11 de dezembro de 2008

Um homem quieto bebendo seu uísque

Hoje uma senhora querida, amiga minha, pediu-me para mudar de assunto. Disse que estou obcecado em defender Lula a qualquer preço e tenho me repetido. Respondi que iria dedicar um post a este assunto, explicando-lhe porque não posso seguir-lhe a sugestão.

"Quem luta por Deus, é por si mesmo que luta"
Alcorão

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo"
Fernando Pessoa


Imagine um homem quieto, num canto do bar, bebendo seu uísque. Se preferir, imagine-o bebendo uma cerveja. Ele está muito emocionado, à beira das lágrimas. Há mais de dez anos que não fuma, e mesmo assim pede um cigarro ao garçom, acende-o, e mira a fumaça circunvolutear à sua frente. Anoitece no centro do Rio. Em que o homem pensa? Em seus sonhos fracassados? Em seu irmão covardemente assassinado há vinte anos? No país? Num amor antigo? Talvez lembre de um poema muito bonito. Numa canção. Pode ser também que lamente a sorte de seu time de futebol, que acabou de ser rebaixado para a segunda divisão.

De fato, independentemente do que pensa este homem, o verdadeiro objeto de seus pensamentos é ele mesmo, e a civilização. Nas mentes mais simples, lutam todas as forças metafísicas do universo. Quando um recruta nazista, em 1944, recusou-se a fuzilar uma criança judia, mesmo sob o risco dele mesmo ser morto, em seu espírito estava em jogo o destino da humanidade. Da mesma forma, numa democracia, quando os americanos optam por Obama ou McCain, não está em jogo somente uma vitória ou derrota partidária. Por trás de cada escolha política, estão em jogo símbolos e arquétipos poderosos. Subestimar isso é apequenarmos o homem, apequenarmos a democracia, apequenarmos nosso destino e função enquanto indivíduos e partícipes de uma civilização e uma história.

Há gente que passa a vida preocupando-se apenas com seu excesso de peso. São obcecados por dietas e novas tecnologias que permitam o emagrecimento rápido. É saudável que as pessoas emagreçam, que evitem problemas de obesidade, mas eu sempre observei que a falta de uma metafísica maior, a ausência de sentido em suas vidas, constitui o problema maior. Como no conto Alienista, de Machado de Assis, para elas, todos são loucos. Para elas, enroladas em seus mesquinhos desesperos, o pensar a política e a civilização é um ato de loucura.

Aí voltamos à política. Não há civilização sem política, e não há política sem escolhas e sem guerra. Quando os gregos venceram os persas no século V antes de Cristo, ali estava em jogo o destino da civilização ocidental. Os gregos tinham a filosofia, a democracia, o respeito pela vida e pela liberdade; os persas tinham o despotismo, o misticismo, e o desprezo pela vida dos que não fossem membros da elite.

Nossa civilização é resultado das escolhas políticas que fizemos. O que foi a revolução francesa senão uma consequência das ironias geniais de Voltaire? Há tempos, todavia, em que é bem fácil escolher entre o certo e o errado. Nos anos de chumbo, era fácil. Ser contra a ditadura tornou-se um "clichê", uma obrigação. Na democracia, porém, os contrastes se atenuam. As escolhas, porém, não deixam de ser importantes, não deixam de afetar, como qualquer política, nosso destino enquanto civilização.

Esse linguajar grandioso soa um pouco ridículo, eu sei. Os homens nunca respeitam o que vêem muito de perto e, numa democracia, os líderes são, cada vez mais, pessoas aparentemente comuns, com defeitos inúmeros. Tão diferente da monarquia, onde temos homens acima dos mortais! Abraham Lincoln, por exemplo, pai da democracia americana, venerado hoje como um ícone mundial, era um pobre filho de lenhadores, cheio de tiques e vícios plebeus em sua maneira de falar, e, por isso, foi duramente discriminado, em sua época, pelas elites e classe média americana.

