1 de outubro de 2011

A guerra entre Íblis e Lúcifer

Reproduzo abaixo a matéria que foi publicada na última edição da Fórum, que foi uma edição comemorativa de 10 anos.



Eu liberto a terra e aprisiono os céus. Eu me jogo ao chão para permanecer fiel à luz, para fazer do mundo um lugar ambíguo, fascinante, dinâmico e perigoso. Para anunciar que irei além dele. O sangue dos deuses continua fresco em minhas roupas. O grito de uma gaivota ecoa em minhas páginas. Deixem-me simplesmente empacotar minhas palavras, e partir.

Essas palavras dramáticas, excerto de um poema intitulado No limite do Mundo,  foram escritas por Adonis, um dos maiores poetas árabes vivos. Servem de mote para este breve ensaio sobre as mudanças no mundo árabe ocorridas na última década.

Que mudanças são dignas de nota? Podemos começar observando que não foram exatamente os céus que foram aprisionados, mas sim quatro aviões; nem a terra alguma foi libertada; um portão se abriu, todavia, dando fuga aos piores demônios do inferno cristão e do inferno islâmico.

O céu terrivelmente belo em Nova York, pronto para receber 2.996 almas, a maioria das quais não dirigiu-se ao paraíso - eram infiéis.

O demônio do Islã se chama Íblis, é o correlato do Lúcifer cristão. Nesses últimos dez anos, ambos travaram uma sangrenta disputa para saber quem receberia mais condenados. É com orgulho que nós cristãos podemos afirmar que vencemos. Se Íblis recebeu 3 mil infiéis naquele fatídico ano, Lúcifer arrebanhou quase um milhão de almas de 2001 aos dias de hoje - isso considerando apenas as vítimas diretas e indiretas da última guerra no Golfo Pérsico.

E desde Dante sabemos muito bem o que acontece aos muçulmanos depois da morte. A diferença é que hoje acontece em vida mesmo.

Chi poria mai pur con parole sciolte
dicer del sangue e de le piaghe a pieno
ch'i' ora vidi, per narrar più volte?

Quem, mesmo em prosa, poderia
falar do sangue, e das feridas
horripilantes que eu ali via?

Dante descreve então a tortura inflingida a Maomé, levado para o oitavo círculo do inferno (dos semeadores de intriga e discórdia), cujo corpo é sistematicamente mutilado por um demônio. A cena, presente no capítulo 28 do Inferno, parece descrever o cenário de um café em Bagdá após um atentado terrorista:

Às pernas o intestino lhe escorria;
a mostra estavam nele, o coração
e a bolsa que o alimento recebia.

Depois da mutilação, porém, as feridas se fecham, preparando o corpo do condenado para receber outro golpe. Não parece a história recente do Iraque?

Não se pode falar de árabes, e da visão que temos de sua cultura, sem mencionar Edward Said, sobretudo a sua obra Orientalismo, clássico dos clássicos sobre o imperialismo cultural do ocidente. É realmente muito triste que o grande intelectual palestino, que estudou e lecionou nas maiores universidades americanas (Harvard, Yale e Columbia) tenha morrido antes de assistir a queda de Mubarak!

Said faz um levantamento minucioso e erudito de tudo que o Ocidente escreveu sobre os árabes nos últimos mil anos. E constata que o imperialismo europeu e depois o americano fundamentou-se também no domínio da cultura, sobretudo a partir da chegada de Napoleão ao Egito. O ditador francês entra em Cairo levando um comitê de “sábios”, encarregados de registrar e estudar tudo que encontravam. Desde então, surge na Europa a figura do “orientalista”, com ênfase durante muito tempo no oriente próximo, ou seja, no mundo árabe muçulmano.

No prefácio para a edição de 2003 de Orientalismo, Said lamenta que o debate internacional sobre o mundo árabe tenha se empobrecido assustadoramente nos últimos anos; o mais grave é que ele parece ter sido empobrecido deliberadamente pelos falcões de guerra. “Parece-me inteiramente expressivo do momento em que estamos vivendo o fato de que, ao pronunciar seu discurso linha-dura de 26 de agosto de 2002, sobre a necessidade imperativa de atacar o Iraque, o vice-presidente Cheney tenha citado, como seu único “especialista” em Oriente Médio – favorável à intervenção militar no Iraque -, um acadêmico árabe que, como consultor remunerado pela mídia de massas, repete todas as noites pela televisão seu ódio pelo próprio povo e sua renúncia ao próprio passado”.

