27 de fevereiro de 2011

Apertem os cintos, a história está viva!


(O povo árabe derruba seus ditadores)

Retorno à labuta blogueira! Assuntos não faltam. A palavra revolução voltou a figurar em manchetes e a Dona História, esta velha senhora de humor irascível e supreendente, provou mais uma vez que não morre tão fácil!

A luta pela liberdade no mundo árabe emociona os analistas mais cínicos e produziu uma rara e histórica convergência entre ideologias distintas. Conservadores e progressistas se uniram, finalmente, em torno dos mesmos valores democráticos.


Naturalmente cada um procura puxar sardinha para seu lado. A guerra da comunicação prossegue, e é lamentável que a Telesur, tv estatal venezuelana, tenha se desmoralizado através de uma cobertura pró-Kadafi. Enquanto isso, articulista do Globo lembra hoje que Ronald Reagan, o grande, chamou Kadafi de "cachorro doido" em 1986.

Mas há ainda muita desconfiança no ar. Por ocasião da queda de Mubarak, envolvi-me num debate por email com vários colegas que interpretavam os desdobramentos finais da revolução egípcia como um grande engodo patrocinado pelos Estados Unidos. "É um golpe militar bancado pela CIA", respondiam, irritados e lacônicos, enquanto eu me esgoleava tentando fazer-lhes ver que, àquela altura do campeonato, a Casa Branca comprava a peso de ouro qualquer coisa que se movimentasse a favor do vento, tentando desesperadamente manter-se influente.

Há também bastante amargura, confundida muitas vezes com rebeldia, mas que bloqueia a visão, impedindo a pessoa de chamar belo o que é bonito. Nenhuma revolução é pura. Simon Bolívar libertou a nossa América Latina, e nunca escondeu que o fez com ajuda do novo imperialismo inglês. Os marxistas cansaram-se de apontar os fatores econômicos, muitas vezes mesquinhos, que levaram à eclosão da revolução francesa.

A beleza de uma revolução não está na virgindade de seus protagonistas, ou na maneira pela qual ela é conduzida. Muito pelo contrário. Revoluções trazem caos econômico, mobilizam aproveitadores e despertam novas formas de poder, às vezes tão ou mais malignas que aquelas que destruiu.

Existe um fator, todavia, que galvaniza toda luta pela liberdade: é a única experiência concreta que leva o indivíduo e a sociedade a adqurirem consciênca do valor da independência individual e nacional.

Semana passada, entrei na vasta biblioteca do Centro George Pompidous, em Paris, meditando em que eu poderia ler para entender o que acontecia no norte da África. A história do Magreb? Uma revista especializada? Algum jornal independente do Egito? E nem precisava estar naquele templo: a quantidade de informação disponível na internet atingiu um patamar quase assustador.

Parece-me, contudo, que chegamos a um momento da história em que não basta nos informarmos. Nem creio que isso advenha simplesmente do crescimento quantitativo de material jornalístico no mundo, hiper-amplificado pela popularização da internet. No tempo da revolução francesa, dificilmente alguém entenderia os acontecimentos apenas lendo os jornais. É preciso olhar um pouco mais fundo.

"Savoir, penser, rever, tout est là!", escrevia um romântico Victor Hugo, na primeira metade do século XIX, num artigo que, no entanto, defende o desprendimento do artista em relação a qualquer engajamento partidário. O texto introduz um poema que expressa os dilemas do poeta diante das rebeliões políticas de seu tempo. Esse distanciar-se das escaramuças entre os partidos, para Victor Hugo, significava a liberdade para intervir de maneira mais efetiva e grandiosa, já que Hugo via o poeta como uma espécie de filósofo político, e ainda mais livre que este último, por não estar presos aos grilhões lógicos da filosofia. O poeta busca o saber, o poeta pensa, mas o poeta também - e sobretudo - sonha! A interpretação de Hugo, hoje demodé, cumpriu seu papel à época: fazendo Rimbaud viajar sem dinheiro do interior da França à Paris, para participar das barricadas de 1871 e Castro Alves erguer a voz no Teatro Municipal do Rio em defesa dos negros brasileiros.

Essa dimensão do sonho porventura é subestimada por cérebros mais frios e racionais, embora esteja tão claro que nenhuma mudança política acontece sem antes incendiar os sonhos do homem. Os marxistas, em seu afã para transformar os sonhos de liberdade da espécie humana numa pílula antidepressiva, vendida apenas nos escritórios do partido, perderam participação no mercado dos ideais.

