8 de junho de 2009

Veias e$perta$ da América Latina

(Rua do Lavradio, Lapa, Rio)

(Eis um artigo que escrevi para ser publicado numa revista, por isso tem uma linguagem talvez um pouco diferente das que vocês estão acostumados. A publicação não rolou, então entrego a leitura a vocês. O artigo prova, com estatísticas, que a América Latina é o maior e o melhor, de longe, mercado dos produtos brasileiros).

Na primeira semana de maio, a imprensa manchetou que a China havia superado os EUA e se tornado o maior comprador individual de produtos brasileiros nos primeiros quatro meses do ano. A notícia ganhou destaque em todos os jornais e em todos os sites do país. Digitando a frase “China se torna maior compradora de produtos brasileiros”, apareciam milhares de links para textos abordando o tema.

Tratava-se, de fato, de uma notícia fundamental, que aponta mudanças não apenas no comércio exterior brasileiro, mas sobretudo na geopolítica global. Incomodou-me, no entanto, não ter encontrado nenhuma publicação que tenha se dado ao trabalho de usar dados anualizados, ou seja, de checar o quadro dos compradores de produtos brasileiros no acumulado de doze meses até abril deste ano. Análises de comércio exterior devem usar sempre – esta é uma lição que aprendi com meu pai, que trabalhou durante trinta anos com jornalismo especializado nesta área – dados anualizados, para evitar distorções sazonais.

Hoje qualquer cidadão, brasileiro ou não, pode acessar o Sistema Alice pela internet, um banco de dados alimentado mensalmente pelo Ministério do Desenvolvimento, com estatísticas completas sobre o comércio exterior nacional. Fi-lo e descobri o que eu já suspeitava. Na estatística anualizada, a situação permanece estável, com o bloco América Latina e Caribe ocupando o primeiro lugar dentre os maiores compradores de produtos brasileiros, acima da União Européia, Ásia e Estados Unidos.

Meu incômodo não parou aí. Procurei na internet, no Google, a seguinte frase: “América Latina torna-se maior compradora de produtos brasileiros”, e não achei... nada! Mudei a frase para “América Latina é maior compradora de produtos brasileiros” e, novamente... nada! Haverá alguma birra nacional contra a América Latina? Enfim, seja qual for a razão para o silêncio sepulcral sobre um dado econômico tão essencial para a geopolítica brasileira, ele deve ser rompido o mais rápido possível. Este artigo, portanto, é uma tentativa de suprir essa lacuna que, para mim, permanece inexplicável. Ou pelos menos não explicável nesse texto. Deixo a tarefa para outro momento. Ou para outra pessoa.

Antes de prosseguir, gostaria de - como bom brasileiro - reclamar mais um pouco. A “opinião pública” ou “opinião publicada”, o que preferirem, entorpecida com eternas denúncias e crises e imbróglios parlamentares, parece não estar preocupada em conhecer nossas estatísticas de comércio exterior. Em meados de abril deste ano (2009), aconteceu o Fórum Econômico da América Latina. Pesquisei matérias sobre o evento e não encontrei nenhuma referência ao fato do continente ter se tornado o principal mercado dos produtos brasileiros, nem qualquer estatística pertinente. Não é de hoje que a América Latina vem consolidando essa posição; mas, de uns anos pra cá, estes números alcançaram uma magnitude tal que a informação precisa forçosamente chegar a todos os brasileiros.

Quando afirmo que a América Latina é o maior mercado de produtos brasileiros, não digo tudo. Há um fator tão ou mais importante que isso: a América Latina é, sobretudo, o melhor comprador. Para efeito de comparação, voltemos à China. A festejada China importou do Brasil, em 2008, um total de 18,21 bilhões de dólares, o que representou um crescimento de 50% sobre o ano anterior, além de corresponder a 9,2% da receita total das exportações brasileiras. É um número fantástico, ainda mais se considerarmos que, na década de 90, as compras chinesas não passavam de 1,5 bilhão de dólares. Mas a China, mesmo aumentando de forma tão espetacular as compras de produtos brasileiros, não é nosso melhor comprador. É um comprador excelente, um mercado no qual devemos continuar investindo e acreditando, mas, por enquanto não é, definitivamente, o destino mais interessante das exportações nacionais.

