25 de novembro de 2008

Labaredas da liberdade

(Bispo do Rosário)


Por Miguel do Rosário

Como dizia Cazuza: senhoras e senhores, trago boas novas, eu vi a cara da morte e ela estava viva. No meu caso, porém, não foi a morte. Foi o mundo. Quer dizer, no caso de Tereza Cruvinel, presidente da TV Brasil. O mundo está vivo, afirmou a valorosa guerreira, recrutada por Lula para defender a tv pública nacional, em entrevista gentilmente concedida, ao vivo e a cores, ao escritor Miguel do Rosário. A América Latina vive um momento muito bom, com seus governantes adotando políticas para superar injustiças sociais históricas, observou Cruvinel, e Jorge Mautner, também presente, completou: A eleição de Obama é a eleição de um brasileiro - o Brasil está no poder.

Não uso aspas porque estou citando tudo de memória. Tentei anotar mas, sobretudo no caso de Mautner, não dá. Agora vou imitar o Juruna, e andar sempre com gravador no bolso. Mautner, divertido e brilhante orador, disse mil coisas geniais, e numa delas, referindo-se às mudanças que uma tv pública forte e autêntica pode trazer à cultura brasileira, usou a expressão "labareda da liberdade", título desse artigo.

Onde anda minha Tereza? Há pouco mais de um ano, Cruvinel assinava a principal coluna política do jornal O Globo, e foi mais um daqueles (ou daquelas) que não resistiram à pressão chauvinista, vinda dos últimos andares das empresas de comunicação, para alinhar-se aos patrões na virulenta briga política e partidária contra o governo Lula.

O problema do jornalista que trabalha para a grande imprensa é que ele não trabalha para uma empresa só. Ele presta serviço para um conglomerado de empresas que partilham a mesma ideologia. Comprar uma divergência política com o Globo, portanto, é assinar um atestado de óbito na imprensa corporativa escrita. Os canais de tv aberta, por viverem uma concorrência muita agressiva com a Globo, ainda abrem espaço para jornalistas rompidos com a família Marinho. Desde que eles se comportem direitinho, obviamente.

Eu lembro da coluna da Tereza no Globo. Percebia-lhe, nas entrelinhas, a angústia de se ver envolvida numa maquiavélica trama azul e amarela para derrubar Lula. Cruvinel não defendia o governo Lula em suas colunas. Ao contrário, atacava-o de vez em quando. Mas o fazia com uma sensatez e uma civilidade que, nitidamente, não satisfaziam a sede de sangue de um Ali Kamel, de um Reinaldo Azevedo, de um Civita, de um Mainardi. Tanto que foi vilmente agredida pelo blogueiro da Veja, em artigo racista em que usava jocosamente o termo "cabrôca" para se referir à Cruvinel, que é de fato uma bela e atraente morena, uma autêntica mulher brasileira. Azevedo tem um enorme talento para humilhar pessoas, usa-o constantemente, e é pago regiamente para fazê-lo. Eu a conheci virtualmente, a Tereza, nesta época. Escrevi um artigo defendendo-a, ela me agradeceu por email, e trocamos algumas mensagens.

Nada como um dia após o outro. Enquanto Reinaldo Azevedo é hoje um blogueiro de extrema-direita desprezado por 99% da opinião pública, inclusive por jornalistas conservadores, como Luis Nassif, e Mainardi foi desmascarado como lobbista de Daniel Dantas e já tem um pé na cadeia, a história, essa adolescente incorrigível, elegeu um negro socialista para comandante supremo dos Estados Unidos, a "cabrôca" preside o que será, em breve, a maior tv pública das Américas, e Lula foi reeleito em 2006, com uma vitória esmagadora, contando hoje com mais de 80% de aprovação popular!

E eu ali. E o Jorge Mautner, que também participava da entrevista. Mautner, como todo coerente intelectual de esquerda, é um fanático defensor da tv pública. É essencial, é uma necessidade absoluta, disse o escritor-músico-intelectual.

Cruvinel mostrou-se visivelmente aborrecida com matéria publicada ontem no caderno Ilustrada da Folha de São Paulo. Meus leitores, que são macacos-velhos em imprensa golpista, já podem imaginar o teor da matéria. O título é algo assim: TV de Lula não engrena, e traz informações totalmente distorcidas sobre audiência. Cruvinel explicou que a matéria trazia informações sobre audiência apenas no município do Rio de Janeiro, e que existem graves falhas nas metodologias de produção estatística de audiência no Brasil, até por causa das ultra-novas tecnologias de difusão e captação de imagens. Ela explicou que existem mais de 50 milhões de brasileiros que assistem tv, inclusive a TV Brasil, via antena parabólica, e que esses dados não constam das convencionais grades de audiência. A TV Brasil, além disso, por lei, consta obrigatoriamente nas tvs por assinatura - apesar de algumas não cumprirem a norma. Esses dados também não constam dos números usados pela Folha para desprestigiar a TV Brasil.

