30 de junho de 2009

Boa sorte, Honduras

(A foto acima tem a função de usar a beleza para expurgar o blog das influências tóxicas do post anterior)


Esse tipo de golpe bananeiro desnorteia qualquer um, não apenas pelo fato em si, terrível, mas sobretudo pelo rastilho de reacionarismo histérico que se acende em todo o continente. São minorias, mas obtêm enorme visibilidade, porque sua ideologia está enraizada no espírito da elite encastelada nos medios. Todos os grandes jornais brasileiros relativizaram o golpe; criticam-no como que a contra-gosto, por causa da reação internacional; e todos, invariavelmente, põem parte de culpa na vítima, no presidente preso em sua casa às cinco horas da manhã e deportado para fora de seu país. A máscara democrata da mídia brasileira agora caiu de vez, mostrando sua carantonha golpista.

Desejo coragem aos hondurenhos, para enfrentar o que talvez seja uma das últimas batalhas pela consolidação de um espírito democrático autêntico na América Latina. Esses golpistas massacram a Constituição com o dedo apontado em parágrafos e cláusulas constitucionais. Ignorantes, que não conhecem a filosofia do direito. A justiça não está na Constituição, mas nos homens, porque são os homens que escrevem as Constituições. Não se aprende a ser bom e justo decorando a Constituição e sim entendendo a si mesmo e ao mundo. Numa democracia, o princípio basilar da justiça está no homem e em suas opções soberanas. Se o povo quer mudar a Constituição para poder reeleger um presidente mil vezes, e daí? As cidades-estado gregas mudavam de constituição frequentemente, às vezes adotando as leis mais estranhas, como aquela de Sólon, patriarca da democracia ateniense, que condenava todo cidadão que não tomasse partido.

O que permanece são os Princípios Fundamentais, que repito aqui:

TÍTULO I
Dos Princípios Fundamentais

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I - independência nacional;
II - prevalência dos direitos humanos;
III - autodeterminação dos povos;
IV - não-intervenção;
V - igualdade entre os Estados;
VI - defesa da paz;
VII - solução pacífica dos conflitos;
VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X - concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.


*


A justiça não está no papel, na Bíblia, num Alcorão qualquer misterioso, passível de interpretações duvidosas. Com alguma imaginação e técnica sofística, pode-se encontrar justificativas para assassinatos e estupro na Constituição. A justiça está em como entendemos e interpretamos a Constituição. Se alguém usa a Carta para, sem o devido direito à defesa, sem nenhum julgamento honesto e transparente, mandar prender um presidente da República eleito pela vontade soberana do povo, e deportá-lo para fora do país, é porque perdeu o juízo.

Afinal não somos governados pela Constituição, mas pelo juízo. As Constituições são um esforço das sociedades em produzirem leis que sejam as mais justas possíveis, mas é evidente que a imperfeição do homem o impede de criar leis perfeitas. No decorrer dos séculos a experiência fornece dados que nos permitem formular leis melhores. Não é por outra razão que elegemos, a cada quatro anos, 513 deputados federais e 81 senadores, para estarmos sempre atualizando as leis.

Desde que se tornou independente, o Brasil já teve oito constituições. Todas eram consideradas "sagradas" e todas contêm graves problemas. O poder não está, portanto, na Constituição. O poder emana do povo. Por isso, dos três poderes que constituem a república, a presidência é o mais importante, porque é o único constantemente julgado pelo escrutínio popular, pelo sufrágio universal. Deputados e senadores são votados apenas por seus conterrâneos de província. O presidente da república é votado por todos os brasileiros, ou por todos os hondurenhos. O presidente não está acima da lei, naturalmente, mas o Judiciário, que passa ao largo do sufrágio popular, também não. Não esqueçamos que nas democracias antigas, ateniense e romana, os juízes também eram escolhidos pelo povo.

Eu falo tudo isso apenas para derrubar o principio de qualquer argumentação constitucional. Mas não é o caso. O golpe de estado em Honduras foi um crime constitucional em todos os sentidos. Não se pode julgar um tema político com base em apenas um parágrafo ou outro da Constituição, e sim no todo, na íntegra do texto constitucional. Não fazer isso é realizar uma argumentação juridicamente debilóide. É evidente que esse golpe de estado violou centenas de leis hondurenhas. É absolutamente inconstitucional, em qualquer país democrático do mundo, permitir que o Exército derrube um presidente desta maneira, sem direito à defesa, na calada da noite.

A democracia tem uma longa e dolorosa história de lutas, onde não guerrearam apenas homens, mas também idéias. A vitória dos gregos sobre os persas, no século V antes de nossa era, significou o triunfo de uma idéia, da idéia democrática, que supunha a participação cidadã nas lutas de sua cidade e no debate político interno. Uma vitória do bom senso simples e democrático do pensamento grego, sobre o misticismo sofisticado, sedutor e pavorosamente oligárquico dos soberanos autocráticos da Ásia.

