1 de março de 2011

Desmontando o maniqueísmo

Só espero que os Estados Unidos não estrague tudo. As declarações bombásticas de dirigentes norte-americanos sobre Kadafi não ajudam em nada ao movimento popular árabe. A diplomacia americana e européia perderam qualquer noção (se é que a tiveram algum dia) sobre a necessária prudência na forma como se referem a governos de outros países.

Você não verá o presidente da China ou do Brasil falando à mídia internacional o que Kadafi deve ou não fazer. No caso dos EUA, depois do que fizeram no Iraque, deviam ficar bem quietinhos.

A postura certa é apostar nas instituições multilaterais, as únicas que tem legitimidade política para dar pitacos sobre o governo líbio.

Não falo do direito de se expressar. O presidente de qualquer país tem a liberdade de falar o que quiser. Refiro-me a fatores como: prudência, objetividade e inteligência diplomática. As falas de Obama e Hillary Clinton são contra-producentes, na medida que ajudam lideranças árabes conservadoras a rotularem os movimentos pró-democracia como fantoches dos interesses ocidentais.

Por sorte, a ONU está agindo tão rápido que abafou as declarações arrogantes da Casa Branca.

Tudo que o movimento democrático árabe NÃO quer é ser associado ao imperialismo americano. São forças jovens, de pensamento arejado e como tal sem o ranço anti-americano da geração anterior. Ao contrário, os jovens árabes de mentalidade esclarecida entendem as contradições profundas da sociedade norte-americana, sabem que ela também é vítima de uma plutocracia financeira, mas que há imensos bolsões progressistas no país do rock 'n roll.

Por outro lado, o momento tenso e o próprio modus operandis da mídia, de estabelecer vilões e mocinhos, gerou um maniqueísmo que está confundindo as pessoas. O notório apoio dos EUA e da mídia ocidental aos rebeldes líbios, a satanização quase holliwoodiana do tirano líbio e, por outro lado, a desconfiança visceral, por parte de muita gente, de tudo que vem impresso na chamada "mídia velha", tem levado pessoas a assumir uma posição quase (ou totalmente) pró-Kadafi.

Lembro que, por ocasião da guerra no Iraque, aconteceu algo parecido. Eu mesmo li muitos artigos, e escrevi outros, falando das virtudes do governo de Saddam Hussein, que havia nacionalizado as empresas de petróleo e inaugurado um governo laico e liberal, fazendo do Iraque um dos raros países onde as mulheres andavam normalmente pelas ruas, trabalhavam em qualquer parte, dentre outras características positivas.

Entretanto, era ao mesmo tempo claro que Saddam era um ditador e seu governo cometia abusos intoleráveis contra seus cidadãos.

O que houve no Iraque, no entanto, foi um crime histórico. Após debilitar economicamente o país com sanções duríssimas, os EUA o destruíram de vez com uma invasão insensata, contrariando resoluções da ONU. O que acontece no mundo árabe hoje é algo completamente diverso: são forças populares, apoiadas pela nata mais esclarecida em cada país, exigindo democracia. É Voltaire e o povo juntos derrubando a Bastilha das ditaduras árabes!

Iraque, Líbia, Egito, entre tantos, viveram momentos importantes de libertação política e econômica nos últimos cinquenta ou sessenta anos, quando nacionalizaram seu petróleo e lideranças militares assumiram as rédeas do poder nos respectivos países. Mas aquele foi apenas o primeiro movimento de um processo dialético de busca pela liberdade.

Os países conseguiram a liberdade política e estabeleceram governos voltados para a economia doméstica. Mas isso não basta. É preciso dar liberdade aos cidadãos. Mais que isso, é preciso estabelecer regimes constitucionais onde a palavra final não seja de nenhum déspota, mas da Lei. E que esta Lei seja escrita e discutida com toda a sociedade, ou pelo menos com seus representantes eleitos.

Alguns colegas lembram que a Líbia tem um IDH alto. Ora, Adão e Eva também estavam muito bem no Paraíso. Os líbios não tinham liberdade, e isso é motivo para qualquer povo se rebelar. Ademais, sendo um país com apenas 6 milhões de habitantes e repousando sobre uma das maiores reservas de petróleo e gás do mundo, não é difícil obter um IDH medíocre, visto que o índice não mede a tortura nas prisões nem a ausência de liberdades públicas.

Não podemos recair neste simplismo pirracento de sermos a favor do Kadafi apenas porque a mídia é contra. Também acho que devemos cuidar para não mergulharmos nesse maniqueísmo tolo, de menosprezar qualquer coisa publicada por um veículo de cuja linha editorial discordamos. A gente tem que ler a mídia de maneira crítica, tentando filtrar, com nosso bom senso, o que presta ou que não presta. Não é fácil, naturalmente, mas não há outra saída, visto que grande parte das informações de que precisamos para elaborar nosso próprio pensamento está lá, nos grandes jornais, revistas e redes de tv. Reiterando, cumpre ler criticamente, sem aceitar passivamente tudo que está escrito, mas também sem rechaçar dados que podemos usar muito proveitosamente. Mesmo na reportagem mais cheia de equívocos e mentiras, podemos encontrar verdades; aliás, e isso é o mais irônico, os próprios equívocos e mentiras constituem, muitas vezes, uma valiosa informação, embora às avessas, que aproveitamos para uma determinada análise.

Não podemos esquecer que a estabilidade funerária obtida por uma ditadura opera milagres econômicos. É bem mais fácil para um país crescer quando não tem ninguém protestando na praça. O que vemos entre os árabes, porém, é um verdadeiro Renascimento. Eles estão gritando para o mundo: não somos trogloditas, não somos todos fanáticos, não somos uns bárbaros.

Não deveríamos deixar, portanto, que os liberais da direita ocidental apareçam na foto como os principais amigos e defensores desse renascimento. Porque não é verdade. A esquerda deve contemplar os acontecimentos do mundo árabe com magnimidade e arejamento intelectual, sob o risco de ser vista como defensora de ditadores que, todos, ajudaram a estabelecer os fundamentos das injustiças de hoje no mundo.

Na vida real, na história, não existem anjos ou demônios. Há líderes que fazem barbaridades e depois melhoram, há o contrário. O que importa para a história, porém, é a evolução da liberdade humana, na qual devemos incluir naturalmente o acesso aos insumos básicos (alimento, educação, saúde, emprego), mas também os políticos, como o direito dos povos de se autogovernarem, o que significa, no âmbito individual, o direito de eleger seus representantes. A democracia pode ter nascido na Grécia, mas o senso de justiça que a produziu é muito mais antigo. É algo enraizado profundamente no espírito humano, e é difícil deixar de se emocionar ao ler sobre como os revolucionários líbios (assim como fizeram os egípcios da praça Tahir) vem se organizando de maneira equânime e justa, vivenciando uma experiência que ajudará o país a construir uma nova ética social e política.

2 comentarios

Lucia Coelho disse...

Seguramente este foi o artigo mais sensato e equilibrado sobre os acontecimentos politicos sociais na Libia.

Lucia Coelho disse...

Guardei nos favoritos e recomendo aos amigos sensatos com visão pelo outro lado da historia... Mais uma vez parabens pelo esclarecedor artigo. Voce é impagavel...!

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