12 de julho de 2011

Raphael Correa, super-heroi solitário?

(O eixo do mal sul-americano)

Thomas Jefferson, um dos "pais" da democracia norte-americana, não era um grande amante da imprensa de seu país; caso contrário, não teria jamais dito: "não leio sequer um jornal por mês, e sinto-me infinitamente mais feliz com isso".

Nesse livrinho de citações que peguei na estante, tem outras frases deliciosas e dolorosamente verdadeiras sobre jornalismo:

"Primeiro obtenha os fatos, depois pode distorcê-los à vontade", Mark Twain.

"Os jornalistas dizem uma coisa que sabem não ser verdadeira, na esperança de que, se a disserem durante bastante tempo, ela acabará sendo", Arnold Bennett.

"Nos Estados Unidos, o presidente reina quatro anos e a imprensa governa eternamente", Oscar Wilde.

Entretanto, a que me pareceu mais sensata e definitiva vem de Voltaire: "Quando ouvimos uma notícia, sempre devemos aguardar o sacramento da confirmação".

Tudo isso é uma introdução para comentar esta matéria publicada no Globo de hoje. Trata-se de um comentário editorial (embora sem se mostrar como tal; é publicada como se fosse um biografia jornalística isenta) à notícia de que o presidente do Equador, Raphael Correa, decidiu manter o processo contra o jornalista Emilio Palacios e os donos do jornal "El Universo", por crime de calúnia, mesmo após Palacios renunciar ao cargo de editor de opinião.

Publico um trecho da matéria, porque gostaria de comentá-la:

Rafael Correa, presidente do Equador, é um fenômeno político. Com apenas 600 dias de carreira pública, no Ministério da Economia, candidatou-se e se elegeu presidente, em 2006. Com 100 dias no poder, reescreveu a Constituição. Antes de completar dois anos de mandato já controlava o Poder Legislativo. Nesta semana, completa um processo iniciado há 18 meses para obter, também, a submissão do Poder Judiciário: uma comissão designada e subordinada ao Executivo vai indicar novos juízes, entre os quais um grupo que poderá interpretar a Constituição equatoriana a favor de seu interesse em um terceiro mandato, em 2014.

É muito interessante como, em poucas palavras, o editorialista resumiu todo o preconceito da mídia corporativa contra as próprias instituições democráticas que ela, ironicamente, finge defender.

Repare só. Todas as frases respingam preconceito. Raphael Correa não é nenhum fenômeno político, é somente mais um presidente eleito, numa eleição realizada com toda lisura, monitorada por diversos observadores internacionais. O que tem a ver o fato de possuir "apenas 600 dias de carreira pública, no ministério da Economia"? Aliás, desde quando se usa "apenas" para 600 dias? 600 dias, que eu saiba, são quase dois anos! E Ministro da Economia, ainda por cima! O "apenas" somente teria sentido se Correia tivesse sido ascensorista do governo por apenas 20 dias...

Aliás, aqui no Brasil também tivemos um político que se elegeu presidente da república após "apenas 600 dias de carreira pública, no ministério da Economia". O nome dele é Fernando Henrique Cardoso...

A matéria informa, com uma singeleza tocante, que ele "candidatou-se e se elegeu presidente". Ora, realmente isso é apenas um detalhe! Tudo bem, vamos em frente.

"Com 100 dias no poder, reescreveu a Constituição", continua o texto. Uau! Aí começa a carreira do nosso super-herói! Quem lê a matéria imagina um Correa olímpico, vestindo roupas coloridas e contemplando o céu com olhar triunfante. Ele escreveu sozinho a Constituição? Não teve ajuda de congressistas, juristas, intelectuais?

A seguir, a matéria nos informa que "antes de completar dois anos de mandato já controlava o Poder Legislativo". Essa afirmação merece um brinde. Correa, imitando um das aqueles tiranos italianos pré-renascentistas, deve ter mandado degolar algumas centenas de adversários, torturado outros milhares, cancelado a ficha eleitoral de um ou dois milhões de eleitores, enfim, fez de tudo para "controlar" o Poder Legislativo, cujos membros ele provavelmente nomeou através de um decreto, porque as eleições legislativas foram canceladas no Equador.

