4 de dezembro de 2008

Arquivo: A maldição de Virgulino

(texto antigo, de 2003 ou 2004)

Colunistas do Globo, Estadão e Folha, e de outros grupos de mídia, estão relacionando a morte do repórter com a suposta agressividade dos movimentos sociais, no caso do MTST

Por Miguel do Rosário

Milhares de pessoas são assassinadas por ano, no Rio em São Paulo, a ponto de um conceituado instituto ter divulgado números que diziam que morria mais gente por aqui que em Israel e Palestina. A maior parte destas mortes ocorrem na periferia. São jovens pobres, em geral mulatos ou negros, que não chamam a atenção da mídia. A importância do crime é hierarquizada de acordo com a classe social da vítima. Até aí novidade nenhuma. Agora quando um assassinato é utilizado, acintosamente, para fins ideológicos, como eles estão fazendo com a recente morte do repórter fotográfico Luiz Antônio da Costa, da revista "Época", aí temos um fato que extrapola os limites do racional e serve de demonstrativo da irracionalidade essencial que compõe o pensamento capitalista. Só para lembrar: Costa levo um tiro durante uma confusão entre polícia e sem-tetos do acampamento Santo Dias, em São Bernardo, que ocuparam (ou invadiram?) um prédio pertencente à Volkswagen.

Colunistas do Globo, Estadão e Folha, e de outros grupos de mídia, estão relacionando a morte do repórter com a suposta agressividade dos movimentos sociais, no caso do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Colocaram num mesmo saco, utilizando associações bastante forçadas, a ocupação dos sem-teto com as "invasões" (ou ocupações?) dos sem-terra e até com a pancadaria desta semana no congresso. Até a ameaçada greve dos juízes teria como causa a permissividade do governo para com os dissidentes.

Critica-se a ânsia e a pressa das massas de sem-terra em realizar a reforma agrária e o fato de miseráveis trabalhadores urbanos também comporem esta massa. Como se o povo não tivesse já esperado séculos por mudanças. Uma criança com fome morre em poucos dias, o que explica a pressa de seus pais para fugir da miséria. Como se os pobres da cidade não viessem todos de áreas rurais. Como se um cidadão de um país com extensões continentais, não tivesse o direito de sonhar sair do inferno caótico e violento da cidade - onde reside num barraco minúsculo e sofre com um sistema de transportes ineficiente e desconfortável - e ter o seu próprio pedaço de terra para plantar e viver em harmonia com a natureza.

As elites brasileiras - encimadas por uma casta de latifundiários, grandes empresários e donos de grupos de comunicação e apoiadas, explicita ou silenciosamente, por uma enorme gama de classes médias - começam a cobrar ação de seus intelectuais orgânicos, mercenários do pensamento, que atropelam a razão, a ética e a justiça com argumentações confusas, dúbias, complicadas, em prol do direito da propriedade e da falta de direito dos movimentos sociais. Em suma, defende-se o direito da propriedade, em detrimento dos direitos do homem. Citam capítulos da constituição que tratam da propriedade, mas rasgam as páginas que falam dos direitos do cidadão à moradia, à alimentação, à educação e ao tratamento médico.

Estes raciocínios nos fazem entender porque o humanismo e o cientificismo do renascimento tiveram um caráter tão revolucionário no fim da idade média. É que os privilégios de classe e a injustiça social são indefensáveis e a razão, quando comprometida simplesmente com a ética e com a verdade, se torna extremamente incômoda para os donos do capital, comprometidos com a manutenção do sistema, contrários a qualquer mudança.

A histeria, a indignação, que se observa entre as elites quando vêem que as massas estão se organizando e buscando maior visibilidade e conquistas concretas para suas vidas é o contra-ponto para o entusiasmo, a alegria, o orgulho, o sentido de liberdade e luta, vivido pelos que participam dos movimentos sociais, fugindo desta forma a uma existência degradante, desesperançada e repleta de humilhações.

A discussão nacional em torno da reforma agrária, e agora (como MTST) da reforma urbana, está trazendo à tona novamente o monstro do reacionarismo, ainda extremamente forte no Brasil, e que está presente não só nas elites, mas enraizado em todas as classes sociais, inclusive no padeiro, no taxista e no pequeno proprietário de terra. Esta ideologia, parte importante do complexo ideológico que forma o pensamento capitalista, tem um grande público no Brasil e os grupos de comunicação a exploram ao máximo para difundir e multiplicar este tipo de idéias, que vendem tão bem, em assinaturas e publicidade.

A estratégia inicial da direita conservadora, proprietária dos principais meios de comunicação, no que tange à política editorial em relação ao governo Lula, era de "isolar" o presidente das bases populares, através da disseminação exagerada de todos os atos conservadores de sua equipe. As ações políticas de cunho social ainda têm sido constantemente minimizadas, como o plano de tratamento de doença mental ou o aumento dos recursos para a agricultura familiar. Enquanto isso, as ações mais impopulares eram colocadas sempre na primeira página. Eis aí o interesse e a enorme projeção política que a mídia deu para os "radicais" do Partido dos Trabalhadores, o que constituiu uma destas enormes ironias da história. Políticos que ganharam fama e prestígio combatendo veementemente o capitalismo e suas armas midiáticas obtiveram a oportunidade de se expressarem nos maiores meios de comunicação do país, o que, para um político, equivale a milhões de reais em panfletos, cartazes e comícios. Se eles não utilizaram bem o espaço, aí é outra história.