Said, todavia, também faz algumas críticas aos árabes: “Nos países árabes e muçulmanos, a situação não chega a ser muito melhor. (…) a região escorregou para um antiamericanismo fácil que mostra pouco entendimento do que os Estados Unidos efetivamente são como sociedade.”

A conclusão de Said é que, “o humanismo é a única possibilidade de resistência”, sendo que “somos favorecidos pelo campo democrático fantasticamente animador do ciberespaço, aberto para todos os usuários de maneiras jamais sonhadas pelas gerações anteriores”.

O intelectual, portanto, meio que prevê a “primavera árabe”, a qual, aliás, parece ter se convertido num  verão infernal, a julgar pelos acontecimentos recentes na Líbia e na Síria.

Lendo o blog Syria Comment, de Joshua Landis, diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio e professor na Universidade de Oklahoma, não há como deixar de pensar naqueles orientalistas citados por Said em seu livro, com suas sociedades, centros, fundações, voltadas para o estudo das coisas árabes, e que foram todas, sem exceção, instrumentalizadas para servir ao imperialismo europeu.

Entrevistado por uma TV americana, Landis afirma que os árabes, “num certo sentido, abraçaram as ideias de George Bush sobre liberdade e democracia”. O blog de Landis é o mais lido nos EUA sobre o oriente médio; como reagir a esse tipo de sofisma idiota? Folheando o livro de Said, encontro uma citação de Shakeaspare (é uma fala do Bobo, no Rei Lear) que pode nos trazer um pouco de humor: “Eles mandam que eu seja açoitado por falar a verdade, tu mandas que eu seja açoitado por mentir; e às vezes sou açoitado por ficar calado”.

Os árabes, por vezes, vivem o pior dos mundos. Se apoiam a ditadura, sofrem com sua brutalidade; se apoiam a democracia, são acusados de conspirar ao lado dos americanos; e às vezes apanham simplesmente porque não apoiam nenhuma coisa nem outra.

Enfim, falar dos árabes é algo extremamente arriscado, sobretudo após ler Orientalismo, de Said, porque somos expostos a nossos próprios preconceitos e manias. A pior das manias é a arrogância de achar que conhecemos muito bem o Oriente Médio apenas porque lemos os artigos de Pepe Escobar.

Voltemos, portanto, a poesia de Adonis. “Eu convoco anjos e ambulâncias – eu me transformo em água e escorro para a piscina de minhas tristezas, ou me torno num horizonte e escalo os cimos do desejo. Eu sei que nós morremos apenas uma vez – e renascemos a toda hora. E sei que a morte somente é útil, se a gente a atravessar. Eu sei que o imediato é esta rosa, essa mulher, e que uma face humana está do outro lado do céu.”

Esta “face humana do outro lado do céu” é justamente o que procurava Said nos compêndios eruditos que os europeus escreviam sobre o oriente médio ao longo dos últimos duzentos anos. Said sonda centenas de livros tentando encontrar quem visse os árabes não mais como árabes, mas como seres humanos. Quem visse a cultura árabe não como um objeto de estudo que, como tal, deva permanecer estática, como um modelo vivo a quem ordenamos que não se mexa para que possamos retratá-lo à perfeição. Said defende a cultura árabe enquanto uma entidade viva, dinâmica, em movimento constante. Evoluindo às vezes, regredindo, pausando aqui e avançando enlouquecidamente acolá. Said defende a individualidade única de cada árabe, na contramão das generalizações esquemáticas e simplórias que as mentes mais brilhantes e eruditas costumavam fazer.

É interessante observar como Said não questiona a genialidade, o esforço e o talento dos estudiosos europeus que souberam apreender e decifrar linguas mortas, realizar escavações arqueológicas, e pesquisar a história do oriente desde seus primórdios, além da competência inegável na construção de ferrovias, portos, canais, pontes, indústrias e lavouras. A sua acusação é contra o tratamento frio e esquemático a uma cultura tão viva.  Ele percebe então que às potências imperialistas não interessava que essas culturas adquirissem consciência de sua força, dinamismo e vivacidade.

Não havia nada de errado com os árabes. Ao contrário, eles haviam constituído, na Alta Idade Média (séculos VIII e IX), um dos maiores impérios do mundo, estentendo-se da Espanha à China. Houve um momento em que o mundo árabe formou um crescente ameaçador ao redor da Europa, prestes a sorvê-la com a sua força militar e cultural. As primeiras universidades européias, em Córdoba, foram fundadas por árabes, os quais durante séculos protegeram os tesouros da civilização helênica, entre eles a obra de Aristóteles.

