27 de fevereiro de 2009

A manifestação em SP, a comunicação universal e os milhões de mortos da ditadura

Aleijadinho: Anjo do Getsêmani, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos


O maior acontecimento político dos últimos meses, para o universo contra-informativo em que atuamos, é, sem dúvida, a manifestação organizada pelo Movimento dos Sem Mídia em frente ao jornal Folha de Sâo Paulo, em protesto contra 1) o uso da expressão "ditabranda" para qualificar o terrível regime militar vivido pelo Brasil de 1964 a 1984 e 2) a agressão estúpida da redação do jornal aos professores Maria Benevides e Fabio Comparato. Se você mora em São Paulo ou adjacências, compareça. Ou pelo menos se informe melhor do que está acontecendo, através do blog Cidadania. Cineastas! Estejam presentes à manifestação! E façam um filme sobre a história do MSM!

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Tenho, contudo, outros assuntos a tratar. Estou me formando na Faculdade de Comunicação Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Devo entregar, até o dia 10, minha monografia. O tema será a Estética da Comunicação. Usei uma vasta bibliografia, mas com foco na Crítica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant. Conto isto aqui porque acredito que o material por mim apurado, e linha de raciocínio que seguirei, diz respeito ao futuro da imprensa. Minha tese é de que a imprensa tradicional poderá muito bem sobreviver às intempéries tecnológicas, desde que tenha coragem de assumir o seu destino, que é dar um salto de qualidade e incorporar preocupações intelectuais superiores: artísticas, políticas e filosóficas, e deixar pra trás seu passado de pasquim cafona da direita. Não quero dizer com isso que a imprensa deve se tornar um grande caderno Mais!, aquele amontoado insuportável e cacete de lugares-comuns acadêmicos da Folha. Não falo de academicismos, ou de elitizar o texto. Ao contrário, falo de conferir valor ensaístico às reportagens, valor plástico às fotografias, valor literário a todo texto publicado, além de procurar estabelecer uma interação dinâmica e democrática com seus leitores - bem diferente da irritante mania de publicar só cartinhas "convenientes" à linha editorial. E nunca, claro, insultar seus próprios leitores da maneira grosseira como se fez com os professores que reclamaram do uso do termo "ditabranda" pela Folha de São Paulo.

Kant fala sobre a "comunicação universal", que somente a arte teria condições de fornecer. Minha tese é de que toda comunicação é uma forma de arte, incluindo a comunicação da imprensa de papel. O tamanho, o tipo, o corpo das fontes. As fotos e gráficos. O texto. Tudo deve ser (ou deveria ser) concebido segundo uma inteligência estética. Estetizando a imprensa, com inteligência e sentimento, poder-se-ia escapar das inevitáveis e cansativas interferências ideológicas sobre a redação, que só prejudicam a qualidade e a atratividade dos textos. Por outro lado, o debate político e ideológico poderia acontecer na imprensa de uma forma muito mais transparente e livre. Todos se interessariam em acompanhar os esgrimas literários entre escritores de credos distintos.

Por fim, uma imprensa de melhor qualidade artística serviria para libertar a literatura brasileira da gaiolinha de ouro em que se meteu, com suas panelinhas e festinhas e concursos manjados. Dando espaço para escritores exporem seus talentos (e pagando-os muito bem), como fizeram Machado de Assis e Lima Barreto, a literatura ganharia em densidade estética e política, tornando-se mais interessante e mais conectada à vida nacional. Sei que há escritores participando da imprensa, mas são poucos e são sempre os mesmos. Não há renovação, não há contestação, não há liberdade. Os textos literários que a imprensa publica podem todos ser lidos no Rotary Club de São Paulo. Conheço alguns escritores que sofrem terrivelmente com isso porque recebem quantias apenas simbólicas (quando recebem) pela colaboração e qualquer texto que exale um pouco mais de independência de espírito é vetado e o pagamento não é feito.

