7 de setembro de 2009

A lenha de Lincoln

(Continuando minha sequência de fotos dos arredores da Cruz 
Vermelha e Lapa,  com seus sobrados do início do século XX...)


Terminei de ler Lincoln, de Gore Vidal. Trata-se de um romance histórico fortemente documentado e, segundo o próprio autor, com raras pinceladas de ficção. De posse de correspondências, biografias, reportagens, Vidal reconstrói o mandato de Abraham Lincoln em detalhes. O livro é uma interessante oportunidade de conhecer melhor um dos momentos mais dramáticos da história dos Estados Unidos.

Qualquer comparação, como a que eu fiz em post anterior, da realidade de Lincoln, que viveu a pior guerra civil já registrada na história mundial moderna, com a política brasileira, é naturalmente leviana. Mas não impede que possamos tirar algumas lições dos acontecimentos, e aplicá-las por aqui. O que chama a atenção, em primeiro lugar, é o talento de Vidal em humanizar, para o bem e para o mal, o entorno político do presidente americano. Os senadores ganham carne, ambição, alcoolismo, e filhas. A esposa de Lincoln, Mary, é uma mulher extremamente fútil e consumista, que não hesita em vender favores a lobbistas em troca de dinheiro, para poder pagar as enormes dívidas que contrai junto a lojistas de Nova York. A corrupção de Mary, no entanto, é inocente, consequência de um espírito ignorante e desequilibrado, frágil diante dos argumentos capciosos com que vários ambiciosos capturam sua psique.

Há o senador Salmon Chase, um competente secretário do Tesouro, mas devorado pela ambição de ocupar a cadeira de seu superior. Durante quase toda sua gestão, Chase articula para derrubar Lincoln ou, diante da impossibilidade disso, evitar sua reeleição e eleger-se, ele mesmo, presidente dos Estados Unidos. Símbolo de moralidade e ética, Chase não se notabiliza no item lealdade, e trai Lincoln e, inconsciententemente, pressiona a própria filha, uma linda e genial garota, a se casar com um industrial milionário, para resolver seus problemas financeiros e pavimentar seu caminho político até a Casa Branca.

Na formação de seu primeiro gabinete, Lincoln, representante de uma minoria do partido republicano, vê-se obrigado a nomear adversários, como Seward - para a secretaria de Estado - e Chase - para a secretaria do Tesouro. Obriga-se mesmo a tomar a dolorosa decisão (segundo Vidal) de nomear um figurão notoriamente corrupto, mas com grande poder político, para a importante secretaria de Guerra.

Enfim, Lincoln adota uma cautela infinita, evitando rupturas a todo custo, para alcançar a necessária governabilidade num país consumido por uma guerra civil. Os políticos acusam-no de indecisão e incompetência. Todos querem derrubá-lo. Os jornais produzem editoriais e caricaturas cada vez mais agressivas contra o novo presidente. O norte sofre várias derrotas militares do sul escravista. Mas Lincoln resiste a tudo e, sempre usando de uma prudência inabalável, consegue manipular aliados e adversários ao mesmo tempo que estes acreditam estar manipulando Lincoln.

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Lincoln foi o primeiro presidente americano a ter exercido trabalho braçal em sua juventude. Foi cortador de lenha por muitos anos, e provinha de família simples de Illinois. Certo que carregou um pouco nas tintas durante sua primeira campanha para presidente, visando obter os votos dos trabalhadores, referindo-se à cabana miserável onde viveu e a seu trabalho braçal - mas nada disso era mentira. Lincoln formou-se em Direito e logo se tornou um advogado de relativo sucesso, trabalhando para companhias ferroviárias. Mas esse também era um emprego considerado um tanto "plebeu" pela elite política americana da época, e por isso, Lincoln enfrentou muito preconceito.

O mais interessante é como Lincoln realiza seus objetivos sempre respeitando as forças políticas do Congresso, procurando consolidar alianças com os mais variados grupos políticos. No entanto, as condições excepcionais de guerra vividas por Lincoln obrigaram-no a tomar algumas medidas nada democráticas, como ordenar prisão de editores de jornais que lhe faziam oposição sistemática, mantendo-os isolados, e sem julgamento, por semanas, desmantelando assim diversas campanhas midiáticas contra seu governo.