Nos últimos dez anos, os árabes viveram as revoluções tecnológicas com o mesmo entusiasmo e interesse demonstrado por qualquer outro povo. Os egípcios criaram blogs, alguns passaram a fazer ativismo político na rede, e todos usaram a internet para ampliar seu conhecimento sobre o mundo. O ocidente, por sua vez, pode conhecer melhor os árabes.

Podemos, por exemplo, conhecer a poesia do palestino Mahmoud Darwish, outro que Said aponta como um dos dois maiores poetas árabes contemporâneos :

Meu céu está cinza. Coce minhas costas. E desfaça meus cachos, você mesmo, estranho. E me diga o que se passa em sua cabeça. Diga-me coisas simples, diga-me o que uma mulher gostaria de ouvir. (…) Diga-me o que Adão disse em segredo para si mesmo. (…) Fale que duas pessoas, como eu e você, podem suportar toda essa semelhança entre a névoa e a miragem, e retornar em segurança. Meu céu está cinza; o que você pensa quando o céu se acinzenta?

(Trecho do poema “Dois pássaros estranhos no mesmo gallho”).

Nos últimos dez anos, portanto, os árabes não passaram todo o tempo voltados para Meca, rezando. Eles também escreveram poemas, amadureceram ideais democráticos, derrubaram torres gêmeas, derrubaram ditadores – e se tornaram os maiores compradores mundiais de frango brasileiro.

De qualquer forma, devemos ficar de olho aberto, pois há trechos no Alcorão que mais parecem memorandos do Pentágono, “se eles lutarem contigo, mate-os de uma vez. Essa é recompensa para aqueles de pouca fé.” (2.191 ).

(Imagem: Gustave Doré, ilustração do Inferno de Dante)

1 comentário

Anônimo disse...

Por que a responsabilidade do devoto ir para o Inferno TAMBÉM não seria do Criador

Já que Deus cometeu os erros imensuráveis de criar o MAL, criar Lúcifer, criar o INFERNO, colocar humanos imperfeitos num mundo hostil; e deixar a responsabilidade da salvação nas mãos de simples mortais...

Já que a tortura eterna no fogo do Inferno não resolvesse coisa alguma, e seria apenas uma vingança cruel, e mesquinha, bem como, uma falta de piedade, que seria indigna de Deus.

E mesmo antes de alguém nascer, Deus sendo onisciente, ele já conheceria o fim de cada existência, e saberia quais os que serão salvos...
Pois Deus é o conhecedor das possibilidades, dos gostos, e de TUDO que a sua criatura fará...

Qual o desculpa de Deus oferecer aos humanos algo, que ele em sua Onisciência já saberia de antemão que não seria aceito?

Se Deus já saberia os que seriam pecadores, e os que seriam destinados ao sofrimento eterno no inferno, por que ele criaria essas sofridas criaturas?

Deus poderia muito bem impedir o nascimento dos pecadores, pois ele não estaria influindo no “livre arbítrio” já que os mesmos ainda não teriam existido.
Se Deus não faz nada, e ainda permite que paguemos eternamente por algum erro cometido em minutos... Então Deus seria um sádico...

Qual o propósito de um castigo eterno, depois da morte; e depois que o mundo acabou; se o castigo já não serviria como advertência para os demais, e se trataria de alguma simples vingança. O que seria moralmente incorreto para um Deus infinitamente piedoso.

Se Lúcifer e um terço dos anjos que viviam no Céu, e na presença do Criador, mesmo sendo infinitamente mais perfeitos do que os humanos, em vez de sentir gratidão, sucumbiram ao orgulho, e falharam em continuar sendo submissos a Deus ...
O que impediria que ao longo da eternidade alguns dos humanos que estarão no Céu, não cometam algum pecado que possam mandá-los para o "Inferno"?

Embora as religiões com os seus cânticos, sinos, incensos, velas, vestuários, ídolos, tambores, danças, orações ou rituais, cause alterações na percepção do devoto, e caiba dentro da definição de hipnose, como as crendices referentes as reencarnações são bem mais agradável do que o cristianismo; caso alguém para obter algum equilíbrio biopsicossocial, necessite acreditar em alguma crendice extraordinária; seria preferível escolher alguma crença onde se pudesse reencarnar para paga os pecados cometidos, e não o cristianismo, com o seu medonho castigo eterno.
Lisandro Hubris


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