Esta estratégia da mídia, porém, caiu por terra quando o Lula colocou o boné do MST. A enorme repercussão que este singelo ato ganhou em todo país adveio do fato de que a estratégia da mídia de transformar Lula num novo Tony Blair não estava dando certo. (Mesmo Emir Sader, eminente intelectual da esquerda, em seu último artigo publicado na Agência Carta Maior, em que compara Lula ao dirigente britânico, admite que as diferenças são muitas e fundamentais. Blair começou seu primeiro dia de governo atacando duramente os movimentos sociais ingleses e alinhou-se organicamente aos ultra-conservadores da Casa Branca, a ponto de ficar conhecido como poodle de Bush).

A estratégia mudou. Agora a mídia começa a assumir uma postura mais ostensivamente agressiva em relação ao governo Lula, acusando-o de ser aliado dos movimentos sociais - para a desorientação de alguns setores da classe média leitora de Folha-Estadão-Globo, que estava acreditando piamente na suposta traição de Lula para com as causas sociais. As declarações de confiança no governo feita por João Pedro Stédile e outras lideranças de sem-terra também obrigaram a mídia a mudar a sua estratégia de qualificar Lula e equipe como "novos conservadores". A Folha de São Paulo chegou a qualificar o PT como partido de centro e a sugerir que o momento seria propício para o surgimento de um novo partido de esquerda, para abrigar os dissidentes, o que é uma estratégia maquiavélica para desagregar uma esquerda já bastante desunida e como se já não existissem partidos de esquerda bastante radicais, a começar pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), aliado firme do governo Lula. Isso sem falar do PSTU, PCB, etc.

A miopia das elites e da imprensa quando julgam o papel destes movimentos sociais é impressionante. A burguesia paulista vive apavorada em seus condomínios de luxo e carros blindados. Assaltos e assassinatos ocorrem aos milhares, diariamente, causando mortes, ferimentos, traumas, em todo o corpo social. Quando um movimento social, como o MTST, ocupa um prédio abandonado, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, Estadão e Folha, representantes máximos das elites econômicas do estado, reagem como senhores feudais vendo a plebe se aproximar perigosamente de seus castelos. Não enxergam que estes movimentos sociais são o único contra-ponto ao crime organizado, única maneira de canalizar os ressentimentos das massas oprimidas que não seja o caminho do crime.

Certamente, é angustiante, para as lideranças que representam as elites, encarar de frente as lideranças populares, e ouvir suas demandas, mas é muito melhor dialogar com um MST, com um MTST do que com uma Farc, um Hamas, um ETA, ou mesmo uma Al Qaeda. Sem querer julgar nenhum destes grupos citados, a estratégia anti-militarista dos movimentos sociais brasileiros é um exemplo para todo o mundo. Movimentos como o MST e MTST permitem a um grande número de pessoas o acesso a formas de organização, a leituras e idéias, que não podem ser desprezados. O MST não é só um grupo de invasores. Eles têm escolas, cooperativas, postos de saúde, formam lideranças esclarecidas, dão esperança e sonhos para gente pobre e esquecida. Isto tem uma importância social profunda, pois constitui uma enorme força moralizante entre os setores mais pobres, que antes só conhecia um outro meio de fugir à sua condição: o assalto à mão armada, o sequestro, o tráfico.

Entretanto, constatamos que, para o pensamento conservador, o berro alucinado do criminoso é um som muito mais agradável do que o clamor revolucionário das massas. Isso porque, para o criminoso, eles têm uma resposta pronta - a bala e uma cela infecta - e o apoio de todas as classes para com estes (eficientes?) meios de combater o crime. Mas não sabem como lidar com as educadas lideranças populares (houve um tempo em que não haviam dúvidas - bala e cadeia para todos). Não consegue vender com total sucesso para as classes médias - sempre divididas entre a massa e a elite - a idéia de que o certo é "impor" a lei a qualquer preço, ou seja, reprimir, reprimir e reprimir. Isto porque, na verdade, a constituição não fala especificamente em matança e repressão e também porque a mesma lei também tem (constrangedoras) passagens que legitimam a rebelião social. Com isso, estes movimentos sociais vêm se tornando desesperadamente incômodos e perturbadores.

Mas tudo isso mostra que a história brasileira está viva. Na luta dos sem-teto em São Bernardo está sendo escrito o destino do povo brasileiro. As profundas mudanças sociais tão sonhadas pela gente de bem que já pensou este país não vão acontecer de cima para baixo, quer dizer, o Estado não tem condições de resolver tudo. Não é xingando ou elogiando o Lula que contribuímos para o desenvolvimento do país, e sim participando destas batalhas travadas diariamente, nos campos, nas cidades, nas páginas dos jornais.

Finalizando, esperamos que o poder público e a sociedade brasileira saibam lidar com movimentos como o MTST e o MST com inteligência e visão histórica, evitando sinalizar à população pobre que a única maneira de fugir da miséria continua sendo o exemplo de Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião.

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