Nos quatro primeiros meses do ano corrente, período em que ela se tornou “a primeira compradora individual de produtos brasileiros”, a China importou do Brasil, basicamente, minérios e soja, que responderam juntos por 73% de suas compras. O item “minérios” respondeu por 46% das importações chinesas de produtos brasileiros. Esses minérios – com predomínio de ferro bruto – foram vendidos pela bagatela de 57 dólares a tonelada. Ou seja, a China comprou uma tonelada de minério brasileiro pela metade (ou um terço) do preço de um tênis Nike. Esse preço, aliás, até que melhorou muito. Há dez anos, o Brasil exportava ferro a menos de 20 dólares a tonelada. Na média, as exportações brasileiras para a China em 2008 registraram preço de 106 dólares a tonelada.

Há uma outra tabela que mostra bem como, em se tratando do gigante asiático, devemos evitar excessivo entusiasmo. Em 2008, a balança comercial brasileira com a China ficou negativa em 2,62 bilhões de dólares. E o Brasil, ao contrário da China, importa produtos de alto valor agregado de seu parceiro: metade das exportações chinesas para o Brasil é de produtos eletrônicos (com preço médio de 15.378 dólares a tonelada) e componentes para reator nuclear (preço médio de 8.053 dólares). No total, o preço médio das exportações chinesas para o Brasil, em 2008, ficou em 2.900 dólares a tonelada; e saltaram de 1,8 bilhão de dólares em 2002 para 20,83 bilhões em 2008.

Agora concentremo-nos sobre as exportações brasileiras para a América Latina e Caribe, que atingiram 51,19 bilhões de dólares em 2008, respondendo por 26% da receita cambial no período, com aumento de 22,5% sobre o ano anterior. Em virtude desse desempenho, a região isola-se no primeiro lugar no ranking dos principais importadores de produtos brasileiros, bem à frente da União Européia, Ásia e Estados Unidos. É interessante analisar a qualidade destas exportações: a América Latina se notabiliza como principal escoadouro dos manufaturados nacionais. Em 2008, o preço médio das exportações brasileiras para a América Latina alcançou 1.177 dólares a tonelada.

Comparem: em 2008, o preço médio das exportações brasileiras para a Europa ficou em 361 dólares, revelando que o Velho Mundo só importa mercadorias nacionais de baixo valor agregado, como minérios... e soja; o que me lembra uma frase de Adam Smith: “a variedade de mercadorias cuja importação está proibida na Grã Bretanha, de maneira absoluta ou em certas circunstâncias, supera em muito o que supõem os que não estão bem familiarizados com as leis alfandegárias”. A Europa ainda é fortemente protecionista.

Os principais produtos brasileiros vendidos para a América Latina são: veículos, petróleo, reatores nucleares, máquinas eletrônicas e aço, que possuem um alto valor agregado. Vejamos, por exemplo, o item “Máquinas, Aparelhos e Material Elétricos”, ou simplesmente eletrônicos, que inclui os produtos com o maior valor agregado da pauta comercial brasileira; em 2008, a exportação desses produtos gerou 6,89 bilhões de dólares, respondendo por 3,5% na balança comercial brasielira e situando-se acima das vendas dos tradicionalíssimos açúcar e café. Pois bem: a América Latina absorveu 58% das exportações brasileiras desse item (eletrônicos); os EUA vieram em segundo lugar, mas pagando preço médio bastante inferior: 9.694 dólares a tonelada, contra os 18.450 dólares obtidos nas vendas para a América Latina; a União Européia ficou num distante terceiro lugar; o destaque vai para a África, cujas importações de eletrônicos brasileiros cresceu 49% em 2008, atingindo 305,92 milhões de dólares, ultrapassando a demanda asiática.

