17 de março de 2011

Churrasco na chapa branca



Publico o vídeo acima não porque eu concorde com o autor, mas porque resume bem o sentimento popular suscitado pela notícia de que o Ministério da Cultura aprovou a captação, via Lei Rouanet, de 1,3 milhão de reais, para o projeto de Maria Bethania e Andrucha Washington. O Pedro fala em 1,7 milhão porque era o valor original pedido pelos proponentes, reduzido para 1,3 milhão pelo Minc.

É duro ir contra um sentimento popular tão forte.

No post anterior, eu não me preocupei tanto em justificar o valor artístico (e moral) do projeto de Bethânia e concentrei-me em mostrar que seria injusto usar esse exemplo para sugerir a incúria da ministra Ana de Hollanda, visto que a gestão anterior aprovou projetos bem mais polêmicos, como o que permitiu à Globo captar 3 milhões de reais para fazer um site sobre o... movimento estudantil. Eu nem me estendi sobre esse episódio da Globo, que é absurdo, por várias razões:

1 - A Fundação Roberto Marinho usou a Lei Rouanet para descontar o imposto de renda da própria empresa-proprietária, a Globo, o que é um artifício dos mais odiosos. Grandes empresas criam fundações que usam a Rouanet para tocar projetos de interesse privado com dinheiro público;
2 - O projeto em si, porém, tem um agravante. A Globo foi um ator protagonista nos acontecimentos que levaram ao golpe militar de 64. Dar dinheiro público para que ela faça prevalecer a sua versão sobre o que era e o que representava o movimento estudantil é simplesmente grotesco. É incrível como não houve repercussão do episódio. E por que não houve repercussão? Simples, porque a Monica Bergamo não publicou nenhuma notinha.

A lei Rouanet funciona de maneira tal que quase todo projeto enviado para o Ministério, e que seja razoavelmente bem escrito e com participação de pessoas idôneas, é aprovado para a captação. Em geral, o Ministério ajusta a verba pedida, e suponho que os proponentes já ampliem o montante pensando justamente nesse corte.

Conforme se vê no vídeo, as pessoas irritaram-se profundamente. Monica Bergamo, que sabe muito bem o que faz, já identificou a tensão existente no Ministério da Cultura, e aplicou o veneno na medida certa. Nem exagerou, o que reduziria a credibilidade da intriga, tampouco diminuiu. Apenas jogou a notícia sem muitos detalhes ou explicações. Poderia, por exemplo, ter entrevistado Andrucha, que certamente defenderia o valor e a importância do projeto.

Outra desinformação que se vê no vídeo do Pedro é que ele não distingue verba da lei Rouanet de verba do Ministério. O Minc tem pouca verba para investir em projetos, mas a Lei Rouanet disponibiliza mais de 1 bilhão de reais ao ano. Ele fala que trabalha com cultura e não consegue arrecadar nem "2 mil paus". Ora, eu não consigo nem "20 paus". Mas desconfio que se eu tiver paciência e escrever um projeto muito bom, há risco grande de ser aprovado pela Lei Rouanet.

O difícil é captar depois. Essa é a grande vantagem dos famosos.

A ignorância das pessoas sobre o custo de um projeto desse porte foi manipulada. No blog do Nassif, eu vi gente indignar-se pelo custo de 3,5 mil reais para elaboração de um vídeo. Acontece que, num projeto financiado pelo governo, a produtora tem que pagar preço de tabela para editor, figurinista, eletricista, etc. Ah, Bethania podia fazer com uma webcam. Certo? Não. Não se pode confundir a produção de um filme amador ou universitário com a de um trabalho profissional. Tem que pagar bem, não tem jeito. Pode-se contestar o fato do dinheiro ser público, mas não o custo. O cachê total da Bethânia, de 600 mil reais, admito que é o item mais difícil de justificar. A única maneira de salvar a pele da Bethânia é dividir o cachê pelos 365 filmes e mostrar que será de 1,6 mil por peça. Os valores finais são altos porque é um projeto de proporções bem monstruosas...

E agora esse projeto terá que ser genial; para isso serviu a polêmica, para forçar os artistas a se empenharem o máximo, pois vai ser a única forma de legitimar um gasto tão alto de dinheiro público: produzindo um material de excelência. Desejo sorte.