Nas democracias, os marketeiros tentam ser mais espertos que os marxistas, e douram a pílula ao máximo. Não foi a tôa que Serra pagou um milhão para o guru indiano, um especialista em despertar a fantasia das pessoas; neste caso seja uma fantasia adolescente idiota e despolitizada.

Então eu decidi passear entre as estantes de filosofia e catei um texto de Heidegger sobre a liberdade. Dei sorte. Até anotei um trecho. Vejam se não se encaixa maravilhosamente no que está acontecendo por aquelas bandas?

Com efeito, em toda parte onde nasce um saber sobre a liberdade, a liberdade é antes de tudo entendida no sentido negativo, como independência em relação à... E esta imposição da liberdade negativa e talvez do negativo em geral, pressupõe que o ser-livre é vivenciado como um tornar-se livre de uma opressão. É necessário que o desprendimento, a rejeição às cadeias, a repulsão às forças ameaçadoras, seja uma experiência fundamental do homem, pela qual a liberdade, no sentido negativo, advém à claridade do saber. O conceito positivo de liberdade, por sua vez, significa: autonomia da vontade e auto-legislação.

A revolta árabe suscita ainda muitas questões caras à Ciência Política, a qual se torna enfadonha e anacrônica quando não se atualiza constantemente à luz dos acontecimentos reais. Há uma tese, por exemplo - e esse é o tipo de conhecimento que podemos adquirir no Brasil lendo os livros do Wanderley Guilherme dos Santos - que vende a hipótese (muito plausível, a meu ver) de que a maneira como o homem se organiza politicamente está escrita em seu DNA. Como as formigas, os leões e os jacarés, o homem porta dentro de si uma experiência de milhões de anos de vida na Terra. Claro que não vem indicado se tendemos ao voto distrital ou proporcional, se é melhor adotarmos parlamentarismo ou presidencialismo. Alguns cientistas políticos, no entanto, enquanto bebericam uísque ao fim de um dia dedicado a complicados estudos, sonham que o homem carrega, em seu próprio gene, algo que o condiciona, um momento ou outro, a lutar por sua liberdade. E que a democracia, enquanto forma de organização política e social, é apenas uma consequência natural de forças biológicas presentes na composição genética e nas profundezas do subconsciente humano.

Há uma famosa citação do Walter Benjamim, a tal sobre o Anjo da História, que olha o passado e só vê destruição. Entendo que Benjamin, traumatizado pelos horrores do nazismo, tenha optado por uma imagem assim, que se tornou tão a gosto da melancolia intelectual que domina as academias. Mas falta um Mefistófeles nesse Fausto. A história do homem é também a história da luta pela liberdade, e nesse sentido, mesmo os acontecimentos mais sinistros deram sua contribuição para a formação de uma consciência democrática e livre. É uma luta interminável, claro, visto que grande parte da humanidade ainda vive em condições de opressão política ou econômica. Mas, como observa Heidegger, a experiência da tirania e da luta contra ela é fundamental para que os povos assimilem o que significa a liberdade - e sua ausência.

6 comentarios

Anonymous disse...

Obrigado pela contribuição ao debate.

Anônimo disse...

Miguel, no segundo parágrafo voce afirma que houve convergência de ideologistas distintas e que conservadores e progressistas se uniram em torno de valores democráticos.Parece que não é bem assim. No caso da Líbia, por exemplo, Fidel, Chávez, Daniel Ortega e Evo Morales estão denunciando a intervenção da Otan e defendendo o direito da Líbia de lutar por sua independência contra a oposição que levanta a bandeira do tempo do Rei Idris.Do outro lado estão Obama e os imperialistas, que além da intervenção sanguinária no Iraque e no Afeganistão, acumulando já uma montanha de cadáveres, preparam uma intervenção militar na Líbia, cujo objetivo fundamental é privatizar e desnacionalizar o petróleo estatizado por Kadafi, com o que se permitiu levar a Líbia a ter o melhor IDH da África, um dos mais elevados salários mínimos do terceiro mundo e serviços de saúde e educação públicos e gratuitos para seu povo. Onde está a convergência de conservadores(Obama, Cameron, Merkel, Sarkozy) e progressistas (Fidel, Chávez, Ortega e Morales)?

