13 de março de 2011

A morte do pequinês e os tiranos (ou Mirisola diante da Igreja)


(Introduccion a la esperanza, por Luis Felipe Noé)

Voltando do cinema no CCBB, encontro um escritor sentado num toco de concreto, na praça XV, admirando um casamento na Igreja da Nossa Senhora do Carmo e ouvindo o badalar ensurdecedor dos sinos daquela que por séculos foi a Catedral do Rio de Janeiro. O nome dele é Marcelo Mirisola, tem 45 anos, mora no Rio há um ano, e tem sido um amigo fraterno desde os tempos em que eu namorava, com um pouco mais de seriedade, a ideia de inventar romances. Convido-o para um chop na Lapa, e vamos todos (minha consorte inclusa) caminhando pelas ruas semi-desertas do centro. Sabadão e um clima de carnaval ainda paira na cidade. A Lapa está cheia de gente.

- Miguel, estou meio cansado de escrever crônicas, então vou te dar umas ideias que tenho preguiça de desenvolver. Por exemplo: falam tanto dessas ditaduras de 30, 40, 50 anos, dos regimes árabes. Quem vai denunciar, porém, a tirania dos Mesquita? Dos Fria? Os Marinhos estão aí desde 1925!

Meus olhos brilham. Interessante ver como as mesmas ideias visitam as pessoas ao mesmo tempo, sem que elas precisem ter conversado antes, sem que precisem ter lido os mesmos livros. Mirisola desenvolveu suas ideias enquanto meditava na Bastilha onde os donos da mídia estão sempre tentando o manter preso. E cristalizou-as a escrever resenha do livro Segredo de Estado, de Jason Tércio, um romance histórico que narra o desaparecimento do ex-deputado e empresário Rubens Paiva.

(Por que a mão pesada dos tiranos da mídia e de seus lacaios na imprensa sempre esteve no poder; pior, ainda está no poder.)

- Não é um quarto poder, Miguel? Não é tão importante quanto Executivo ou Legislativo? Então deveríamos eleger o publisher!

O fato é que um escritor com dezenas de romances publicados, de qualidade reconhecida por gente como Reinaldo Moraes e Marcia Denser, depende da boa vontade dos cadernos culturais.

Teremos mais cinquenta anos de tirania midiática? Fidel está nas últimas, seu irmão também já está velhinho, mas Frias II permanece, jovem e forte, à frente de seu império, ditando os rumos da política e da cultura nacionais...

Eles não conseguem mais eleger presidentes da república, mas ainda pautam o debate político e exercem influência poderosíssima no debate cultural, onde somente seus afilhados recebem os louros da glória.

Talvez seja ressentimento de nossa parte. As revoluções também nascem do ressentimento, não existe nada mais irritante do que ver a família real distribuindo benesses para quem não as merece. Os árabes cansaram-se disso. E nós, quando faremos alguma coisa?

Contei ao Marcelo sobre a função da blogosfera, vista como um contra-poder à hegemonia da grande mídia. Ainda incipiente, modesta, mas um poder concreto. Muitas vezes nós blogueiros brigamos uns com os outros, entramos em crise e nos rebelamos contra qualquer forma de nos auto-organizarmos. A BLOGOSFERA NÃO PRECISA DE ORGANIZAÇÃO!, me disse um dileto amigo do mundo virtual.

Nada disso. Precisa sim. Tudo que é vivo precisa se organizar. Não confundamos organização, todavia, com sufocar a diversidade. A organização é necessária porque, acima de nossas brigas, temos um inimigo em comum: a tirania dos grandes grupos de comunicação.

Daí a nossa importância política, daí a esperança que milhares de brasileiros depositam em nossos blogs singelos, às vezes amalucados, mas que emitem um brilho guerreiro e quixotesco que desperta um carinho enorme das pessoas.

Volto à resenha de Mirisola, e a Rubens Paiva, empresário que lutava contra a ditadura com as armas que tinha à mão: dando dinheiro, abrigando gente em sua casa, ajudando a comprar passaportes falsos.

O autor de Azul do Filho Morto e Bangalô nos conta, a partir do livro de Tércio, que a imprensa da época chancelou a historinha surreal dos militares, segundo a qual Paiva teria "fugido" depois de um "ataque" dos subversivos ao comboio que o transportava de uma prisão a outra.

Globo, Folha e Estadão são bons jornais no sentido técnico. E porventura exercem bem a sua função de vigiar o poder público. É como Kadaffi na Líbia, porém. Muitos colegas vieram me dizer que não entendiam o porquê da revolta dos líbios, visto que o país tem índice Gini alto, e ótimos serviços de saúde e educação. O famigerado PIG poderia, se quisesse, melhorar de qualidade, sobretudo no campo da diversidade ideológica, mas ainda teríamos um problema democrático. Vivemos uma sociedade totalmente midiatizada e, portanto, o controle da mídia corresponde a um poder politico importante demais para ficar nas mãos de filhinhos de papai sem escrúpulos. Pior que Kadaffi são seus filhos...

