7 de março de 2011

Porque Kadafi não abre um blog?

(Jonathan Meese)


Ao final do post publico artigo de um professor da USP, rebatendo um texto de Miguel Urbano Rodrigues publicado em vários blogs e sites, que resume muito bem o que eu queria dizer. Eu acrescentaria apenas algumas coisas. O artigo de Rodrigues traz informações notoriamente tendenciosas, como esta:

Os últimos discursos do líder líbio, irresponsáveis e agressivos, foram aliás habilmente utilizados pela mídia para desacreditar e estimular a renúncia de ministros e diplomatas, distanciando Kadhafi cada vez mais do povo que durante décadas o respeitou e admirou.

Ora, tudo bem dizer que a Lìbia é um país maravilhoso, com indústria florescente, educação e saúde públicas de primeira qualidade, virtudes das quais infelizmente eu e a população mundial só tomamos conhecimento agora. Mas referir-se ao chefe de um regime onde não há nenhuma espécie de liberdade política como um líder que o povo "por décadas sempre amou e admirou", não seria cinismo?

Claro que muitos me apontarão Fidel Castro, mas de Fidel temos imagens constantes das praças lotadas de cubanos que apoiam o regime. Na Líbia, temos cidades sublevadas de gente atacando ferozmente Kadafi. Não comparem Fidel à Kadafi, por favor. Nem o regime político cubano é modelo para ninguém. Cuba é exemplo em outros quesitos. Na área propriamente política, é lamentável que o regime ainda dependa das orientações de uma só pessoa. Enquanto Cuba não se democratizar, será sempre um elemento constrangedor e negativo, para a esquerda, no complexo jogo de xadrez ideológico que jogamos nas Américas. Eu tenho defendido Cuba há anos, ainda a defendo, dos pesados ataques do conservadorismo; procuro sempre trazer a tôna as especificidades da América Central, onde nenhuma democracia verdadeira conseguiu florescer sem que fosse violentada por golpes de Estado patrocinados pelos EUA. A Líbia também tem sua história. A ditadura de Kadafi seguramente nasceu de algum imperativo histórico qualquer. Isso não significa, porém, que as coisas tenham de se manter assim para sempre. Cuba vem mudando, e há um grande esforço, entre os democratas do mundo inteiro, para convencer a direita americana de que o embargo imposto a pequena ilha caribenha apenas dificulta seu processo de abertura politica.

Outra diferença importante entre Kadafi e Fidel é que, em Cuba, os comunistas estão no poder; na Líbia, estão na cadeia, ou enterrados, o corpo cheio de marcas de tortura.

Eu conheço o respeitado comunista Miguel Urbano Rodrigues de longa data e até já colaborei para seu site; a colaboração durou até o dia em que, ao ler no site Resistir.info, de responsabilidade de Rodrigues, um artigo de um marxista canadense que afirmava, do alto de faustosa pompa acadêmica, que Lula era um agente da CIA, eu rebati com um texto em que procurava educadamente mostrar ao ilustre intelectual que a teoria não tinha cabimento; cometi, porém, o deslize de chamar o canadense de norte-americano; e mesmo que a informação não tivesse nenhuma relação com minha argumentação, e eu me prontificasse a corrigi-la (e nem estava tão errada, pois o Canadá integra a América do Norte), Urbano Rodrigues cortou-me de seu site e sustentou os ataques daquele marxista paranóico ao presidente Lula.

É muito sintomático que, neste momento em que as pessoas, num comovente ato de catarsis coletiva, resolveram soltar todo o esquerdismo reprimido em oito anos de ditadura Lula, as teorias do respeitado Miguel Urbano Rodrigues voltem a fazer sucesso, mesmo que, para isso, se tenha de atacar as posições da diplomacia brasileira. Mesmo que os argumentos de Urbano sejam os mais absurdos possíveis.

Não é verdade, por exemplo, que o ditador líbio não tenha espaço para divulgar suas ideias. A televisão estatal sempre esteve sob seu comando, e quais foram seus depoimentos? Por acaso ele convocou intelectuais do país para discutir maduramente a situação da Líbia? Ou ele foi a TV para dizer que os jovens que protestavam o faziam sob efeito de drogas psicotrópicas enviadas por agentes estrangeiros e que estavam sob as ordens da Al Qaeda?

Por acaso não foi Kadafi que foi à TV, guarda-chuva à mão, para fazer um discurso de 2 minutos onde a frase mais inteligente era a que se referia às redes de tv, incluindo a Al Jazeera, como "cães"?

Ora, se Kadafi precisasse mesmo se expressar, podia entrar no Twitter! Abrir um blog! E não suspender a internet em todo país como tem feito!

Ademais, há uma fila de centenas de jornalistas famosos doidinhos para vender, por cinquenta mil dólares, uma exclusiva com o ditador líbio!

Até Bin Laden tem espaço na mídia! Porque Kadafi não teria?

A verdade é que Kadafi se viu, bruscamente, no lado errado da história. Não entendeu que os árabes querem viver em nações constitucionalmente modernas, onde o poder da elite política não esteja acima da lei.


Abaixo o artigo mencionado:


Ricardo Musse: Por que a velha esquerda se ilude com Kadafi?

por Ricardo Musse*, no VioMundo.