As pessoas perguntam porque eu estou defendendo a Ana de Hollanda. Uma amiga do Twitter me provocou, sugerindo que meu "governismo estaria acrítico demais".

Em primeiro lugar, eu peço encarecidamente que respeitem minha honestidade intelectual e independência. Eu defendo quem eu quiser e sou crítico a quem eu quiser. Eu nem queria defender a Ana de Hollanda, mas os ataques baixos se multiplicam e não tive outra saída. Que eu saiba, ela não cortou nenhum programa importante ainda, ou ao menos não fez nenhum corte além do imposto pela tesourada do Guido Mantega.

Quanto ao governismo, mantenho a mesma postura que tive durante o governo Lula. Esperar pra ver. Não vou criticar aumento de juros ou cortes de gastos com leviandade, porque não tenho acesso a todos os dados. Se eu fosse um diretor do BC, e soubesse o que estava acontecendo, podia quebrar o pau lá dentro. Mas aqui de fora, prefiro esperar para ver se as medidas dão resultados, e depois trabalhar com dados palpáveis, concretos, e não com expectativas insondáveis. Se daqui a um ano, a inflação estiver sob controle, o desemprego e a pobreza em queda, a economia crescendo de maneira equilibridada e sustentável, e os juros caindo, ou então se ocorrer o contrário, aí poderei dar uma opinião embasado em números reais.

Quer dizer, se Dilma cortasse gastos em programas sociais ou obras prioritárias, poderíamos identificar aí uma perigosa mudança de rumo. Não foi o que aconteceu, todavia, e sim o oposto: Dilma decidiu ampliar significativamente o valor do Bolsa Família, em até 45%, e as obras do PAC foram mantidas.

Em relação à ida de Dilma ao aniversário da Folha, continuo achando que foi uma jogada inteligente, que trouxe importantes dividendos políticos para o PT, para o governo, e consequentemente, para a esquerda em geral. Tem muito petista achando que a partida já está ganha. Nada disso. A direita é muito forte. Outro dia saiu a lista dos bilionários da Forbes. É assustador ver a quantidade de brasileiros no ranking, a maior parte ligado às instituições financeiras. A direita tem a grande mídia e tem recursos financeiros quase ilimitados. Subestimar a sua força política e esnobar estratégias para avançar sobre o eleitorado de centro e centro-direita, maioria em Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Santa Catarina, é tolice.

A vitória da esquerda é relativa e temporária, até porque o sistema econômico não lhe favorece.

Não estou sendo chapa-branca ou governista acrítico quando acho que Dilma agiu muito bem ao ir à Folha. É o que eu penso, livremente. Sou um apaixonado estudante de história, e sei que os líderes políticos mais populares sempre agiram com magnanimidade. Cícero passou anos vituperando Júlio César, atacando inclusive a sua sexualidade, pois os inimigos de César espalhavam a história de que ele teria cedido à sedução de um ricaço asiático, nos tempos em que ainda era um militar pobre e endividado. Após assumir o poder, Júlio César perdoou Cícero e tratava-o sempre com grande cordialidade. As histórias da Antiguidade, em Heródoto ou no Velho Testamento, são cheias de lições desse tipo. Eu já li esses livros todos e por isso entendo que Dilma agiu muito bem ao não demonstrar nenhum ressentimento. Ela foi nobre.

Eu tô de olho no governo, mas sem excesso de zelo, até porque seria valorizar demais o meu senso crítico achar que tenho o dom de discernir, nos atos mais singelos das autoridades, sinais inconfundíveis de uma desvirtuação ideológica. Ora, o governo tem que lidar com uma miríade de forças contraditórias: no Congresso, no Senado, nos partidos, na mídia, no setor econômico, na política internacional. Um discurso conservador aqui pode servir de contrapeso para uma ação progressista acolá. É assim que funciona a política, um jogo de forças, muitas vezes silencioso, muitas vezes contraditório.

Se a pessoa tem tanta preocupação assim em influenciar e controlar a maneira como agem os representantes políticos, seria mais honesto se tornar logo um político. Filiar-se a um partido, disputar eleições, articular-se.

Refiro-me somente às pessoas físicas, naturalmente, e com ressalvas, visto que é importante a pessoa se expressar e defender seus pontos de vista. Critico apenas o exagero, o patrulhamento excessivo.