O jornalista da Folha, naturalmente (pela Folha ser o que é), não procura compreender as dificuldades inerentes a uma TV recém-criada. Cruvinel explicou que a TV Brasil, criada por medida provisória há um ano, só foi oficialmente implantada em março, após complicadíssimas votações no Congresso e, sobretudo, no Senado, onde a oposição partidária, com apoio histérico da mídia corporativa (Globo à frente), tentou de tudo para impedir a sua existência. A incorporação da Radiobrás ocorreu somente em junho e só a partir daí a TV Brasil contaria com verba própria.

Por fim, houve dificuldades enormes para entrar em São Paulo. Claro. Dá até vontade de rir. Misteriosamente, o estado mais industrializado, informatizado, moderno, do país, está sendo o último a receber a programação da TV Brasil. Mas, enfim, a TV Brasil está entrando em São Paulo a partir das próximas semanas.

Cruvinel explicou, em suma, que somente agora a TV Brasil superou os primeiros obstáculos técnicos, jurídicos, políticos, financeiros, e pode se dedicar ao que seria a sua missão primordial: produzir e distribuir programas culturais inteligentes, autênticos e originais. É o que está fazendo. Nas próximas semanas, estréiam programas de grande qualidade, dirigidos por alguns dos intelectuais e artistas mais importantes do país: Marçal Aquino, na literatura; Marcelo Gomes, no cinema; Felipe Ehrenberg nas artes visuais; e o grande Jorge Mautner, na cultura em geral.

Perguntei ao Mautner se ele achava que a eleição de Obama pode trazer mudanças positivas para o Brasil e significar mudanças geopolíticas. Claro, ele disse, e mudanças que irão colocar o Brasil na liderança do mundo. A vitória de Obama é uma vitória nossa. Mautner lembrou que Obama disse, na primeira entrevista a um repórter tupi: "eu sou brasileiro". Ele é um vira-lata, um autêntico "moreno", que reúne criatividade, coragem e prudência, como todo brasileiro que se preza.

Essa mudança geopolítica - a eleição de um negro de esquerda nos EUA - provocará mudança ideológica no status do Estado, e isso naturalmente beneficiará órgãos estatais, como a TV Brasil, que terão mais prestígio.

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Notícia recente publicada em todos os jornais informa que Obama contratou, como assessores próximos, intelectuais de um conhecido "think tank" esquerdista, e que já sinalizou que adotará as idéias e projetos desse instituto. Queria ver a cara de Olavo Carvalho, nosso não tão querido filósofo nazista, ao ler essa bomba. Ele saiu do Brasil, fugindo do Lula, e refugiou-se em Washington, crente que lá estaria protegido dos malditos esquerdistas, e eis que os malditos tomam a Casa Branca! Olavão, eu já disse alhures, deveria urgentemente buscar abrigo na Polônia, presidida por dois gêmeos retardados, psicopatas e conservadores.

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Cruvinel explicou que a tv pública implantará no Brasil um sistema de multicanais, que possibilitará a criação de tvs legislativas para cada câmara de vereadores de cada município brasileiro. Será analogicamente mesmo, num primeiro momento, distribuído pelas vias tradicionais.

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A TV Brasil, nos últimos meses, fez grandes investimentos para re-estruturar e melhorar a qualidade das imagens transmitidas. Construiu torres novas nas grandes cidades e estabeleceu dezenas de parcerias com retransmissoras de todo país, públicas e privadas.

Em 2008, a verba da TV Brasil foi de R$ 350 milhões. Cruvinel explicou que os recursos são gastos de três maneiras: pessoal, custeio e investimento. A parte de pessoal e custeio já foi inteiramente gasta. Eles reservaram R$ 100 milhões para os investimentos no conteúdo. Em 2009, a verba destacada é novamente de R$ 350 milhões.