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Ontem eu li a Folha e fiquei estupefato com a ingenuidade, falta de acuidade científica e ausência total de sensibilidade antropológica de Fabio Comparato, que falou em "400 mortos" da ditadura militar. Sei que não é o momento de criticar o professor Comparato. Presto apoio integral a ele no caso da Folha, mas não posso me furtar a uma observação crítica. Esses 400 são apenas os mortos políticos oficiais, e os mais famosos. Dezenas de milhares foram mortos em todo país, fichados como delinquentes para evitar a conotação política, mas que, muitas vezes, não fizeram mais do que protestar contra um prefeito, um fazendeiro, um líder político qualquer. Isso é evidente, porque, se hoje, no Brasil, quando existem organizações de direitos humanos atuando, tanto no governo quanto na sociedade civil, imprensa livre, um Judiciário forte e independente, um Ministério Público, a polícia ainda mata milhares de pessoas por mês, imagina o que faziam nos anos de chumbo! Quantos trabalhadores rurais não foram mortos por capangas de fazendeiros, sem que nenhuma investigação fosse realizada, visto que a imprensa não repercutia e a sociedade se calava, com medo? Quer dizer que um trabalhador morto por um fazendeiro reacionário, em plena ditadura, não é também uma vítima da mesma? Essa contabilidade, portanto, é tremendamente preconceituosa e elitista. Como se apenas os garotos de classe média que morreram nas prisões do Doi-Codi devessem ser chorados pela opinião pública. A esquerda, às vezes, é insuportavelmente ingênua; neste caso, é quase uma estupidez, que agride ainda mais a inteligência por vir de um senhor covardemente atacado pela Folha de São Paulo e, por isso, imerso no centro da luta ideológica que ora se arma entre a direita, representada pela mídia e seus pitbulls, e a blogosfera.

Não, professor, não foram 400 mortos. Foram 400 mil mortos. Foram milhões de mortos, pois cada pessoa morta entre 1964 e 1984 era, de uma forma ou outra, uma vítima da violência da ditadura. Nem que fosse a violência peculiar de morrer sabendo que seus filhos e netos estariam vulneráveis à sanha assassina dos militares e dos milhares de empresários, jornalistas e fazendeiros que os apoiavam.

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Como eu disse: meu tio, Francisco do Rosário Barbosa, torturado e morto em 1981, não está na lista de 380 nomes de mortos e desaparecidos da ONG. Ele não era classe média, nem intelectual. Apenas um roceiro de Araguari tentando fazer a vida no Rio de Janeiro. Quantos Franciscos não contabilizados não existem pelo Brasil?

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Por fim, conclamo a todos a entrarem no blog do Marcelo Coelho e darem sua opinião sobre as palhaçadas que ele diz.

5 comentarios

José Carlos Lima disse...

A Folha está tentando colocar panos quentes, claro, puro jogo de cena para esvaziar a manifestação marcada para o próximo dia 7.

Se a Folha estivesse mesmo se retificando do seu ato publicaria imagens chocantes da ditadura.

Que se forme um dossiê da ditabranda com esta carta, imagens, documentos e se entregue à Folha que, pelo jeito, tá precisando recuperar a memória diante diante deste sintoma de amnésia.

Anônimo disse...

Miguel,

Belíssimo texto.

O intelectualismo (com uma pitada de provincianismo) é uma verdadeira praga, que infecta perigosamente muitos intelectuais e historiadores - no caso específico do regime militar, há alguns que chegam ao cúmulo de insinuar que foi apenas a partir do AI-5 que 'o bicho pegou', isso porque a classe média urbana e intelectualizada passou a ser alvo sistemático da repressão. Apenas juntaram-se aos campesinos e operários na 'lista negra' dos militares.

Anônimo disse...