Qual o sentido da vida? Ser magro? Ter filhos? Sim, esses podem ser objetivos. Mas o que me incomoda é ver as pessoas querendo dar tudo a seus filhos sem preocupar-se com as outras milhões de crianças de seu país. E ainda se arvoram católicas! Ainda se arvoram cristãs! Vão à igreja todos os domingos, rezar! Rezam para quê, meu Deus! Jesus não mandou ninguém rezar aos domingos! Jesus pediu que as pessoas amassem uns aos outros e lutassem por justiça. "Não vim trazer a paz, e sim a espada", disse Jesus, ao voltar do deserto, onde combatera e vencera Satanás. Como se preocupar com as outras crianças? Fundando Ongs? Fazendo doações no Natal? Doando para o Criança Esperança? São ações mais ou menos legítimas, mais ou menos bem intencionadas, mas a melhor forma de se ajudar as crianças brasileiras é através da política.

Em primeiro lugar, não menosprezando a política. Não subestimando o poder transformador da política. Os mesmos jornais que apoiaram e sustentaram a ditadura militar, vem fazendo campanha, desde a redemocratização, contra a política e os políticos, repercutindo e ampliando qualquer crítica genérica ao Congresso, ao Senado, ao Executivo. A imprensa, depois de duas décadas de silêncio obsequioso em relação aos governos, tornou-se um verdugo implacável, sem a mínima compreensão das complexidades e fragilidades inerentes a uma democracia recém-formada, ainda em processo de consolidação.

Eu defendo o governo Lula não por ser obecado, mas porque acredito, segundo meus ideais, que ele é a melhor opção, sobretudo se comparada à outra alternativa (o PSDB), para a libertação do povo brasileiro. São palavras grandiosas, mas somos um país grande, com problemas grandiosos, e prefiro pensar grande e usar termos grandiosos do que pensar pequeno e usar palavras mesquinhas. A vida, enquanto momento único, enquanto um olho da consciência universal que se abre e ilumina a escuridão, é grandiosa. Meus sonhos e ideais, portanto, são grandiosos. Meu pé, porém, está bem plantado no chão, e acredito, por princípio, no processo democrático. Não acredito na democracia, todavia, com inocência e boa fé. Não defendo a democracia porque penso, ingenuamente, que ela nos levará, automaticamente, a um mundo melhor. Defendo a democracia enquanto uma plataforma de organização que pede, e pede muito, a participação civil, não apenas o voto, mas a militância intelectual, o debate constante.

Defendo Lula não por causa do Lula, ou não somente por causa dele, mas porque acredito que a democracia requer participação, de alguma forma. O homem quieto, bebendo seu uísque no canto do bar, está participando da democracia. Ativamente. Sabe porque? Porque, se a democracia for questionada, se algum engraçadinho atiçar os quartéis para ferir a democracia, o homem quieto irá engolir seu uísque rapidamente e sairá a rua, para protestar, aos gritos, usando a sua força física e a energia acumulada em anos de quietude e paz proporcionados pela democracia, para lutar por aquilo no qual acredita.

Defendo o Lula da mesma forma com que defenderei Dilma Rousseff, porque defendo um governo que defenda os trabalhadores, que defenda o Estado, que aplique programas sociais. Entendo que isso nem é mais uma discussão entre direita e esquerda, entre capitalismo e socialismo, mas entre barbárie e civilização. Entendo que um governo que se esforce para dar solução à miséria, aos baixos salários, e a recuperar o Estado brasileiro, é um governo civilizador, que significará um futuro mais decente e promissor para milhões de brasileiros.

Muitas pessoas da classe média, que já viveram tempos melhores durante a ditadura militar, não tem a consciência da mudança que experimentamos nos últimos anos. Não sentem essa mudança em seus corações, que se tornaram frios, egoístas. Elas acham que não são egoístas porque amam seus parentes, mas o amor exclusivo aos parentes não é um amor cristão. É um amor fácil, sanguíneo, passivo, bobo. O verdadeiro amor, cristão, humanista, é o amor pela humanidade, conforme pregaram Cristo, Buda, Maomé e todos os grandes líderes. Não foi por outra razão que Cristo, ao ser abordado por sua mãe enquanto ele participava de uma caminhada, respondeu-lhe que não lhe conhecia, e que sua família eram seus amigos e irmãos.