Por exemplo, agora é um bom momento para fazermos um balanço crítico do governo Lula. Temos os dados em mãos, e podemos apontar-lhe os defeitos e os problemas, sem o perigo de beneficiar diretamente a oposição. E o que muitos preferem fazer? Endeusam o governo Lula, e culpabilizam a gestão Dilma. Lula não conseguiu mudar a lei Rouanet? Mas a culpa é de Dilma. Lula não conseguiu construir uma regulamentação mais democrática para mídia, de maneira a dar mais liberdade para a sociedade civil e política, protegendo-a contra os desmandos dos barões da ditabranda? É Dilma ainda a culpada, porque vai na Hebe, na Ana Maria Braga, na festa da Folha... Como se Lula não fosse no Ratinho e no Datena...

Ora, Lula não precisa mais de proteção política. Quem precisa é a Dilma. Nenhum governo é perfeito, mas todos precisam de tempo para se adaptarem à nova realidade e às novas circunstâncias.

Leva-se também muito a ferro e fogo o significado da palavra "continuidade". O povo elegeu Dilma para continuar a obra de Lula, mas isso não quer dizer que a presidente tenha que emular completamente seu antecessor. Nem pode. Ela tem um estilo diferente e imprimirá esse estilo a sua gestão. É uma mulher trabalhadora, honrada, dotada de sensibilidade social, qualidades que a fariam uma excelente estadista mesmo que pertencesse a um partido conservador. Integrando uma coalização de forças progressistas, terá condição de fazer um governo extraordinário, e sua prudência nesses primeiros dias apenas confirma sua astúcia e capacidade.

Hoje eu li, na Folha, um artigo de Ives Gandra, o reacionário-mor, tecendo altos elogios à presidenta. Não sou do tipo que se assusta com isso. É um movimento inconsciente, uma atração natural que o poder e os vencedores exercem sobre o imaginário conservador. A direita quer, além disso, seduzir os donos do poder, através de gentilezas, afagos, elogios. Afinal somos todos seres humanos sensíveis e vaidosos.

È preciso ficar atento a tudo isso, inclusive para a psicologia da política. Da mesma forma que os ricaços se sentem irresistivelmente atraídos pelo poder e tendem a elogiar as autoridades, a maioria da sociedade tem uma relação de conflito com o poder: há sentimentos baixos, de inveja, ressentimento, complexo de inferioridade, baixa autoestima (os mesmos, aliás, que explodem em situações como a da polêmica com o blog de Bethânia)... Claro que, mesmo com esses sentimentos, que são inevitáveis, as críticas tem importância capital. Deve-se porém evitar a crítica vazia, feita apenas pelo desejo de criticar, porque ela fatalmente irá enfraquecer uma crítica séria que tenhamos a fazer no futuro, além de queimar pontes entre o poder político e o militante.

Criticar sim, mas sem cair na pilha, sem ódio, sem bullying virtual, sem simplismos e sem ingenuidade. Com racionalidade inquebrantável e objetividade fria.

Dessa vez não tem final bonito. Quer dizer, talvez esses versinhos do velho Bukóswki sirvam de conclusão:

beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.

15 comentarios

Anônimo disse...

perfeito o posicionamento político.
eleita dilma, muitos "progressistas" arvoraram-se em donos ou mentores do seu mandato.
r í d i c u l o.
até agora, a meu ver, ela vem acertando em tudo.
que continue assim.
emerson57

Thiago disse...

Excelente, Miguel.

Concordo com o posicionamento que você tem defendido no caso do blog da Bethânia, e com essa posterior análise dos movimentos da Dilma (que parece jogar com estratégias de longo prazo bem grandes).

O pessoal se emociona demais, se exalta demais. Acha que todo dia é campanha...não tem análise que vingue assim.

Valeu.

Vera Silva disse...

Miguel,sua análise neste post e no anterior são muito boas.
São lúcidas e espelham o desejo de ser justo e objetivo em suas críticas.
Penso desta forma e se tivesse sua competência na área, provavelmente minha crítica seguiria nos mesmos parâmetros.
Seu blog está cada dia melhor.

Anônimo disse...