Aliás, o livro ressalta bastante a importância da imprensa para a vida política americana. Vidal retrata editores interessados em apoiar ou atacar figuras políticas, nem sempre em função de um posicionamento independente, mas frequentemente com objetivos partidários e mesmo pecuniários. Aliás, a tradição dos jornais americanos em alinhar-se de forma transparente a este ou à aquele candidato ou tendência política, certamente é uma qualidade ímpar no jogo de poder americano. Outra qualidade é a diversidade de tendências, com quase todas as grandes cidades possuindo jornais muito influentes, cujas opiniões múltiplas e muitas vezes antagônicas, produzem uma atmosfera de debate bastante saudável. Há momentos em que quase todos os jornais se unem em determinada campanha partidária, mas, de forma geral, há vasta heterogeneidade de opiniões.

É bom não esquecer que, no entanto, a guerra ideológica presente nos jornais americanos foi o embrião da guerra militar. A classe de reacionários escravistas detinha grande quantidade de publicações e rádios e os usavam para realizar verdadeiros bombardeios ideológicos sobre a opinião pública, envenenando o ambiente a tal ponto que o recurso à violência tornou-se inevitável.

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A guerra de Secessão (1861 a 1865) foi a maior carnificina já vista na história contemporânea das Américas, talvez só comparável à guerra do Paraguai. Em cerca de 4 anos, os americanos aniquilaram quase 1 milhão de vidas humanas.

5 comentarios

Hugo Albuquerque disse...

Gore Vidal é um dos poucos intelectuais americanos que merece atenção. O livro, aliás, é uma boa dica. Só não custa lembrar que Lincoln, o produto mais profícuo da chamada democracia jacksoniana, talvez carregasse nas tintas sobre seu passado pobre por conta daquela imbecilidade americana do engradecimento via quantidade de trabalho realizada - uma falácia copiada a seu modo pela própria social-democracia alemã -, mas não para conquistar voto de trabalhadores: Naqueles tempos só votavam nos EUA homens brancos com grana para pagar a taxa eleitoral, no máximo, uma classe média para cima.

Miguel do Rosário disse...

Legal, Hugo. Você é o comentarista ideal, sempre trazendo uma informação nova e inteligente.

Abraço,
Miguel

Hugo Albuquerque disse...

Bondade sua, Miguel ;-)

Miguel do Rosário disse...

Mas a taxa eleitoral era tão alta assim? Sei que Lincoln foi reeleito com a maioria dos votos dos soldados.

José Carlos Lima disse...

Sobre o caso Battisti, se o STF tirar do presidente o direito de conceder indulto a estrangeiros, estaremos diante de um grave precedente.
Em jogo as prerrogativas do presidente da República e a soberania nacional.

“As intervenções do governo italiano, de seus parlamentares, de sua imprensa controlada contra a decisão do ministro Tarso Genro, inclusive o contrato de caros advogados, mostram claramente haver um enorme interesse político do governo Berlusconi, rodeado de velhos e novos fascistas, de aplicar uma severa punição num revolucionário dos anos agitados da Itália.

Se o STF optar pela extradição de Cesare Battisti, alem da bofetada no ministro Tarso Genro, será passada em cartório a submissão da nossa côrte máxima, não às razões jurídicas mas aos interesses políticos de uma classe política estrangeira que nada tem a ver com a do Brasil.
É importante a liberdade de Cesare Battisti, cuja vida de fugas e esconderijos é maior que o castigo desejado pelos Javerts que o perseguem de país em país como um terrorista, sem querer ver nele um homem devidamente integrado na sociedade, escritor de sucesso e sem qualquer ameaça para a sociedade.

Mas é importante se destacar que uma extradição de Battisti, sem consumar uma crise institucional, mostrará mais um vez o desfuncionamento ou mau funcionamento do aparelho judiciário brasileiro, suas rachaduras e seu descrédito diante da população.

Ao que parece, Gilmar Mendes quer tornar a decisão do STF definitiva e impedir mesmo que o presidente Lula possa usar do seu poder de clemência e conceder o refúgio. Ou seja, depois de passar por cima de Tarso Genro, o presidente do STF quer ficar acima de Lula e proibí-lo de interferir no caso Battisti. ”

Fonte: http://www.ujccuritiba.info/2009/09/battisti-e-justica-brasileira-por-rui.html

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