9 de dezembro de 2008

Anotações e considerações - Cultura e Política


Por João Villaverde

Na segunda-feira à noite, depois do expediente, corri para o auditório do Masp, na Avenida Paulista, para acompanhar o primeiro dia da série de três debates promovidos pela Folha acerca das comemorações de 50 anos de seu caderno cultural, a Ilustrada.

O primeiro debate é o que mais me interessava: Cultura e Política, com Maria Rita Kehl (psicanalista), Caetano Veloso, Cacá Diegues e Ferreira Gullar. Para mediar, o editor do caderno de política do jornal, Fernando Barros e Silva, também colunista de Opinião da Folha, ocupando às segundas-feiras a coluna de Clóvis Rossi.

Graças ao infernal trânsito de São Paulo, perdi as falas iniciais de Caetano, Maria Rita e Cacá Diegues. Quando cheguei, Gullar começara a falar.

Antes, que fique claro meu respeito à todos os debatedores. Minhas opiniões e divergências são de visões de mundo, de mudança com as coisas como elas estão. Nada tem a ver com a obra passada deles.

Para Ferreira Gullar, poeta e escritor surgido nos anos 50, historicamente ligado ao comunismo soviético - chegou a morar na URSS nos tempos de exílio nos anos 70 -, os tempos de cultura no Brasil são outros. Enquanto que nos anos pré-ditadura havia um grande debate nacional acerca de um país "novo", que se descobria, e nos anos da ditadura havia um "Inimigo" óbvio a ser escancarado e combatido, a partir dos anos 80 perdeu-se o engajamento.

Gullar falou muito que o Brasil da ditadura não era o mesmo que os militares expunham. "Havia fome, violência, favelas, desrespeito, tudo ficava escondido pela censura e pelos números de crescimento". Para ele, aquilo deveria ser mostrado de alguma forma, e a cultura estava encarregada desse papel.

De um certo modo, essa era a opinião dominante entre os convidados.
Não deixa de ser curioso que essa visão - que é dominante nas artes e na cobertura de cultura, bom que se diga - é um espelho da máxima de Fukuyama, de que, após o fim da União Soviética em 1991, tínhamos alcançado o "fim da história". É um espelho porque a frase não pode ser literalmente associada ao pensamento dos três artistas presentes (Caetano, Cacá e Gullar). Os três são críticos, em maior ou menor escala, da sociedade atual. Mas não deixa de ser sintomático esse pensamento reducionista de que, com o fim da ditadura militar, não há mais porque existir engajamento político nas artes. Quer dizer então que não há mais fome, violência, favelas e desrespeito no Brasil? A sucessão de Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula erradicou todos esses males do país. É isso?

Ferreira Gullar aproveitou a deixa para tratar de política contemporânea: "Não há, a exceção do Chávez na Venezuela, quem acredite em socialismo nos dias de hoje". Não pretendo entrar nos méritos do conteúdo exposto, mas na conotação social e comportamental colocada como pano de fundo. Discutir se Gullar está certo ou errado, se Chávez é bom ou ruim, se o socialismo é possível ou não, é indiferente. O contexto é outro. Ao pensar dessa forma - e não sofrer contestação dos debatedores - está se passando a visão de mundo hegemônica na classe artística de hoje: 1) os engajados do passado não vêm mais razão para esse engajamento na sociedade atual. 2) os artistas do presente já estão inseridos nesse mundo. Não querem, nem precisam discutir as coisas. Afinal, as coisas são como elas são. Não há porque mudar.

A tristeza desse pensamento é atestar para o sofrível nível das artes no Brasil atual. Se antes tínhamos artistas e pensadores de artes ao mesmo tempo - pessoas que, além de produzir, discutiam a produção dos outros e as condições sociais ao mesmo tempo - hoje não temos nem um nem outro. A arte é recebida acriticamente, porque foi assim concebida. E o movimento se retro-alimenta: não há obra engajada, que discuta os rumos da sociedade. Ao mesmo tempo, a crítica especializada - cada vez mais pulverizada, porém ainda fortemente centralizada nos cadernos culturais dos grande jornais - não propõe qualquer julgamento político àquilo que recebe. E o público - cada vez mais transformado em consumidor - busca cada vez mais alienação e abstração.