Há um fator extremamente importante. Na balança comercial brasileira com a América Latina e Caribe, o saldo em favor do Brasil atingiu o recorde de 22,61 bilhões de dólares em 2008. Este saldo registrou seu primeiro pulo de 2002 para 2003, quando passa de 3,13 bilhões para 6,47 bilhões; no ano seguinte, outro pulo, para 12,45 bilhões; daí em diante, vem batendo recordes sucessivos. Comparando: em 2008, registramos saldo positivo de 1,84 bilhão de dólares com os EUA, de 10,20 bilhões com a Europa, e saldo negativo de 2,6 bilhões com a China. No cômputo geral, o saldo cambial brasileiro no ano passado totalizou 24,83 bilhões de dólares.

Está claro, portanto, que a América Latina tem sido, nos últimos anos, a principal responsável pelos saldos positivos de nossa balança comercial. Guarde esses dados na memória, e pense neles quando ouvir alguém acusando o Brasil de estar sendo tolerante em excesso com seus vizinhos, ou desmerecendo encontros oficiais entre líderes latino-americanos. Eles – los hermanos - podem ser criticados por nacionalizar nossas refinarias na Bolívia, alongar suas dívidas em Itaipu, ou barganhar com a Odebretch no Equador; mas é injusto omitir que são nossos mais nobres e importantes parceiros comerciais.

Na América Latina e Caribe, os parceiros do Brasil mais importantes são Argentina, Venezuela, Chile, México, além da pequena ilha anglófona de Santa Lucia – que importa grande quantidade de petróleo brasileiro. Peru, Colômbia, Uruguai, Bolívia e Equador também merecem destaque. Comecemos analisando nossa relação com a Argentina.

A balança brasileira com a Argentina era negativa até 2003. A partir de 2004, o Brasil começa a registrar saldos positivos expressivos, com recorde em 2008, quando atingiu 4,34 bilhões de dólares. A corrente de comércio - exportação + importação – entre Brasil e Argentina cresceu formidavelmente nos últimos anos, alcançando 30,86 bilhões de dólares, valor similar ao que os EUA registravam até 2003. Também é próxima à atual corrente de comércio registrada entre Brasil e China, que em 2007 ficou em 25 bilhões de dólares (e em 2008 foi de 39 bilhões). Considerando que a Argentina tem uma população de 40 milhões, contra 303 milhões nos EUA e 1,32 bilhão na China, vê-se que é um volume estupendo.

Os principais produtos brasileiros exportados para a Argentina são: veículos, reatores nucleares, eletrônicos; os mais nobres de nossa pauta comercial. Nossos eletrônicos - indicados no item Máquinas, Aparelhos e Material Elétricos - foram exportados para a Argentina por 19.216 dólares a tonelada, patamar muito superior ao registrado nas vendas de artigos similares para Europa e EUA. No total, o Brasil exportou 1,71 bilhão de dólares em eletrônicos para a Argentina. A exportação do mesmo produto (eletrônicos) para os 27 países-membros da União Européia totalizou 758,20 milhões de dólares, com preço médio de 9.449 dólares a tonelada.

Outro mercado latino interessantíssimo é a Venezuela. Quem ler nossos jornais pensará que se trata de um país altamente nocivo para a economia brasileira. A verdade, porém, é que, independente do que se pensa sobre Hugo Chávez, a Venezuela consolidou-se como um de nossos compradores mais qualificados, importando do Brasil manufaturados de altíssimo valor. Os principais artigos brasileiros vendidos para a Venezuela são eletrônicos, autopeças e reatores nucleares, além de carne, leite e animais vivos. As exportações brasileiras de carne para a Venezuela passaram de zero há dez anos para 960,02 milhões de dólares em 2008; em relação ao ano anterior, o crescimento foi de 193%. A venda deste item – assim como de leite, animais vivos e cereais - provavelmente conecta-se a problemas temporários de abastecimento no país, mas isso mostra que o Brasil estabeleceu-se como fornecedor confiável de gêneros alimentícios de primeira necessidade. O Brasil vendeu ainda um total de 624,15 milhões de dólares em eletrônicos para a Venezuela, a um preço médio notável, de 30.170 dólares a tonelada. A balança comercial brasileira com a Venezuela, que era negativa nos anos 90, começou a se tornar positiva na virada do século e encerrou o ano 2008 em 4,61 bilhões de dólares.

