22 de julho de 2009

Barbosinha, o santo e o Red Label

Meu pai, típico mineiro da roça, caladão, esquivo, desconfiado, possuía um carisma extraordinário. As pessoas não apenas simpatizavam com ele: amavam-no perdidamente. Em casa, porém, em virtude de sua timidez intransponível, conversar com ele era, às vezes, angustiante, porque respondia por monossílabos e ficava sempre em pé, no umbral de alguma porta, para poder escapar mais rápido. Notava-se que sofria com isso, e qualquer um que o conhecesse melhor logo o perdoava, diante de um quadro tão grave de introversão, por beber tanto.

Apesar de todos os problemas de timidez, era uma pessoa incrivelmente forte. Nunca ficou doente, à exceção da operação de safena aos 55, e do câncer final, que o matou aos 61 anos. Enervava-se constantemente, isso sim, e às vezes por bobagens, e alegrava-se com facilidade, mas jamais testemunhei, em vinte e poucos anos de convivência, nenhuma demonstração ou confissão de tristeza. E trabalhava duro, incansavelmente. Começou a trabalhar com uns quatro ou cinco anos de idade. Meu avô amarrou-o num cavalo para que não caísse, e ele acompanhou os piões da fazenda a tocar o gado. Na volta, teve que se sentar numa bacia com água morna e sal para aliviar as assaduras terríveis naquela parte do corpo que atrita com a sela.

Dormia como rocha. Deitava-se em qualquer lugar, cama, gramado, chão, e apagava por horas. Diversas vezes, no sítio, flagrei-o dormindo no meio do mato, como um bicho, indiferente aos insetos - que pareciam respeitá-lo -, à gritaria das crianças, a tudo. Adormecia assim que fechava os olhos.

Era o indivíduo mais resolutamente ateu que jamais conheci. Recusou-se terminantemente a batizar os filhos, mesmo sabendo da enorme apreensão e aborrecimento que isso causava à minha avó. Quando eu tinha uns nove ou dez anos, toda a minha turma da terceira série primária, no colégio católico onde eu estudava, fez primeira comunhão. Eu queria muito fazer. Andava com o Novo Testamento embaixo do braço para lá e para cá e implorei a ele que me deixasse acompanhar meus coleguinhas. "Não, você é muito pequeno. Quando crescer e tiver mais juízo, pode se batizar, fazer primeira comunhão, o que quiser, mas agora não", me disse. Não muitos anos depois, eu ostentaria, com orgulho, o título de não-batizado, o qual carreguei até uns cinco anos atrás, quando decidi tomar o banhinho sagrado, para satisfazer minha mulher, que quis casar-se na igreja. E também a mim mesmo, já que, no fundo, meu ateísmo nunca foi tão autêntico quanto do meu pai. Ao contrário, sofro de uma tendência à carolice católica contra a qual sempre lutei, primeiro por ideologia, depois por uma questão de elegância - um conflito que nos últimos tempos resolvi através de uma maneira esquizofrênica: sou um ateu que acredita em Cristo (não nas lendas mágicas, mas na força e importância de seu mito) e em Deus (como centro do universo e inteligência superior).

O ateísmo de meu pai patenteava-se, sobretudo, pela mais absoluta indiferença a qualquer tema religioso ou teológico. Só não é exato afirmar que odiava o catolicismo, à maneira do Eça de Queiroz, porque ele simplesmente deixara de pensar no assunto. Mas alguma raiva tinha. Quando criança e adolescente, deixava a unha crescer para cravá-la na própria mão até sangrar, como auto-punição pelos pequenos pecados que cometia.

Era uma pessoa extremamente generosa. Primogênito, ajudou todos os irmãos, moral e financeiramente, a completarem os estudos. Ajudou muitos amigos. E ajudava pragmaticamente, conseguindo emprego e emprestando dinheiro. Em verdade, meu pai era quase um santo, se é que é possível aliar santidade e Red Label.

5 comentarios

Anônimo disse...

Eu gostei deste artigo sim. E muito.

só não sabia que tinha caixa de comentários no Óleo do Diabo. O Feed eu já tenho assinado há tempos...

Eli Araujo disse...

Salve seu Rosario.

Permita-me deixar aqui uma lembrança de meu pai, o velho Francisco, um sábio chinês baiano. Foi por ele que aprendi quando um homem torna-se um homem. E isso se deu no dia em que compreendi que ele era um ser humano tambem sujeito a falhas, mas um pai com um coração de mãe. A benção meu pai.

carlos disse...

salve, do rosário,

quase cometi um sacrilégio. li primeiro o post da une e me esqueci desse aqui.

caramba, que texto, meu camarada. é óbvio que seus leitores revolveram suas lembranças paternas.
porreta!

abçs

isabel almeida disse...

Miguel gosto muitíssimo dos teus textos, não apenas por serem bastante substanciais, isto é, fundamentados, mas também por serem intensos e fortes. Além é claro, de seres diversificados.
Abraços

Unknown disse...

SIMPLESMENTE PARABÉNS...

Postar um comentário