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Algumas idéias anarquistas que o papo com Mautner me inspirou:

1) Proibição de bancos privados. Deveria existir somente o Banco do Brasil. O BB rouba a gente mas pelo menos o dinheiro é usado para saúde e educação. Para onde vai o dinheiro do Itaú? Do Bradesco? Para conta de playboys otários. Banco privado faz mal ao próprio capitalismo, porque rouba dinheiro da maioria dos empresários, agricultores, assalariados, artistas. A pessoa, se quisesse, poderia abrir conta num banco estrangeiro. Mas a União deveria decretar o monopólio estatal do sistema financeiro no país, e proibir o lucro do banco oficial. O Banco do Brasil, por lei, não poderia cobrar nada de seus clientes. O banco já obtém lucro suficiente apenas movimentando o dinheiro guardado. Não precisa cobrar juros. Ainda mais um banco oficial. A China faz isso e é por isso que a China cresce 15% ao ano. E isso não é comunismo. Ao contrário. Os bancos privados são os maiores adversários do capitalismo, porque eles drenam o dinheiro para si mesmos, dificultando a circulação do capital pelas atividades econômicas. Não sei se Marx percebeu ou disse isso. Eu digo. Bancos privados são como senhores feudais do capital. Eles travam a circulação do dinheiro. Os únicos bancos do mundo deveriam ser os próprios governos, pois são os únicos entes que podem ser fiscalizados pela população. A civilização humana não pode depender de instituições cujo funcionamento e hierarquia não são democráticos. O desespero levou governos do primeiro mundo a entenderem isto. Qual foi a única solução que os governos encontraram para resolver a crise mundial? Eles compraram os bancos. Minha opinião é que os governos deveriam comprá-los todos, os bancos, pra sempre. Não faz sentido o Estado ter gasto trilhões de dólares comprando os bancos e depois se desfazer deles, criando o risco de outra quebradeira no futuro.

2) Construção de estradas que permitam o tráfego humano a pé e de bicicleta, restrição do uso de carros privados nas grandes cidades, e investimentos maciços na construção de ciclovias e calçadas decentes para as pessoas poderem caminhar melhor por toda parte.

3) Construção de duas grandes linhas férreas no Brasil, norte X sul, leste X oeste, para transporte de pessoas e mercadorias. Um trem de alta velocidade hoje é mais veloz que avião, e pode inclusive ser subterrâneo, de maneira que poderíamos ligar o norte ao sul do pais em poucas horas, criando novos fluxos de comércio que possibilitariam a geração de muita riqueza e cultura. É um investimento de trilhões de reais, e que demandaria uns cinco ou dez anos para ficar pronto, mas valeria a pena. Esse projeto poderia ser pago com o dinheiro do pré-sal.

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10 comentarios

Anônimo disse...

aguardo a tv brasil em sp.

marcio d.

Anônimo disse...

Bom dia! Senhor Miguel do Rosário, parabéns pelo valoroso artigo.

Anônimo disse...

Belíssimo e impecável artigo, Miguel. Seu olhar atento e lúcido sobre as tentativas da TV Brasil de ajudar a construir um país melhor, deveria ser o mesmo de muitos jornalistas. Falta-lhes, porém, coragem para denunciar os obstáculos que a emissora enfrenta. Preferem a omissão e a conivência, em troca da certeza do depósito das 30 moedas, todo o fim de mês, na conta bancária. Aproveito, apenas, para fazer uma ressalva: o orçamento de R$ 350 milhões se refere à EBC (TV + rádios + agência Brasil + NBr), como um todo, e não apenas à TV Brasil. Saudações fraternais.

Anônimo disse...

Excelente artigo. Moro no interior do Paraná e assisto a TV Brasil pela parabólica. A programação é muito boa e melhorará com os novos programas.

Anônimo disse...

Tv Brasil? Programação de qualidade? Sabe quando vamos reverter os "idiotizados", que são a maioria do povo brasileiro? Nunca! Os que já foram engolidos pela Globo & cia. não tem mais jeito. Se disser a longo prazo, eu acredito. Agora, televisão, por melhor que seja a qualidade, não substitui um teatro, um cinema, um sarau, uma festa popular, um curso... até chegar a algum resultado, que são as gerações vindouras, estas estarão de velhos conectados à rede. TV Brasil é dinheiro jogado fora. Por que não manda banda larga pro povo, fomenta cinema e cultura em cada cidade, agentes de promoção e produção de cultura, alí, no téte-a-téte? Dinheiro do pré-sal é um pouco sedo, até porque ninguém sabe em que mãos vai parar isso, se o Lula afrouxou nessa crise com o Dantas Mendes, que dirá com todo aquele ouro negro.

Clarabóia disse...