Em terceiro lugar no ranking dos principais importadores latino-americanos de produtos brasileiros, vem o Chile, grande comprador de petróleo, veículos, reatores nucleares, aço e eletrônicos. O preço médio das exportações para o Chile em 2008 atingiu 1.227 dólares a tonelada. O Brasil obteve saldo comercial positivo com o Chile de apenas 713,07 milhões de dólares, porque o país, além de comprar muitas mercadorias brasileiras, também exporta grande quantidade de artigos para o Brasil. As exportações brasileiras para o Chile totalizaram 4.79 bilhões de dólares, ao passo que o Brasil importou o equivalente a 4,07 bilhões em produtos chilenos.

Adam Smith defendia uma tese que, como tantas outras de sua lavra, continua válida hoje. Afirmava que a riqueza das nações não está na quantidade de ouro ou prata acumulada em cofres particulares ou públicos; o principal tesouro das nações reside na produção de mercadorias, incluindo aí os recursos naturais disponibilizados para consumo interno e exportação. “Se houver falta de matérias-primas para a indústria, esta tem que parar. Se houver falta de gêneros alimentícios, a população passa fome. Mas se faltar dinheiro, o escambo supre a sua falta, embora com muitos inconvenientes. Para remediar esses inconvenientes, poder-se-á comprar e vender a crédito, ou então, os diversos comerciantes poderão compensar seus créditos entre si, uma vez por mês ou uma vez por ano. Por outro lado, um sistema de papel-moeda bem organizado pode suprir a falta de dinheiro em moeda, não somente sem inconveniente algum, mas até, em certos casos, com alguma vantagem. (...) As mercadorias podem servir a muitos outros objetivos, além de comprar dinheiro, ao passo que o dinheiro não serve para nenhum outro objetivo, senão comprar mercadorias. Por conseguinte, o dinheiro necessariamente corre atrás das mercadorias, ao passo que estas nem sempre ou necessariamente correm atrás do dinheiro.” Analisando as terríveis e prolongadas guerras empreendidas pela Inglaterra, Smith conclui que só foi possível financiá-las através da produção e exportação de mercadorias. “A enorme despesa da última guerra deve ter sido paga, principalmente, não pela exportação de ouro e prata, mas pela exportação de mercadorias britânicas de várias espécies. (...) As mercadorias mais adequadas para serem transportadas a países distantes, a fim de lá comprar o pagamento e as provisões de um exército, parecem ser os manufaturados mais finos e mais aperfeiçoados”.

Falamos, enfim, de um país que, pela primeira vez na história, vislumbra uma luz no longuíssimo túnel de pobreza e subdesenvolvimento em que se meteu desde o seu descobrimento. Um país que exportou, em 2008, quase 200 bilhões de dólares, um valor quatro vezes superior ao praticado uma década atrás; e importou 173,10 bilhões, o que representou igualmente um crescimento surpreendente. Há dez anos, o Brasil registrava exportação de 48,01 bilhões e importação de 49,30 bilhões de dólares. Ao constatar o fluxo circular da vida econômica, Joseph Schumpeter afirma que todo indivíduo, mesmo sem disso ter consciência, é um sujeito econômico completo, comprador não apenas de pão, leite e carne, mas também, direta ou indiretamente, de minérios, ouro e bens de capital; e também, direta ou indiretamente, participa de todo processo de produção. “O processo social, na realidade”, diz o economista, “é um todo indivisível”. Para saber em que país vivemos e quem somos nós, portanto, importa conhecermos, minuciosamente, o que vendemos, pra quem vendemos, e qual o preço que nos pagam.

Para ler esta matéria em PDF, com estatísticas e gráficos, clique aqui.

E aqui você faz um download de 52 tabelas sobre o comércio exterior brasileiro com a América Latina (incluindo alguma coisa com a China, Europa e EUA).

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