No parágrafo seguinte voce afirma que a Telesur se desmoraliza com uma cobertura pró-Kadafi. Pode demonstrar com fatos concretos? O que o leva a afirmar tal coisa? Ter lido a Eliane Cantanhede na Folha que afirmou isto e voce lhe deu crédito? Telesur está lá para mostrar jornalísticamente que há manifestações contra e a favor de Kadafi, que não existe a unanimidade que a grande mídia oligopolista mundial está apregoando, que lutas e escaramuças tribais e de vários tipos, mas que existe a imposição de sanções de modo unilateral e ilegal por parte dos EUA, e que não tem havido manifestações de massas como ocorreram no Egito, mas ações armadas contra alvos militares que certamente são respondidas do mesmo modo, como ocorre em qualquer país em que instalações militares são atacadas.

Tomo a liberdade de lhe enviar artigo de minha autoria em resposta ao artigo da Folha tentando desprestigiar a Telesur e solitico que seja publicado em seu blog para que os seus leitores possam ter acesso ao contráditório e ao controverso deste tema.
Atenciosamente, Beto Almeida

Miguel do Rosário disse...

Mande o artigo, Beto. Sobre a Telesur, minha fonte foi o Rovai. (http://www.revistaforum.com.br/blog/2011/02/26/hezbollah-tem-muito-mais-juizo-do-que-chavez/)

Também os jornais, que procuro ler criticamente.

Kadafi, assim como Saddam no Iraque e Nasser no Egito, participaram da leva de revoluções nacionalistas da década de 50 e 60, mas a maioria delas perdeu todo seu elã primitivo. O próprio Kadafi hoje era um aliado americano. A revolta na Lìbia vem do mundo árabe, de aspirações legítimas dos cidadãos de se autogovernarem. Os manifestantes mostraram a bandeira da monarquia para se diferenciarem e protestaram contra o governo, mas não necessariamente por defenderem a monarquia e evidentemente não para defender multinacionais. Os EUA estão de olho no petróleo, é claro, mas isso não deslegitima o movimento.

Quanto ao IDH e serviços públicos, temos uma população pequena, de 6 milhões de habitantes, e um país riquíssimo em petróleo.

Os relatos de tortura na Libia são impressionantes.

E sobretudo, a reação de Kadafi, de mandar bombardear seu próprio povo, as defecções em massa de seus principais funcionários, sempre por indignação contra o massacre, tudo isso comprova que estamos falando de um déspota ensandecido.

As manifestações pró-Kadafi são pequenas, e naturalmente não tem comparação com a bravura dos milhares que enfrentam a repressão para protestarem.

Não estamos falando de um país atacado pelos EUA e sim sacudido pelas impressionantes revoltas pacíficas que tomaram conta de todo mundo árabe.

Anônimo disse...

Miguel, já lhe mandei o artigo, Voce recebeu? Esta estória de dizer que Kadafi mandou bombardear seu povo é como a estória das armas de destruição em massa nas mãos de Sadam, falsificação grosseira dos fatos, depois laragemente desmentida até pelo New York Times, que pediu desculpas aos seus leitores em editorial. O governo desmentiu: foi bombardeado um depósito de armas para que não caísse nas mãos da oposição que está armada. Não há manifestações pacíficas. Onde o Rovai viu isto? Ações armadas, em qualquer parte do mundo, são respondidas com ações armadas. A Líbia não foi diversas vezes bombardeada pelos EUA????? Não foi agredita várias vezes em guerras comerciais??? Não sofreu vetos e sanções ilegais e imperiais???? Quais são as fontes? As ongs pagas pelo império? a CNN e a Fox News???

Miguel do Rosário disse...

Situação totalmente diferente do Iraque de Saddam, porque agora é o próprio povo líbio que protesta. Kadafi acaba de ser condenado unanimanente pelo conselho de segurança da ONU e será julgado pelo tribunal internacional. Com apoio do Brasil. Intelectuais árabes do mundo inteiro condenam Kadafi. Leia as matérias. Não fique tão preso ao ódio contra a mídia a ponto de esnobar o trabalho arriscado e importante dos repórteres de campo.

Anônimo disse...

Rosário, reitero solicitação para que voce indique fatos concretos, uma matéria, uma reportagem, uma análise, pela qual a Telesur teria se desmoralizado. O que voce pode apontar objetivamente? Reitero também solicitação para voce publicar artigo em que respondo os ataques da Folha de São Paulo Ditabranda contra a Telesur. Beto

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