A Folha comentar a TV Brasil é a mesma coisa que um flamenguista analisar um jogo do Vasco. Quanto aos bancos, assino embaixo e penso seriamente em abrir uma conta no "debaixo do colchão s.a.". E o Olavão deveria morar na Albânia. O antigo paraíso do PCdoB, é hoje o país mais anti-comunista do mundo

Anônimo disse...

Numa coisa eu concordo com o Anônimo, a tevê idiotiza.

A idiotia televisiva tem dois sintomas claros: de um lado, os anestesiados pela tevê, de outro lado, os incendiários de tevê.

O principal sintoma dos incendiários é acreditar que a tevê substitui alguma coisa. São incapazes que de vê-la como complementar ao cinema, ao teatro, ao show, à literatura, às manifestações culturais, etc.

Ainda vivem a arte na pré-era de sua reprodutibilidade técnica.

Ontem, assisti, morando no interior do Paraná, ao show do Chico Lobo e ao documentário "Samba Riachão". Os incendiários devem ficar pasmados, não precisei pegar um avião até São João del Rei para ver o show do Chico Lobo, muito menos precisei viajar 50 quilômetros para ir ao cinema mais próximo ver "Samba Riachão". Bastou eu ter uma antena parabólica e num dos canais ter sintonizado a TV Brasil.

Para os incendiários ficarem mais pasmados ainda, não deixei de ler um ensaio do Harold Laski sobre o "Manifesto Comunista", não deixei de ler um artigo da Rosane Pavam sobre o Cristovão Tezza, naveguei pela Internet escutando Victor Assis Brasil, Paulo Moura e Moacir Santos, para ficar apenas no que eu fiz a noite.

Os incendiários não vêem as possibilidades da tevê pública. Não sabem que através dela a heterogeneidade da cultura brasileira circula: as pessoas da minha região produzem sua cultura, têm acesso às outras culturas e podem mostrar sua cultura para o restante do país. Não sabem que a cultura vai além da produção, precisa de distribuição e exibição.

Através da TV Brasil posso conhecer as festas populares do interior de Minas Gerais, sem sair do interior do Paraná e, nas próximas férias, posso vê-las ao vivo, caso minhas economias permitem.

Paro por aqui e não entrei na questão econômica de se fomentar cinema em cada cidade, para ficar num exemplo, sem levar em conta o papel da tevê, porque basta conviver com quem produz cinema para saber a importância da tevê para a exibição.

Anônimo disse...

Di Carlo, isso tudo que vc disse já tem na net, e sem lobby. Em quanto tempo vc acha que a tal TV complementar trará resultados? Acho que quem vê TV é preguiçoso ou acomodado, ou então muito sábio.

Anônimo disse...

Digo mais, se não fechar a concessão da Globo e ao menos regular as demais, é dinheiro jogado fora, mesmo. O que atrai o telespectador "comum" (que é a maioria esmagadora)? Programação de qualidade?

Anônimo disse...

Ué, então para que "mandar banda larga pro povo, fomentar cinema e cultura em cada cidade, agentes de promoção e produção de cultura" se o povo não estará nem aí para tais iniciativas pois tem Globo em casa?

Regulamentação das tevês comerciais não anula a necessidade da tevê pública.

Respondendo sua pergunta, o que atrai o espectador comum é o hábito. O espectador comum tem sotaque, tem sua alimentação, mesmo tendo uma tevê que não reflete sua cultura.

O Brasil é muito maior do que o meu quintal. No início do ano eu trabalhei em Rondônia, eu comia tacacá no meio da rua, o prato mais disputado no churrasco era pizza de peixe (a massa era substituída por um peixe assado aberto), no almoço de domingo eu comia arroz com pequi e pato no tucupi.

E em todas as casas a tevê estava ligada na Globo. Ninguém era preguiçoso ou acomodado, ou então muito sábio, apenas estavam habituados a ligar a tevê naquele canal.

Gostavam? Sim. E o que tem a ver com a tevê pública? Nada. O papel dela é outro, é investir na diversidade: é dar a possibilidade da cultura de um quilombola de Rondônia ser exibida na tevê, é dar a possibilidade dos índios cinta-largas produzirem um filme e terem um canal para exibi-lo, assim por diante.

Mesmo com a audiência pequena da TV Brasil, os quilombos e os cinta-largas terão uma visibilidade que a internet não fornece.

Peso eu, a questão da tevê pública não está na necessidade ou não dela, mas no seu fortalecimento. Enquanto ela se expande, devemos continuar outras batalhas: regulamentação das tevês comerciais, para ficar só numa.

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