Vc não acha estranho que o projeto não contemple os valores a serem pagos a título de direito autoral? O cachê total da Bethânia, de 600 mil reais não seria alto demais para quem apenas vai "declamar" as poesias? Se o objetivo do blog (tal como apresentado no projeto) é:

- Estimular a formação de público de leitores;
- Estimular a discussão, na rede, sobre poesia e literatura;
- Propiciar o contato e interação de jovens comliteratura brasileira;

tais objetivos não seriam alcançados sem a presença de um "medalhão" capitaneando a apresentação? Não seria muito mais estimulante se o projeto contemplasse a apresentação por um coletivo de jovens poetas e amantes da poesia? De toda essa celeuma pra mim ficou clara somente uma coisa: esse projeto da Bethânia nada mais é que uma forma descarada dela sugar o seu quinhão de leite da viúva. Cara de pau.

Vania disse...

Prezado Miguel
Parabéns mais uma vez! Tenho encontrado em seus textos um pouco de alívio diante de tantas sandices que andam sendo ditas por aí. Muito obrigada. Acho todas as suas observações pertinentes. Sobretudo, porque nos fazem pensar, ponderar, refletir. Coisas que andam difíceis nesses últimos tempos.
Um abraço.

Miguel do Rosário disse...

anonimo, não entrei no mérito do projeto, se é bom ou não. só depois de pronto, poderemos avaliar objetivamente se valeu a pena.

Anônimo disse...

Se não valer a pena tu acha que a renuncia fiscal de 600 mil será devolvida?

Miguel do Rosário disse...

claro que não, é um risco. mas a artista e o diretor ficarão desmoralizados junto à sociedade.

Anônimo disse...

Esse é o problema. Como o dinheiro é publico, muita gente acha que não é de ninguém. Dá pra arriscar. Não sei como anda, mas o caso do Guilherme Fontes é emblemático. Captou milhões pro filme dele ( "Chatô - O Rei do Brasil") , não produziu, não prestou contas e deve estar belo e fagueiro nas rodas culturais.

Miguel do Rosário disse...

não é bem assim. o fontes quase foi preso. e seu nome tá sujíssimo na praça. evidentemente, fosse em outro país, talvez estivesse preso efetivamente. mas isso é outra história.

Anônimo disse...

Cada um suja o seu nome na praça por um valor. Ele como não é bobo, se sujou com bastante. Com o meu, com o teu, com o nosso dinheiro. Dinheiro de renúncia fiscal É SIM dinheiro público.

Angela RAMarques disse...

Miguel, isso aí é fichinha em relação à isenção (IPI, PIS/Cofins, ICMS ...) fiscal para os jornais, com o papel imune, criado na CF de 1946, provavelmente com o objetivo de manter uma imprensa livre pós-Estado Novo (não tenho informação histórica precisa, é só um achismo pela data), e mantida na CF de 1988 (art. 150, incluindo livros). Estamos em um Estado democrático e capitalista. Nada mais justo que o capital bancar seus custos ...

Augusto de Carvalho disse...

Parabéns Miguel!

Excelente, certeira e sincera análise política, além de muito bem escrita!

Abcs e continue assim!

Unknown disse...

Carcarás

Como se sabe, a cultura brasileira sobrevive de incentivo fiscal. Com autorização do governo federal, as empresas podem direcionar parte do dinheiro destinado a tributos para os projetos de sua preferência. Todo mundo usa esse instrumento há anos. Todo mundo mesmo: de filmes com atores globais a livros de fotografia, de circos famosos a shows de estrelas sertanejas.
Mas então por que de repente surgiram reclamações contra o projeto de Maria Bethania e Andrucha Waddington?
Primeiro porque boa parte da blogosfera dita “progressista” continua se deixando pautar pela imprensa corporativa. Em vez de questionar certas incongruências do noticiário cultural, tão afeito a lobbies e mistificações, esses comentaristas não apenas engolem suas besteiras mas, pior, ecoam-nas como se tivessem nascido de espírito investigativo desapegado e imparcial.
Em segundo lugar porque existe uma campanha midiática para derrubar a ministra Ana de Hollanda. E não é razoável supor que certa intelectualidade de esquerda, tão sagaz em identificar e denunciar seus inimigos, desconheça os interesses aos quais se alinha nesse tipo chinfrim de polêmica.
Não se trata, portanto, de uma discussão sobre a Lei Rouanet (que, aliás, precisa ser redimensionada urgentemente), mas de uma disputa política do pior tipo: aquele que usa bodes expiatórios para dissimular suas verdadeiras motivações.

http://guilhermescalzilli.blogspot.com/

miack disse...

Parabéns Miguel!
Obrigada pelo excelente texto!

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