25 de julho de 2008

Memórias e desmemórias da Lapa

(Essa é uma gravura de um punk que o Justo comprou ontem na Lapa e me mandou por email hoje. Achei legal).



Tranquila noite lapiana. Justo passou aqui e saímos. Na esquina da Riachuelo com a Lavradio, bar do Paulinho, uma grata surpresa: Bortolotto e demais participantes da peça À Queima Roupa. Fui com o Justo ver como eram os dois bares novos que abriram ali ao lado, na Riachuelo, com temática rock 'n roll. São bonitos, porém mauricinhos demais. Talvez com o tempo, eles absorvam a atmosfera informal do bairro. Mas é um sinal de que tem gente tentando rachar o monopólio do samba, graças a Deus, ou ao diabo, se for o caso dele ser mesmo pai do rock, como diz Raulzito. Tenho feito bastante pressão espiritual nesse sentido, de trazer mais rock pra Lapa. Sintomático que os bares estejam no meu quarteirão preferido, entre a Lavradio e os Arcos. É uma área bastante preservada arquitetonicamente. De um lado da Riachuelo, os prédios pertencentes à Terceira Ordem do Carmo; de outro, onde fica o Paulinho, os sobradões centenários, e um edifício art noveau magnífico. Para quem não sabe, a Riachuelo é a antiga Mata-Cavalo, a rua onde moravam Capitu e Bentinho, os protagonistas de Dom Casmurro. Pensando bem, o bar não tem que ser "temático" em rock. Basta tocar rock, ser rock. E quando eu falo rock, eu penso também em bipbop, em Jonhy Cash cantando Girlt From North Country junto com Dylan e Hendrix tocando The Wind Cries Mary. E no The Animals, é claro, tocando The House of Rising Sun.

A Lapa continua vivendo um grande momento. Libertou-se da Joaquim Silva e agora cresce pela Mem de Sá e Riachuelo. Alguns, sobretudo os anarquistas, como o Mirisola, reclamam do ar moderninho chique que prolifera no bairro. Mas a Lapa ainda tem muita gordura a ser queimada, quer dizer, os moderninhos são uma minoria; 80% da Lapa ainda são botequins mal ajambrados, casas de show suspeitas e pensões vulgares, enfim a legítima e velha Lapa. E algumas das casas moderninhas são legais também. Atraem umas garotas mais bem vestidas. E o Paulinho, que de moderninho só tem a placa doada pela Inbev, e cujo nome oficial é Bar do Gerson (o Paulinho voltou pra Minas) agora vende uísque importado. Isso é um progresso!

Eu e Juliano, nobres utopistas de botequim, mais uma vez procuramos acertar os problemas brasileiros, tarefa que exige notável dose, ou doses, de energia, quer dizer, cachaça. O inverno carioca é uma maravilha, porque a temperatura não cai muito, chove pouco, e as noites ficam amenas, um clima mais cool, calmo, limpo, bem diferente do verãozão enlouquecedor, sensual e sujo, quarenta graus latejando nas suas têmporas. Há dez anos moro na Lapa ou perto dela. Primeiro morei 30 dias no hotel Santa Teresa, o famoso hotel dos descasados, que na verdade era uma pensão que alugava quartos por um valor mensal, variando de R$ 400 com banheiro e R$ 300 sem banheiro.

Mudei-me enfim para a rua da Lapa n.1, área que concentra o maior número de travestis por metro quadrado do país. Era um prédio legal, novo, onde residi três anos numa quitinete cujo tamanho estava na proporção inversa da minha sensação de liberdade. Um cômodo só, estreito, de um lado um arremedo de cozinha, de outro o sofá-cama e a mesa. Para usar a mesa, eu tinha que fechar a cama. Mas era meu palácio e tinha uma bela vista para as montanhas de Santa Teresa.

Foi uma época difícil, como aliás são todas, mas essa em particular por causa da morte recente do meu pai e das responsabilidades súbitas que eu assumira. O poeta cedeu lugar ao jornalista especializado em café, mas exigiu, em troca, um mergulho na boemia profunda e bandida da Lapa.

Em meio ao burburinho, eu ainda editava o jornal Arte & Política. Bons tempos do bar Pega Leve, pilotado por Seu Nilo, que só tocava blues, ou um tempo antes, o bar do Seu Cláudio, com suas inesquecíveis rodinhas de samba de segunda-feira. Nessa época, eu havia abandonado a faculdade, pela enésima vez, e saía quase todas as noites. Minha tática para não deixar a Lapa me consumir totalmente era sair bem tarde de casa. Passava as tardes lendo, fingia trabalhar um pouco, lia mais, escrevia um tanto e, à noite, fazia minha festinha particular, com uísque nacional, charuto e música. Dançava sozinho em casa, ao som de Bob Dylan, bêbado e feliz, depois ia para a esbórnia da Joaquim Silva.

De vez em quando, arrastava uma vagabunda pra casa. Havia cortado laços com qualquer movimento literário local ou nacional, mas ainda era reconhecido como poeta por toda a marginália das letras. Eu gosto da Lapa porque é um bairro simples, mas culto. Diferentemente de Ipanema, onde as pessoas escondem sua cultura como quem teme usar jóias na rua. Não querem mostrar que são elite. Querem ser "povo", então evitam qualquer conversação de alto nivel.