A recepção na blogosfera de um artigo do respeitado militante comunista português Miguel Urbano Rodrigues, sintoma da dubiedade com que a Revolução na Líbia tem sido acompanhada por setores da esquerda, põe em cena a questão que dá título a esse post. Para iniciar essa discussão seguem algumas provocações:

1. Grande parte da velha esquerda prefere um Estado forte à democracia. Sua avaliação, presa apenas à dicotomia imperialista/ anti-imperialista, não demonstra a menor preocupação com o regime político. Para ela, pouco importa a forma pela qual o Estado é comandado – se por um patriarca, um ditador, um colegiado, um comando militar etc.

2. Esse eco da antiquada e deturpada tese que considera as regras da democracia burguesa como uma fraude resiste mesmo em situações, como a atual, em que a legitimidade do governante é desmentida por manifestações populares, greves gerais, insurgência proletária, em suma, pelo arsenal histórico da ação revolucionária.

3. A velha esquerda interpreta o presente com os olhos congelados no passado. Deixou de acompanhar as mudanças no mundo – para ela em geral desagradáveis. Assim, muitas vezes, analisa a conjuntura a partir de dados e situações de 30, 40 anos atrás.

4. O coronel Muamar Kadafi forneceu apoio material, logístico e guarida para a extrema-esquerda na década de 1970. OLP, IRA, Brigadas Vermelhas, ETA, Farc etc. foram acolhidos por ele.

5. Mas, desde o 11de Setembro, Kadafi mudou de lado, motivado pelo fato de que a bandeira do enfrentamento militar com os EUA foi parar nas mãos daqueles que considerava como o seu principal inimigo: o fundamentalismo islâmico. Seu giro foi completo. Os Estados Unidos e a União Européia receberam-no triunfalmente em recente reunião do G-20. Foi admitido no restrito círculo dos aliados preferenciais por conta do controle integral que exercia sobre o Estado e a população líbia e da bagatela de 300 bilhões de dólares (entre fundo soberano, reservas internacionais e fortuna familiar) que dispõe para investir em empresas do Hemisfério norte.

6. A velha esquerda sente ainda saudades da ultrapassada tática de confrontação militar com as forças pró-imperialistas. Trata-se de um procedimento que só se mostrou eficaz na Guerra Fria, quando o apoio da URSS possibilitou a movimentos insurgentes organizar verdadeiros exércitos alternativos, como foi o caso na China e em Cuba.

7. Exceto nesse período, a destituição do comando do Estado seguiu sempre o modelo ensaiado na Revolução Russa de 1905: manifestações de massas e greve geral.

8. A velha esquerda superestima os serviços secretos. Enquanto a mídia e o congresso norte-americanos questionam a CIA por sua incapacidade de fornecer informações sobre os acontecimentos no mundo árabe, ela sugere que a mobilização popular na Líbia foi desencadeada por essa agência norte-americana. O comando da CIA agradece.

9. A velha esquerda desconhece inteiramente a situação histórica e social do mundo árabe, para a qual nunca voltou os seus olhos. Sustenta que a revolução predomina no leste da Líbia por que aí se localizam empresas multinacionais. Mas se esquece de que é aí que se concentra a maioria da classe operária. Tampouco parece perceber que Trípoli, a última cidadela de Kadhafi, consiste no núcleo habitacional do funcionalismo público (em geral, composto por apaniguados do ditador) e de todos aqueles que sobrevivem parasitando o Estado líbio.

* Ricardo Musse é professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

7 comentarios

jozahfa disse...

Eu ando meio sem paciência para com a esquerda denuncista e chata. Depois de quase dez anos em salas de aula nas periferias de grandes centros urbanos eu quase quero que o povo sifu.

Tiago Mesquita disse...

Poxa vida, o Khadafi atirou com avião sobre sua própria população, o que dá pra falar depois disso.

Anônimo disse...

"Neste momento em que as pessoas, num comovente ato de catarsis coletiva, resolveram soltar todo o esquerdismo reprimido em oito anos de ditadura Lula".
É a disputa por hegemonia interna. Estão achando que deve ser feita no início do governo Dilma (pois ela não tem o carisma e o trânsito de Lula internamente).
Entendo o jogo, mas discordo da forma. Pelo menos poderiam ouvir representantes do governo em suas críticas, antes de dar armas para os nossos reais adversários.

Cláudio Freire

Lucia Coelho disse...

Carnaval é tempo de cártase... reflexão madura sem a bestialidade de manifestações retrogradas e infantis.
Lendo comentarios deste e outros blogs sujos, percebo que não pertenço a este mundo, tantos assuntos e ideias a serem discutidas e a manifestação é quase sempre miope, tacanha e plena de preconceito histórico.

Itárcio Ferreira disse...

Miguel, olha um texto que "rebate" as reflexões do Professor da USP

http://contextolivre.blogspot.com/2011/03/treplica.html

Abraços!

Sérgio Pecci disse...

Os Falcões que conhecem bem o mundo Árabe, deixemos com eles pois a solução já está dada : Guerra!

Miguel do Rosário disse...

Bem, quem tem usado o exército contra seu próprio povo é Kadafi. Ele é quem tem feito guerra, cego para o desejo de mudanças que varre o povo árabe. Os EUA fizeram guerra no Iraque. Na Líbia, é Kadafi quem ordena o massacre.

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