Esse espírito democrático é desafiado a cada vez que ocorrem golpes como esse, em Honduras. Ele - o espírito da democracia - ainda não conseguiu se restabelecer dos ferimentos sofridos nas últimas décadas. Nos anos 60, uma onda hedionda, sinistra, coesa e poderosa, de reacionarismo e totalitarismo político, esmagou a América Latina de ponta a ponta. Esses golpes aqui e ali (Venezuela e agora Honduras) são espasmos deste Leviatã nojento que dominou o continente por tantos anos, e que ainda não está morto totalmente. Como guerreiros liliputianos prosseguimos enterrando nossas lanças sobre o gigante odioso. Um dia ele morre. Tem de morrer.

12 comentarios

José Carlos Lima disse...

E por acaso isto aqui não é um trabalho. Os escritores tem esta mania, agora vou parar de escrever para trabalhar. Há trabalho mais digno e útil para nós do que um bom escritor escrevendo,como é seu caso?

Mudando de pau prá cacete...

"(...)blogs como o seu estão se espalhando aos montes, conforme post recente seu abordando o assunto, e esse movimento é irreversível, as pessoas querem democracia, liberdade de expressão, valores que nos foram negados desde 1500. A Internet, cedo ou tarde, tomará o lugar dos grandes veículos de comunicação (..)" (Dario). Ao dar uma olhada em jornais expostos numa banca vi que todas as notícias estavam defasadas por um simples motivo. Eu já havia lido tudo na internet e, o melhor, com comentários isentos, o que não ocorre no imprensalão. Fiquei com a impressão de que eles tinham ido ao google para copiar os textos, adaptar ao seu modo e colocar no jornal. Jornal de papelão prá que? Prá derrubar as árvores? O futuro são blogs como o seu, daí as ameaças. O Congresso Nacional quer censurar a web nas eleiçoes http://noticias.uol.com.br/ultnot/multi/2009/06/29/04023366C0B15346.jhtm?com-medo-politicos-querem-restringir-internet-em-eleicoes-04023366C0B15346

Patrick disse...

Essa Constituição de Honduras é do tempo do regime militar. A cláusula anti-reeleição era uma proteção para evitar que um milico passasse a perna nos outros. Nenhuma Constituição é escrita em pedra, muito menos aquelas redigidas em tempos de exceção. Sempre é possível convocar uma nova constituinte.

Sabedor dos devaneios da oposição, Zelaya preparou uma consulta informal (como os plebiscitos da Vale da dívida, lembra?), sem poder vinculante. Mas a oposição e o PIG de lá, como o daqui, tem um verdadeiro horror à opinião do povo.

Miguel do Rosário disse...

É verdade, Zé. Eu preciso agora de tempo para "trampar", ou ganhar dinheiro. Mas o meu trabalho de verdade é por aqui mesmo. Mas passa rápido e, de qualquer forma, em breve penso em cortar todos os laços, inclusive com esses "trampos" e dedicar-me apenas a meus escritos, sobretudo ao que faço aqui blog. Abraço.

Miguel do Rosário disse...

olha só, agora, às 15:00 de terça-feira. Nenhum portal (com exceção do Estadão, que dá uma notinha) veicula qualquer coisa sobre Honduras. Os meios de comunicação da Am.Latina, do Brasil em particular, estão relativizando o golpe de Estado e tentando minimizar os protestos. E omitindo o cerco ao Congresso, aos jornais e à população.

Miguel do Rosário disse...

tirei um fác-símile da capa dos grandes portais. Confira aqui:

http://dioleo.blogspot.com/2009/06/blog-post.html

Anônimo disse...

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Parabéns pelo seu Blog!!!
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RLocatelli Digital disse...

Excelente argumentação, prezado Miguel do Rosário.
O Óleo do Diabo se destaca pela argumentação demolidora.

Miguel do Rosário disse...

globo hoje noticia manifestaçao em favor do golpe, com 5 mil pessoas, sem dar a fonte. nenhuma notícia sobre mortos e feridos pelos golpistas. nenhuma dramaturgia. nenhuma notícia sobre manifestações anti-golpe.

infinitoamanajé disse...

Excelente! Argumentos tão poderosos e claros que coloquei um link para podermos voltar e consultar aqui sempre que necessário.
Sou grato

Dado disse...

Excelente escolha... difícil encontrar beleza igual a essa!
hehehe

Ignacio Escola disse...

As chaves para entender o que se passa nas Honduras I

Ignacio Escolar - 29 de Junho de 2009

1. O que estava convocado para Domingo, o que os golpistas impediram, não foi a reeleição permanente de Zelaya nem a presidência vitalícia. Nem sequer a reforma da Constituição. O que era votado era uma consulta não vinculativa para perguntar aos hondurenhos se gostariam que nas próximas eleições, nas de Novembro, se votasse também a criação de uma Assembleia Constituinte que reformasse a Carta Magna. Em resumo: era algo aparentemente tão inofensivo como perguntar se se podia perguntar para reformar a constituição, algo que, por outro lado, a própria constituição hondurenha impede [1].

