25 de setembro de 2009

Woodstock não aconteceu Honduras


Ontem começou o Festival do Rio, a maior mostra internacional de cinema da América Latina. O filme de abertura foi Aconteceu em Woodstock, uma história baseada no livro de Elliot Tiber, um rapaz cujos pais, austeros imigrantes russos, possuíam um hotel em Bethel, vilarejo do interior do estado de Nova York. Artista gay (embora ainda pouco ou quase nada assumido) residente em Nova York, ele investe suas magras economias no decadente hotel da família, tentando salvá-lo da falência. Mais: volta a morar em Bethel, para ajudar os pais a não perderem a propriedade para seus credores.

Quando a situação parecia incontornável, Tiber tem uma idéia. Há dias, vinha lendo nos jornais sobre as dificuldades dos produtores de um festival de rock, cuja realização vinha sendo adiada indefinidamente, porque nenhuma cidade queria abrigá-lo. Tiber possuía uma licença, concedida pela câmara de comércio municipal, da qual ele era o presidente, para realizar um festival de música naquele verão. Sua idéia é ligar para os produtores de Woodstock, e oferecer sua licença para que o maior show de rock da história mundial fosse realizado ali mesmo, na pacata e insignificante Bethel.

Não é, definitivamente, um filme-arte. É um filme assumidamente comercial, no estilo dos outros filmes de Ang Lee, como o Segredo de Brokeback Mountain. É um entretenimento, contudo, delicioso, e muito sensível, com inteligentes doses de humor. Ang Lee adaptou Woodstock à família americana, extraindo-lhe todo o conteúdo transgressor. Essa operação, que a primeira vista pode soar reacionária, tem um valor dialético incomensurável, o que talvez seja uma das funções mais importantes da arte, a de unir extremos e criar pontes entre rincões ideológicos adversários.

A história conta os bastidores da organização do Woodstock, fala dos pepinos, prejuízos, processos judiciais, ameaças de moradores locais insatisfeitos, etc, mas sem enfatizá-los, ou transformar tudo numa tragédia. Os produtores de Woodstock eram jovens otimistas e corajosos, e magnificamente pragmáticos em relação à luta que travavam. Enfrentaram tudo e todos, e realizaram Woodstock. O lançamento desse filme produziu uma exploração midiática bastante saudável sobre o evento de 1969, e lembro que li num artigo que os produtores tomaram um prejuízo enorme com o show, mas ficaram todos milionários, posteriormente, com a venda dos direitos autorais do filme que fizeram.

Daí que pensei em Honduras. Sei que é meio forçação de barra incluir Honduras numa resenha de cinema, mas é isso mesmo. Woodstock foi uma manifestação política. O filme mostra bem isso. Foi um dos protestos mais efetivos contra a guerra no Vietnã. Tanto que vários artistas falaram disso no palco. Cantaram canções anti-guerra. Jimi Hendrix encerrou o evento, que durou três dias, tocando sua versão do hino americano, em que as notas da Star-Spangled Banner imitavam bombas e gritos de dor.

Os americanos lutaram, e ainda lutam, com flores, música, e cinema, para fazer os ideais democráticos prevalecerem no país, contra aqueles que pretendem transformar a democracia num engodo plutocrata, uma competição selvagem que só produz sofrimento, miséria e ditaduras. Sim, porque a direita americana não apenas procurava sufocar as forças libertárias que vinham germinando em seu território, mas também patrocinou golpes de Estado em todo continente. Nós sofremos com isso. A América Central, mais próxima e mais frágil, sofreu ainda mais. Esse golpe em Honduras foi praticado por aquelas mesmas forças contras quais Woodstook se insurgiu.

Mas o que aprendemos desde Woodstook? Pelo jeito não muita coisa. As forças conservadoras, por outro lado, aprenderam muito, e se reformularam formidavelmente, de maneira que, se os anos 60 e 70 se caracterizaram pela eclosão de grandiloquentes movimentos libertários, em todo o mundo, os anos 80 e 90 assistiram a uma reação brutal das forças conservadoras, e o resultado foi o que vimos: uma expansão da miséria e da injustiça num grau jamais visto antes na história da humanidade. Todas as épocas da civilização tiveram sua face cruel, mas não creio que houve momento em que percentual tão grande da população humana sofreu de fome e doenças como vimos nos anos 80, 90, e até hoje.

De maneira que não basta lutarmos com flores e música. A luta precisa acontecer na esfera política. Há que se ganhar eleições, para ser mais preciso. A utopia de se fazer política fora do ambiente institucional revela-se debilitante e ineficaz. O controle democrático do Estado é fundamental. De certa forma, as pessoas aprenderam isso. E votaram em Obama, surpreendendo profundamente o conservadorismo global. Os reacionários tupiniquins até hoje gaguejam e respiram acelerado, trêmulos e ansiosos, com essa mudança simbólica, geopolítica e ideológica profunda que foi a eleição de um negro democrata, com idéias de esquerda, para o comando da Casa Branca.