Ora, é tudo um grande disparate!

O controle de Correa sobre o Legislativo nada mais é do que o resultado legitimamente democrático das urnas! Ser autoritário é um qualificativo que a mídia conservadora aplica a estadistas de esquerda; quando o cara é da direita, é "pulso firme" ou coisa parecida; Margaret Tatcher era "dama de ferro", apelido que sempre soou como um elogio. Fosse de esquerda, Tatcher seria chamada de "caudilha"...

O texto diz que o Executivo irá "obter, também, a submissão do Poder Judiciário", porque uma comissão subordinada ao Executivo vai indicar novos juízes... Ora, o governo brasileiro também não indica os juízes do Supremo Tribunal Federal? Isso signifca submissão? Sim, talvez signifique submissão... mas não ao Executivo, e sim ao poder que emana do povo, através do sufrágio universal.

O Globo denuncia, então, a movimentação de Correa para criar instituições que regulem a mídia de seu país e de outros países sul-americanos, que também experimentam graves problemas políticos em consequência da ausência de leis que civilizem o comportamento dos grupos midiáticos. Todos os países desenvolvidos tem instituições que regulam a mídia. Na Inglaterra, Rupert Murdoch foi obrigado a fechar um jornal centenário por exigências do órgão controlador da mídia, e corre o risco de não concluir um negócio bilionário (a compra de uma rede de transmissão de sinal de tv via satélite, a BSkyB). O Partido Trabalhista inglês deu entrada num processo político para impedir a operação.

É muito positivo que alguns presidentes da região estejam conscientes do papel nocivo que a falta de uma regulamentação adequada na mídia impõe ao jogo político. Eu não sou nenhum obcecado por uma "ley dos medios" no Brasil. Para mim, os governos populares deveriam, em primeiro lugar, ter consciência da importância da guerra de comunicação, e usar (dentro dos limites da democracia) o poder que a sociedade lhes conferiu para participar dessa guerra com mais desenvoltura. Criar blogs de qualidade, contratar gente, financiar estudos, mudar a educação. De nada adiantará Ley dos Medios se a classe política amarelar na guerra contra o Leviatã midiático. É uma luta entre o poder do povo e o poder do dinheiro.

Afinal, não é de hoje que a imprensa representa um poder político importante. Volto ao livrinho de citações.

"Três jornais me fazem mais medo que cem mil baionetas", Napoleão.

Entretanto, diferentemente do tempo de Napoleão, hoje temos regimes políticos democráticos que não podem mais continuar reféns de um poder que não é conferido pelo povo. Se há problemas de corrupção que só a imprensa denuncia, o que temos de fazer não é exatamente fortalecer a imprensa e sim aprimorar as instituições de combate à corrupção, conferindo-lhes mais independência do Executivo e do Legislativo e tornando-as mais democráticas, transparentes e prestigiadas.

Não se trata de amordaçar a imprensa; ao contrário, mas de ampliar a sua liberdade através de práticas e leis que coibam os crimes jornalísticos. Com isso, talvez tenhamos, algum dia, um jornalismo menos voltado para a cultura do escândalo, da calúnia e dos joguinhos partidários, e mais focado em publicar análises e informações de qualidade, em todos os campos do conhecimento, e ser um dos filtros através dos quais a sociedade consome a sua vasta produção cultural.

4 comentarios

Felipe Andrade disse...

Exatamente Miguel, os grandes conglomerados querem que as sociedades os tratem como genuínos poderes, tão sagrados quanto aqueles que emanam do povo.

Anônimo disse...

Texto irretocável!!
Vc escreve bem rapaz,da gosto ler.

P. P. P. disse...

A propaganda jamais apela à razão, mas sempre à emoção e ao instinto


Pode ser bom possuir o poder baseado na força, mas é melhor ganhar e segurar o coração das Pessoas!



De tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade.

Adriano Matos disse...

Concordo plenamente Miguel. Aparte a importância e a relevância que tem a profissão do jornalismo, o que se vê é a total deturpação do ideal.

Como exemplo, vc viu esse posto do Eduardo Guimarães? Me deixou indignado:

http://www.blogcidadania.com.br/2011/07/respuesta-al-corresponsal-de-el-pais-en-brasil/

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