2. A actual constituição das Honduras estabelece um mandato único para os presidentes de quatro anos. Zelaya termina o seu este ano e, em qualquer caso, não se poderia apresentar à reeleição porque em Novembro não estaria aprovada a reforma constitucional que ele propõe. Quando muito, teria sido possível que nessa data se votasse a possibilidade de uma reforma constitucional. Ele mesmo tem negado em várias entrevistas que tenha intenção de se apresentar à reeleição [2].

3. O parlamento está enfrentado com o presidente entre outras coisas porque Zelaya, um terratenente acomodado e conservador que concorreu às eleições pelo Partido Liberal, fez depois uma política de esquerda e aliou-se com Hugo Chávez [3]. Nas Honduras governam desde há décadas dois partidos, o Liberal – de centro direita – e o Partido Nacional – de direita. Há dias, o Congresso aprovou uma lei para proibir que se celebrasse qualquer tipo de consulta 180 dias antes de umas eleições. É uma norma ad hoc, feita para impedir o referendo de Zelaya.

4. A constituição hondurenha foi redigida em 1982 [4], sob a tutela de uma ditadura militar que pactuou uma transição. É bastante fácil de reformar – basta uma maioria de dois terços do Congresso, aliás o texto constitucional está cheio de correcções – salvo em alguns pontos, que se consideram irreformáveis, como a unidade da pátria ou a não reeleição do presidente (o modelo de presidente não reelegível e não reformável impôs-se no princípio do século depois de várias guerras civis por isso provocadas). De facto, o seu artigo 4 qualifica a «alternância no exercício da Presidência da República» como obrigatória e qualifica a infracção desta norma como «delito de traição à Pátria», algo a que se agarram os golpistas argumentando que Zelaya, ao propor uma reforma, é já um traidor. Zelaya argumenta que não é assim, já que ele não tem intenção de se voltar a candidatar, que é o que o qualificaria de traidor. Mais claro é o artigo 239: «O cidadão que tenha desempenhado a titularidade do Poder Executivo não poderá ser Presidente ou Vice-presidente da República. Aquele que viole esta disposição ou proponha a sua reforma, bem como aqueles que o apoiem directa ou indirectamente, cessarão de imediato no desempenho dos seus respectivos cargos e ficarão inabilitados por dez (10) anos para o exercício de toda a função pública.»

5. O argumento que Zelaya utilizou para prosseguir com a sua consulta, apesar das sentenças, da Constituição e das novas leis contra, era que não se tratava de um referendo, mas de uma sondagem. Nas Honduras, o voto é obrigatório. Não assim na consulta de Zelaya, onde o voto era opcional. Para contornar as sentenças, a “sondagem” ia ser realizada pelo equivalente hondurenho ao CIS, o Instituto Nacional de Estatística. A oposição argumentava que a consulta estaria manipulada, pois a contagem seria feita por um organismo que depende do presidente.

Ignacio Escolar disse...

As chaves para entender o que se passa nas Honduras II


6. O Supremo Tribunal que ordenou a expulsão de Zelaya do país (segundo a surrealista explicação dos golpistas) não é um Supremo Tribunal equiparável aos europeus. Para começar, porque o seu nome completo é Supremo Tribunal Eleitoral, a sua composição, como a do Supremo Tribunal de Justiça, emana do poder legislativo (isto é, do parlamento, dos partidos que estão enfrentados com Zelaya, os golpistas que hoje deram por bom o golpe militar) e entre os seus poderes está regular as eleições mas não deter os presidentes eleitos. Não é a primeira velhacada desta “instituição”. Quando Zelaya, inesperadamente, ganhou as eleições, o STE atrasou durante mais de um mês o seu acesso ao poder com desculpas técnicas.

7. Como juridicamente não está estabelecido que o presidente deixe de sê-lo porque o exército o deteve em sua casa de madrugada para o obrigar a abandonar o país, os golpistas falsificaram uma carta de renúncia de Zelaya – que o seu suposto autor negou – assinada há dias e onde se assegura que deixa o cargo por motivos de saúde. O Congresso votou hoje a sua destituição e a nomeação de um novo presidente utilizando-a como argumento.

8. A oposição política ao presidente há algum tempo que utilizava o poder judicial para boicotar o seu governo. Entre os casos mais surrealistas está o de um plano para reduzir o consumo de combustível e a contaminação, que foi denominado “Hoje não circula”, a imitação de outro similar do México DF, que funciona desde há anos [5]. Zelaya pretendia obrigar todos os carros a pararem um dia por semana. O Supremo Tribunal de Justiça declarou isso inconstitucional [6].

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