O problema, a que todos devemos estar preparados para reagir, não é deslocar o termo "ditablanda", e seu oposto "democradura", do contexto da política da Espanha da década de 20-30, ou de sua retomada na discussão do governo Ongania na Argentina, como se tivesse sido discutido no caso brasileiro. Não é e não foi. A grosseria com a Maria Victoria e com o Fábio Comparato me parecem isso: grosseria e tentativa de desqualificação de dois professores de esquerda, certamente pelo que representam. E a análise da Victoria, em entrevista à Conceição Lemes me parece perfeita (veja no site do Azenha).
O grande problema é a tentativa de suavizar o registro histórico do golpe de Estado de 1964 e do regime militar, ditatorial e sangrento, que se seguiu ao golpe. Há outros indícios bastante visíveis. E por quê isso agora? Para preparar o terreno a uma desqualificação da Dilma Roussef, cujo passado de militante de esquerda todo mundo conhece. Ou se não conhece, passará a conhecer daqui até 2010, caso seja realmente a candidata do PT. E, pior ainda, possivelmente preparar o terreno ideológico e retórico a um eventual golpe, branco ou não, da direita PSDB-DEM, patrocinado por essa parte da imprensa, caso a inviabilidade eleitoral dos seus candidatos se demonstre verdadeira. É contra isso que todos os que não queremos mais esse tipo de retrocesso político no Brasil temos de nos manifestar. Por isso seria importante que a manifestação na porta da Folha fosse numerosa e bem organizada. Coisa que me parece improvável, dada a inexistente estrutura de organização do MSM. Mas é uma primeira vez, e se for necessário, outras virão. Em outros lugares e momentos. Temos de estar atentos.

Anônimo disse...

A hora é essa!
Por todos os motivos apontados no comentário preciso e lúcido da Vera,pelas razões expostas nesse e em vários blogs e sites que estão noticiando a Manifestação do Dia Sete de Março,mais que nunca é preciso protestar para que não se torne "normal" classificar crimes hediondos como "branduras".
Que cada um de nós faça a divulgaçào e apoie esse evento de todas as formas possíveis e imaginárias!
Façamos dele um marco na história de nossas lutas por uma pátria livre e soberana!
Estejamos atentos ao blog do Eduardo Guimarães para saber tudo sobre os detalhes e poder colaborar ao máximo.
Maria Lucia

Tocqueville disse...

Miguel,

Com pérolas como esta você perde credibilidade:

"Não, professor, não foram 400 mortos. Foram 400 mil mortos. Foram milhões de mortos, pois cada pessoa morta entre 1964 e 1984 era, de uma forma ou outra, uma vítima da violência da ditadura."

Afirmações dessa natureza, onde tudo se acomoda na imprecisão, inviabilizam o debate e, assim, fragilizam a democracia.

Pensamento crítico não distorce nem fatos nem dados. A progressão dos seus números demonstra mais que despreparo intelectual, mas uma dificuldade emocional em lidar com a verdade.

Sugiro que você teça as suas críticas com mais objetividade e aceite o fato que a ditadura militar no Brasil contribuiu para a morte de, exatas, 427 pessoas. 'Contribuiu' também é a palavra exata, pois deste total, cerca de centena e meia foram as vítimas dos grupos revolucionários armados (inclusive sob justiçamentos cometidos entre os próprios militantes).

Para você, parece-me, o mais importante é estar relacionado a um grupo fortemente articulado e construir esta fantasia coletiva de se estar lutando pelo Brasil. O pensamento ideológico substitui a liberdade do bom debate pelo massacre de uma visão sobre as demais. E assim, sente-se compelido a defender qualquer regime de esquerda, minimizando seus crimes.

Quer um exemplo? Faça como eu, um direitista, que não aceita mentiras nem opressões. Diga assim: "Que o inferno seja sua eterna morada, Pinochet. Suas 3.000 mortes envergonham qualquer democrata. Que sua alma vá para o inferno, Fidel. Suas 100.000 mortes envergonham qualquer democrata". E então, vc consegue dizer o mesmo?

De resto, parabenizo pela coragem em enfrentar Kant e pelo sucesso da conclusão de seu curso.

Abraços.

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