O que se vê, então, é um crescente processo de alocar às artes o papel de abstração.

Gullar tratou disso em sua fala. Disse que o artista tem a liberdade de escolher produzir uma arte política ou abstrata. No entanto, disse que a arte é eminentemente abstrata. É verdade. E seu ponto de vista pode ser entendido de qualquer forma. Mas o que parece coerente é que, mesmo política, a arte antes é abstrata. Se for direta não é arte, mas panfleto. E a arte política reside justamente na crítica do sistema e do status quo por meio da abstração reflexiva.

E falando em reflexão. Qual foi o último grande momento de reflexão acerca dos rumos do país e da sociedade mundial proposto pelas artes? A Bienal do Vazio? O Ensaio sobre a Cegueira? Paulo Coelho? Mallu Magalhães?

Aí entramos no ponto que iniciou o verdadeiro debate (até então se tratava das falas iniciais dos convidados). A questão do individualismo e da descentralização do consumo de cultura graças ao desenvolvimento tecnológico.

Cacá Diegues contou de um amigo que, voltando de viagem ao Vietnam, comprou uma cópia pirata de "Tieta" - filme de Diegues - em DVD. Ele disse adorar a idéia de ter um filme piratiado e comercializado no Vietnam. Disse apoiar a iniciativa. Maria Rita Kehl lembrou que o rapper Mano Brown gostava de dizer que nada o deixava mais feliz que saber que seus cds eram vendidos por ambulantes nas estações de metrô em São Paulo. Caetano aproveitou a deixa para dizer sobre as enormes possibilidades abertas pela internet, que vem destruindo o tradicional modelo da indústria fonográfica. "Já fiz música para poucos ouvirem, já passei pela fase pesada da indústria cultural, e agora estou vendo uma abertura total", disse.

Para Cacá Diegues é questão de tempo - entre cinco e dez anos - para que não haja mais produção física dos meios de distribuição de filmes. "Poderá se passar filmes de Miami, Los Angeles, para a Avenida Paulista por meio de linhas telefônicas. Nesse momento, o custo de exibição será zero e o produto vendido será o agregado: a pipoca mais cara do mundo, a Coca-Cola mais cara do mundo, a camiseta, o boné, etc.".

A palavra chave dos novos tempos, para os três artistas, é democratização. É a democracia na produção, na distribuição e no acesso à todas as formas de cultura. De fato, é um sinal dos tempos contemporâneos. É assim com cultura, é assim com jornalismo. Com os blogs, por exemplo, a informação e a opinião é descentralizada da figura dos grandes jornais, e o debate é instantâneo, por meio dos comentários. Há enorme interação entre o produtor e o consumidor da notícia. A mesma coisa acontece com a cultura.

"O mercado continua sendo importante. Antes, importante para a indústria. Agora, importante para a figura individual do produtor de conteúdo artístico", disse Caetano. Para Ferreira Gullar, os homens são iguais em direitos, mas diferentes em qualidades. "Ninguém é Pelé. O Oscar Niemeyer é um gênio, mas se não fosse pelo pedreiro, o desenho não sairia do papel. Em casa é a mesma coisa. Não fosse a comida da dona Maria, eu não faria minhas poesias". Foi aplaudido.

Maria Rita Kehl pegou o microfone: "A questão é: quem vai querer ser o Niemeyer e quem vai querer ser o pedreiro?". Poucos, mas fortes aplausos localizados no auditório.

Alcançaram o consenso por meio da "cultura de nichos", isto é, da arte sendo feita pensando em grupos específicos, sem mais a pretensão de alcançar as massas.

Aí reside boa parte do mundo que vivemos hoje. Há nichos espalhados por toda a parte. Na política há aqueles que buscam os grandes jornais. Há aqueles que buscam os blogueiros de direita. Os blogueiros de esquerda. Os blogueiros grosseiros. Os blogueiros educados. Os blogueiros intelectuais. Os engraçados. Os músicos. Os blogs de teatro. Os blogs sobre séries de televisão americana. Os blogs de novelas. Os blogs de celebridades. Os blogs jurídicos. As revistas financeiras. As revistas de celebridades. As rádios de música clássica. Os sites de rock indie.