É por essa trilha que a famosa Ley dos Medios, em minha humilde opinião, deveria enveredar-se. Se o Estado gasta 5 bilhões de reais por ano em publicidade oficial nos meios de comunicação, então deveria haver qualquer contrapartida democrática por parte dos mesmos. Não para censurar ninguém, mas para defender o leitor e pontos-de-vista diferentes. O Ombudsman de um jornal, por exemplo, não pode ser um empregado do próprio jornal. Como exigir de um funcionário que se volte contra seu próprio patrão? E até quando o jornalista será um escravo ideológico de empresários? É para isso que educamos e formamos nossos jovens? Para mantê-los sob o jugo de um capataz (leia Ali Kamel) dos Marinho?

Conversamos sobre essas coisas e outras, inclusive sobre o desaparecimento do cão pequinês. A moça a meu lado contou-nos que o último pequinês, pertencente a sua amiga, havia morrido. O que nos levou a meditar sobre a fugacidade das raças caninas. Também nunca mais vimos filas brasileiros, por exemplo.

"Aquilo [os filas] devia comer como um boi e cagar como um elefante; não era muito prático; o pitbull é mais compacto e econômico e igualmente assustador", comentamos.

Pois é, desaparecem os pequineses, os filas, os Rubens Paivas, caem os tiranos do norte da África, os EUA se tornam devedores da China, mas os Mesquita, os Frias e os Marinhos permanecem no poder, arco e flecha no braço, disparando contra a estátua de São Sebastião, cuja forma de mármore não o permite se mover do lugar onde está, pregada na torre da Igreja de Nossa Senhora do Carmo.

Olhemos bem nos olhos da estátua, fixamente, longamente. Talvez notemos algum movimento sob suas pálpebras. Talvez o corpo de Rubens Paiva ainda possa ser encontrado. Talvez a comunicação social no Brasil se liberte de sua história triste, não só de conivência com a ditadura, mas de principal articuladora e incitadora do golpe de Estado. Talvez a gente possa, um dia, enfrentar eleições sem a horrível insegurança de lidar com uma mídia inimiga dos valores democráticos e soberanos que presidem a nossa Constituição. É por ela, Marcelo, por nossa liberdade, que tocavam aqueles sinos...

4 comentarios

Unknown disse...

WikiLeaks e os mitos da democracia
(publicado na revista Caros Amigos)

A notoriedade conquistada pelo WikiLeaks teve inúmeros efeitos positivos, louvados à exaustão. Também conhecemos os questionamentos de seus adversários, alguns bem espinhosos e insolúveis, como os que debatem a necessidade de proteger dados governamentais estratégicos. Passado o furor das polêmicas iniciais, porém, é necessário apontar alguns equívocos menos evidentes de ambas as facções.
As informações divulgadas trouxeram pouca novidade àquilo que o leitor atento de jornais já sabia há décadas. Mesmo a infame perseguição a Julian Assange é típica do regime político em vigor nos EUA, que sempre combateu antagonistas com os instrumentos usados pelas chamadas ditaduras contra seus dissidentes. Assange, indefeso como qualquer cidadão comum, jamais escaparia das armadilhas jurídicas, econômicas e jornalísticas que esmagam quem ousa confrontar o “sistema”.
Apesar do discurso iconoclasta, ele precisou recorrer à mídia corporativa para legitimar-se e salvar a própria pele. Governos e empresas atingidos superaram o breve embaraço e voltaram às atividades obscuras de praxe. Assange serviu para elevar a audiência e aprimorar a blindagem de seus inimigos, e depois foi descartado. Pagou um preço demasiado apenas para confirmar que não existe liberdade de imprensa ou direito à informação no mundo real do poder, que esses princípios ocos alimentam fantasias convenientes à natureza totalitária da farsa democrática.
A ilusória força mobilizadora da internet ameniza nossa amedrontada submissão às engrenagens que não podemos (e talvez não queiramos) destruir. É enganosamente confortável denunciar injustiças e violências no ambiente inofensivo da virtualidade. O ativismo eletrônico, ainda que necessário, não basta para operar mudanças efetivas no cotidiano das populações. E pode também levar a inúteis sacrifícios pessoais.

www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Anônimo disse...

Muito bom seu texto Miguel. Parabéns.

Unknown disse...

Poético, gostoso de ler e, coisa difícil de se fazer, cru e realista. Comecei faz pouco, mas cada vez gosto mais deste blog.

rodrigo melo disse...

os filhos do kadafi são piores que ele.
o texto é todo bom, mas essa frase foi florida,

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