Na Lapa, não. Na Lapa todo mundo conversa sobre tudo, sem pudor. Filosofia alemã, futebol, purrinha, Dylan Thomas, culinária. Nesses dez anos de Lapa, eu nunca saí à noite sem desfrutar um bom papo cabeça. Não apenas com intelectuais. Qualquer zépovinho da Lapa sabe discutir política internacional. Alguns são especialistas, outros só falam besteira. Mas todos têm sua opinião e merda por merda, não existe pior burro do que o letrado, mas isso é uma teoria que explico depois. Na Lapa, ia dizendo, há aviadores desempregados, oficiais expulsos do exército, professores de ginásio, camelôs, advogados e uma pá de gostosas pedantes ciscando de bar em bar.

De qualquer forma, a gente sempre termina no "quadrilátero do crime", na encruzilhada diabólica da Gomes Freire com a Mem de Sá, onde ficam os bares que nunca fecham. A gente pendura as chuteiras naquelas bandas, quando começamos a trocar o português pelo sânscrito. Mesmo sentados na mesma mesa, gritamos uns com os outros como se estivéssemos separados por quilômetros, frases soltas, disparatadas, respondidas por absurdas risadas, motivadas principalmente pela cara de palhaço alheia.

Até que alguém, corajosamente, ergue-se e foge dali, dando início à revoada. Esses momentos, desde que saio do bar até acordar no dia seguinte, é um período eivado de mistério, um não-tempo, porque não lembro direito como chego em casa e o que faço. Amor, talvez. Devoro um pedaço de pizza fria? Vejo metade de um filme com o velho Bogart? Enfim, existo sorrateiramente por algum tempo, antes de adormecer e sonhar com uma choupana à beira do São Francisco, onde poderei escrever em paz...

*

Não percam, neste sábado, a última chance de assistir Bortolotto no Rio. Domingo, o preço é R$ 1, mas é preciso chegar mais cedo para comprar o ingresso.

À QUEIMA ROUPA
Texto, Direção, sonoplastia e iluminação : Mário Bortolotto
Elenco : Eucir de Souza, Mário Bortolotto, André Ceccato, Marcos Amaral, Walter Figueiredo, Alessandro Bartel e Fábio Guará.
Operação Técnica : Marcelo Montenegro
Direção Técnica : Régis "Nêgadete" dos Santos
No Teatro Ziembinski - Tijuca
25, 26 e 27 de Julho - às 20h
Rua Heitor Beltrão, s/n (em frente ao metrô São Francisco Xavier)
Ingresso : R$ 15 (meia : R$ 7,50)

6 comentarios

josaphat disse...

Me lembrou dos tempos em que lia Kerouac e vadiava entre o Santa Teresa e o Santo Antônio aqui em BH.
Bons e terríveis tempos!

tete bezerra disse...

lindíssima crônica sobre a lapa do jeito que eu gosto, a lapa sem os mauricinhos,deixa o samba imperar,tem mais a ver com o espírito da lapa.seus bares decadentes,os famosos pés sujos,tão necessarios aos verdadeiros boêmios.

Anônimo disse...

Eu me encantei pelo ÓLEO DO DIABO deste blog, porque vi que aqui também se fala de poema, poesia, crônicas...Desses há muitos poucos no universo virtual. A gente não quer só política, a gente quer arte também. A crônica sobre a Lapa está belíssima. E é aqui que vou me aportar todo dia, nem que o Diabo me escorrace ou me queime em ÓLEO QUENTE. A propósito, eu sou mulher, daí o (f) de feminino.
Abraços!

Anônimo disse...

COMPANHEIROS VIRTUAIS

Eu fico cá imaginando cada um deles
As suas manias e gestos habituais
O que fazem ou lêem no momento
Suas famílias e seus animais
Seus livros, músicas e talentos
Alegrias, tristezas, tormentos
E as coisas que lhes são normais.

E eu me pergunto:
Será que gente virtual existe
De verdade ou de mentirinha?
Oi? Quem é você amigo, ou amiga,
Cruzando a minha telinha?
São tantos carinhos, afetos, magia
E também farpas, brigas, arte, poesia...

Tudo num faz-de-conta
Como o sol beija a areia dos desertos
E o mar roça as praias e escarpas
E as estrelas inexistem durante o dia
É um grande mosaico de amores e iras
Rebentos de palavras amorosas
Doidivanas, ensandecidas e luminosas.

Eu me mergulho em cada comentário
Na tentativa de lhe arrancar a alma.
Vou nas entrelinhas buscar a essência
De cada um que trafega na tela
De meu notebook ecumênico
Bem mais generoso de que eu
Muitas vezes carregada de picuinhas.

Cada um é extremamente especial
Com sua peculiar fragrância
Com seu jeito de ouvir, de falar
Mas a mim só cabe imaginar
Os meus amigos virtuais
De tantas horas passadas juntos
Tão verdadeiros, mas tão irreais.

Autora: lu dias/bh

Anônimo disse...

Caro Miguel,

Manchete do último post do blog do Igor:
BRASIL PODE ULTRAPASSAR A ARÁBIA SAUDITA E SE TORNAR O DETENTOR DAS MAIORES RESERVAS DE PETRÓLEO DO MUNDO


Blog do Igor: http:/alexeievitchromanov.zip.net

Abraço

Alberto

Anônimo disse...

Muito legal o que escreveu, me deu vontade de mais de ir à Lapa,.. e fui! Fui dois dias seguidos, coisa que jamais ocorre.
Só não foi mencionado neste texto (talvez por não fazer parte da sua experiência, com todo o respeito) a multidão de entidades que vagam, batucam, bebem, conversam, e estão incógnitas, na noite da Lapa. Só na sexta, agora, eu bati um papo com Zé Pilintra, Exu Maioral, e Maria Mulamba. Fora um outro aí que nem sei quem era. Você vê e acha que são pessoas...

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