A televisão à cabo nso Estados Unidos dos anos 90 já trazia um pouco do que a internet oferece hoje. Diversificação do conteúdo, atendendo a fatias específicas de mercado, sem rabo preso com índices de audiência, mas com a publicidade, que também é localizada, uma vez que se mapeia e se conhece perfeitamente o público consumidor.

Os produtores de conteúdo interagem com seu público consumidor. A interação gera sintonia de discurso, criando uma fórmula que emula aquilo que se quer com os limites impostos pelo consumidor. Aos poucos, aumenta-se o debate, mas permanecem os gostos e costumes. A arte industrial, que fala às massas, ainda resiste com pontos específicos em determinados campos, é claro. O filme "Batman, o cavaleiro das trevas", por exemplo, está perto de alcançar um faturamento de um bilhão de dólares apenas de bilheteria, ao redor do mundo. Mas está se verificando uma falência de um modelo, anterior mesmo à indústria da cultura, que é o da arte que instiga, que insere o novo, aquilo que ninguém estava acostumado a ver e pensar, criando novas reflexões e novos caminhos. Isso está cada vez mais difícil de ser feito.

Até porque, os pontos mais interessantes do mais recente sucesso de cinema (Batman) - a anarquia social e o maniqueísmo ilusório entre homens - foram solenemente ignorados frente à morte do ator que interpreta o coringa (Heath Ledger) e aos efeitos especiais introduzidos pelo filme (a cidade computadorizada).

O interessante que se formou no debate da Ilustrada esteve, o tempo todo, no subterrâneo. Mesmo nas horas de opiniões distintas, não faltou a tranquilidade habitual pela maturidade dos debatedores e pelo evento em si. Afinal, antes de debate, tratava-se de um dos três grandes dias de comemorações de 50 anos da Folha Ilustrada.

Mas o debate ajuda a fomentar algo que está sendo esquecido. Perguntas colegiais e existenciais clichês: Onde estamos e para onde pretendemos ir.

3 comentarios

Miguel do Rosário disse...

Muito bom o texto, João. Coincidentemente combina com o texto que estava publicando quase que simultaneamente. Gosto muito do Ferreirão, mas acho que ele ficou um tanto amargo, no estilo desses ex-comunistas. Passou de um duro stalinismo soviético para uma aceitação completa da ditadura midiática. O cronismo político dele é bem sofrível. Ele é muito corajoso e brilhante enquanto crítico de arte, mas lhe falta densidade politica e aplicar um pouco mais de poesia em sua análise estética.

Mudei o seu tag de Folha para mídia, ok? Abraço.

João Villaverde disse...

Obrigado pelo comentário elogioso, Miguel.

Sobre o Ferreira Gullar, lembro do famoso debate promovido pelo Jornal do Brasil no fim de 1977, com ele, Glauber Rocha, Darcy Ribeiro e o Mario Prata. Todos recém-chegados do exílio.
Um debate fenomenal sobre o Brasil daquela época, o Brasil que se perdeu a partir de 64 e o Brasil que se projetava. Falaram do mundo, do comunismo, capitalismo e das artes.

Ele mudou muito nesses 30 anos.
Um abraço

Anônimo disse...

Gostei do texto, parabéns!
Existem coisas que são muito chatas nas pessoas:
Ex-fumante que de uma hora para outra começa a apregoar os malefícios do cigarro, e vira um censor.
Outra que me incomoda é ex-comunista, o Paulo Francis era um claro exemplo de comunista arrependido.
O Brasil não mudou quase nada em relação aos seus problemas sociais, pelo contrário.
A juventude, da qual fiz parte, era um arremedo de jovens querendo fazer política, mas sendo coagida pelos nossos pais, que tinham medo que os filhos "sumissem".
Hoje somos um País de cordeirinhos, sem lideranças que possamos confiar.
Nos decepcionamos com vários líderes.
Gostaria de ler uma análise sobre o discurso do Lula, no dia de ontem, quando de camisa vermelha, calça branca e boné(única preocupação do Jornal da GloboNews), foi um ESTADISTA, me fez sentir orgulho de ser brasileiro.

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