe que foi preparado há muito tempo, mas, inteligentemente, abortado porque a sociedade está mais crítica e atenta. A imprensa, assim como quem governou o Brasil por oito longos e tristes anos, perderam a credibilidade. Não serão essas criações quixotescas que enganarão e influirão na decisão do povo brasileiro votar outra vez em Lula em 2006.

Anônimo disse...

A "Folha de Pernambuco" de ontem ( terça-feira, 21/03) oferece uma pista valiosa sobre as circunstâncias em que os depósitos foram feitos na conta do "caseiro". Segundo informação da Agência Nordeste, a mãe de Francenildo teria afirmado que os senadores Mão Santa e Heráclito Fortes estariam "ajudando a família". Esses senhores são os mesmos que ficaram indignados com a senadora do PT, Ideli Salvati, por ter ela solicitado que se entregasse à polícia federal as fitas gravadas pelas câmeras do Senado, mostrando o percurso do Caseiro pelos corredores e gabinetes oposicionistas. Eles não querem que se divulgue como esse "desinteressado patriota" foi "convencido" a prestar o tal depoimento.

Zé Luiz Soares disse...

Miguel, parabéns pela análise, para mim perfeita. Estou realmente pasmo com tudo isso, não confio mais em jornal algum. Tomo a liberdade de colar trecho de comentário que fiz no meu blog. Um abraço.

"Não pretendia falar tanto de política, mas esse assunto do caseiro está me tirando do sério. Agora, essa palhaçada de que ele está "abrindo seu sigilo à CPI dos Bingos", e com isso se tornando cidadão acima de qualquer suspeita, quase um herói nacional. Ora, nos tomam por idiotas completos? O que mais ele pode "abrir"? Tá tudo escancarado, desde sexta passada.

Porque a "mídia" não divulga que seu patrão (o dono da tal casa) é do PSDB, e seu "pai" (ora...) é do PFL? Porque ninguém questiona uma história tão ridícula quanto impossível, de um empresário piauiense que paga R$ 25 mil, ou R$ 38 mil, sei lá, prum mané aqui de SP que se diz seu filho, sem ter feito um exame sequer?

Óbvio que a insistência no "escândalo da quebra do sigilo" é cortina de fumaça para encobrir a gravidade de se comprar uma testemunha e, com isso, derrubar um ministro de estado e desestabilizar a campanha presidencial para a reeleição..."

Miguel do Rosário disse...

zé luiz, obrigado. mas atente para o fato de que o autor desse texto é o Urariano Mota. O texto foi pulicado originalmente no Observatorio da Imprensa.

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