18 de janeiro de 2009

A Gomorra machadiana de Reinaldo Moraes

"A cabeça do pau ficou presenciando os acontecimentos por cima da cueca".  Abacaxi, Reinaldo Moraes


Existe um egoísmo tão marcante na arte que chega a doer. Quando a gente desfruta uma bela obra, que nos toca particularmente, sentimos um prazer tão intenso, tão singular, e ao mesmo tempo tão incomunicável, que dá a sensação de um segredo estupendo que não podemos contar a ninguém. Como se, após uma semana de sexo animal com Angelina Jolie, não pudéssemos revelar o fato a nenhum amigo, sob pena de torturas excruciantes.

É que a arte, apesar de atingir universalmente a humanidade, se realiza no âmbito individual. O artista cria sozinho e nós, enquanto fruidores, a consumimos solitariamente. Não é por outra razão que a arte é, de longe, o melhor remédio para a solidão e o tédio. Lembro de um personagem de Truffaut que gritava, brigando com sua esposa: "eu não sinto tédio! Eu leio livros!"

Esses pensamentos me vieram à cuca depois de uma tarde lendo Abacaxi, o segundo romance de Reinaldo Moraes. Fez um lindo domingo de sol no Rio, e passei-o na biblioteca do CCBB lendo o romance. Trata-se da continuação da mesma história iniciada em Tanto Faz, primeiro livro do escritor paulistano. O personagem, depois de passar dois anos farreando em Paris, bancado por uma bolsa de estudos, volta ao Brasil. A festa acabou. O patrocínio, c'est fini. Mas ele quer viver os últimos dias de Gomorra em grande estilo e compra uma passagem de volta para o Brasil com escala em Nova York. Com 1.500 dólares no bolso de trás da calça jeans surrada, o personagem aterrisa na fervilhante Manhattan e hospeda-se no apartamento de uma amiga mucho crazy.

Não adianta contar as peripécias vividas pelo personagem. O que apreciei no livro, mais que as histórias, engraçadíssimas, é a forma elegante e enérgica com que Moraes as relata. Mesclando a leveza machadiana com a verve lisérgica de um Bukóswki, Moraes imprime vida ao texto. Ele realiza a utopia de Henry Miller: transforma literatura em vida. Ler Abacaxi não é somente ler um romance, é vivenciar uma experiência fantástica, divertida e, a seu modo, profunda.

É um livro, acho, difícil de encontrar por aí. Por enquanto. Logo logo aparecem outras edições. Se o  encontrar, compre-o. Melhor, use-o. Porque é livro pra ser usado. Usado como remédio, ou antes, como bebida. Ler Abacaxi, como aliás qualquer livro de Moraes, é como beber uma dose de boa vodka num pub escuro, num dia frio e triste de inverno. A vodka desce pelo esôfago e aquece a alma. E nos faz lembrar e reviver os belos dias de uma juventude que nunca tivemos. As belas inesquecíveis eternas loucas madrugadas que deixamos de viver mas que, através da arte e da imaginação, ainda temos a chance de experimentar.

Diante da caretice terrível que predominou nos anos 90, e que só resultou em violência gratuita e no consumo fútil de drogas, diante das utopias mórbidas e tediosas que as passeatas pela paz nos oferecem, a leitura de Moraes nos brinda com a possibilidade de uma paz excitante e jovial, como sempre deveria ser, e uma atitude existencialista perante as drogas infinitamente mais rica e aventurosa. Moraes recupera nossa irresponsabilidade primeva, com a dignidade e autenticidade que somente a paixão pela arte e o respeito pelo amor proporcionam. De maneira que seus textos, que avermelhariam nossos cascudos fariseus até suas faces adquirirem uma cor profundamente sanguínea, quiçá violeta, deveriam ser distribuídos aos jovens pelo Ministério da Educação de um governo futurista e revolucionário. Isso ainda demorará, todavia, e me recuso a usar o advérbio "infelizmente" num resenha sobre Abacaxi. Tudo bem. Ou melhor foda-se. Afinal, como diz Quincas, protagonista do romance, "não há questão que não se resolva com um foda-se bem aplicado".

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PS: Esse link aqui explica tudo.

6 comentarios

Projeto Miolo Mole disse...

caro miguel, esperamos vê-los no próximo final de semana, ok? grande beijo

Miguel do Rosário disse...

opa, vocês vem ao rio, né? bem vindos! com cer(v)teza!

Anônimo disse...

E onde se acha esse livro?

Miguel do Rosário disse...

é dificil achar, vera. se eu encontrar, eu separo para voce. beijos.

Anônimo disse...

Ah, obrigada e me avise. Fiquei muito interessada em ler com seus comentários.

Anônimo disse...

Difícil achar uns escritor assim, Miguel. Desencana - como dizia o Ricardo do Tanto Faz - que a vida engana. Uma mistura de generosidade com desapego. Que resulta num foda-se que é praticamente um afago.
Sou fã do Reinaldão.
Abraço,
MM

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