Precisamos, por isso mesmo, reagir ao que acontece em Honduras com muita perspicácia, porque se trata de mais uma batalha contra as forças do atraso. Não basta esmagarmos esse golpe, mas usá-lo a nosso favor, o máximo possível. É preciso otimizar a vitória. É a única maneira de dignificar e dar um sentido maior ao sofrimento por que passa o povo hondurenho. Já contei que meu tio, Francisco do Rosário Barbosa, foi barbaramente torturado, mutilado e assassinado em 1981, por policiais da 9ª Delegacia do Catete no Rio de Janeiro. Era um jovem poeta, sem ligações partidárias, um cidadão brasileiro inocente, cheio de sonhos e ideais, que foi morto covardemente por brutamontes pagos com nosso dinheiro. Então somos todos culpados. O Brasil é culpado pela ditadura militar, porque se acovardou. O país inteiro se acovardou, porque o povo brasileiro havia sido mantido na ignorância por governos anteriores, e estava debilitado pela pobreza e pela falta de perspectivas, e a ditadura triunfou. Os poucos que se revoltaram foram massacrados.

Mas falei do meu tio porque meu pai (já falecido) contou-me que, após a sua morte, extremamente traumática para a família, ele reuniu a todos e disse o seguinte: "perdemos nosso querido Chico. Nossa obrigação agora é dar sentido a essa tragédia, transformá-la numa batalha contra a ditadura militar." E assim foi. Meu pai foi a todos os jornais e canais de TV. Apareceu no Fantástico. Fez um escarcéu. Publicou um livro. Foi o único caso, na época, em que os policiais foram presos, embora só depois de dois anos de um processo judicial kafkiano. Então, temos que usar o golpe em Honduras como arma para desmascarar a mídia golpista brasileira, e que agora, mais que nunca, merece o epíteto "golpista" que lhe vem sendo pespegado por uma blogosfera cada vez mais barulhenta, lúcida e influente.

Eis que os mesmos setores da mídia que apoiaram e depois legitimaram a ditadura militar no Brasil agora apoiam, uns abertamente, outros de forma mais discreta, o golpe de Estado em Honduras. Antes de Zelaya voltar à Honduras e abrigar-se na embaixada brasileira, a imprensa brasileira havia estabelecido um sinistro pacto de silêncio. Havia dado destaque ao golpe nos primeiros dias, mas depois reinou um estranho e apavorante silêncio sobre Honduras. Agora, é obrigada a falar, e ficou nua. Merval Pereira, em sua coluna de hoje, reproduz, e chancela, um artigo de um jurista de São Paulo (tinha que ser paulista), chamado Lionel Zaclis, publicado no site Consultor Jurídico, no qual afirma que o golpe em Honduras não foi golpe. Jabor, no Jornal da Globo, ou seja, numa TV aberta, uma concessão pública, diz que se tratou de "um golpe democrático", porque teve apoio, entre outros, da Igreja... Faltou citar o Rotary Club...

É desespero? É obsessão? Esses caras estão com problemas mentais? Todas as organizações políticas internacionais condenam veementemente o golpe, nenhum governo do mundo aceita a legitimidade do novo governo, e Merval Pereira brande, como prova de que o golpe não foi golpe, um artigo de um jurista de São Paulo?! E Jabor diz que foi um "golpe democrático"? Quer dizer que agora Chávez é "ditador" e Micheletti é "presidente interino"? Vale falar qualquer coisa?

Então, Senhora PIG, o negócio é o seguinte. Você cometeu um erro crasso. Vai apanhar feio agora, porque, o Brasil "verás que o filho teu não foge à luta". Quer dizer, fugiu na ditadura, mas aprendeu a lição. Não foge mais. Até 2010, até enfiarmos todas as bandeirolas nesse touro furioso, vai rolar muita porrada. Vai ser divertido e a pátria amada não será tão gentil desta vez...

*

Por fim, convido-os a ler também os textos do grande http://altamiroborges.blogspot.com/.

5 comentarios

Sandro Stahl disse...

He he, e o PIG já começa a voltar suas baterias contra o Ciro Gomes. Viu ontem o destaque que ganhou sua declaração de que Serra é mais feio por dentro do que por fora?
E a conotação dramática que ganhou a noticia? Ou vai ver estou vendo demais, mas se não tivesse ele subido nas pesquisas eu não veria nada.Vai ser um refresco pra Dilma.

infinitoamanajé disse...

Sugiro não só o Altamiro como o excelente também VI O MUNDO em http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/chomsky-no-la-jornada/

Sou grato.

José Carlos Lima disse...

Canhestra esta visão de Jabor.
Golpe democrático, ditador democrático...
Deus tá vendo que o Pinocheletti é democrático

Maurício disse...

Só pra esclarecer.....não é "O segredo de Broker Mountain".....mas "O Segredo de Brokedbak Mountain"...que traduzindo significa algo como "O Segredo da Montanha Quebrada atras"....interessante trocadilho pra nomear um filme que tem como objetivo mostrar que também existe homosexualidade entre os cowboys americanos

Miguel do Rosário disse...

Jà corrigi, Maurício. Valeu.

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