Todos os institutos de pesquisa mostram que dezenas de milhões de brasileiros melhoraram de vida. Outros milhões conseguiram empregos. Os segmentos mais desfavorecidos do Nordeste brasileiro vem crescendo a quase 20% ao ano. Revistas e jornais internacionais relatam as notáveis mudanças operadas na sociedade brasileira. Um renomado instituto internacional sinalizou que o Brasil terá, em menos de 20 anos, uma das três ou quatro maiores classes médias do planeta, depois de EUA, China, e Índia. Mas os setores decadentes da classe média brasileira não sentem essas mudanças porque só enxergam o próprio umbigo. Se a sua vida pessoal não mudou, então nada mudou para elas. Se a sua vida pessoal piorou, se elas se tornaram mais velhas, mais obesas e mais doentes, então o país também piorou.

Pior, no entanto, do que a despolitização de vastos setores da sociedade, é a militância pela despolitização, é a defesa da alienação, através do menosprezo, silencioso ou não, por aqueles que se expõem publicamente, sempre sob o risco de errarem, para defender ou atacar políticas públicas. Esse desprezo toma ares de preconceito aristocrata, como se a política fosse um assunto plebeu.

O homem quieto bebendo seu uísque talvez, enfim, não esteja chorando de tristeza. Talvez chore de raiva, esse sentimento tão humano, demasiadamente humano, certamente mais digno que uma pachorrenta, medrosa e cúmplice perplexidade perante as injustiças.

23 comentarios

carlos disse...

grande do rosário,

é isso amigo.
apostemos, pois, no processo civilizatório. é a única saída.
parabéns.

João Villaverde disse...

Artigo maravilhoso, Miguel.

Anônimo disse...

Assino embaixo, do primeiro parágrafo ao ponto final, Álvaro Marins.

Anônimo disse...

Perfeito!Tambem defendo o governo Lula por ser o único Presidente a olhar pelos nordestinos.Por olhar pelos mais pobres.Se Deus quiser Dilma dará continuidade ao governo deste grande Presidente homem que é Lula.

Anônimo disse...

Magnífico. Parabéns.

VERA LUCIA PASQUALETTO disse...

Miguel,

Como sempre trazendo clareza a todos.
Que estas palavras pudessem ser lidas por muitos....
Mas estamos chegando lá.

Brilhante!!!!

Anônimo disse...

Puxa, você conseguiu sintetizar um sentimento de muitos que também defendem nossa democracia em que pesem os seus maus passos, que ainda podemos corrigir. Parabéns.

reginacarioca disse...

Essa senhora querida sou eu. Queria uma resposta assim, apaixonada. Confesso que estava com saudades dessa sua palavra.Mas confesso tb que não esperava tanto. Foi demais!!!
Retiro o que eu disse. Vou rever meus conceitos. valeu.Parabéns!!!
regina

Anônimo disse...

Pela resposta da senhora querida, fica evidente então a beleza do texto...conhecer é aprender
e mudar é conhecimento!
aplaudindo daqui...realmente um belo texto

Unknown disse...

Escreve Maria Lucia AragãoMiguel, eu pensava que o conhecia bem, que já sabia o suficiente sobre o seu potencial como ser humano e sobre a sua capacidade intelectual, mas que pretensão a minha. Você é dessas pessoas que nos fazem buscar no mais profundo de nós mesmos aquilo que trazemos adormecido ou anestesiado, por covardia e/ou comodismo. Eu lhe agradeço por me convocar a renascer, mostrando-me o quanto se pode fazer em benefício dos que precisam, mais do que eu, de cuidados e ações políticas radicais. Seu artigo é mais do que belo, é humano e é cristão no sentido radical da palavra. Obrigada.  

Anônimo disse...

Grande artigo, Miguel! Não há como não concordar com o que você disse.

Anônimo disse...

Ô, Miguel, esse seu texto me deixou emocionada. Disse tudo o que eu penso e não sei pôr em palavras. Apesar de tão diferentes - geração, sexo, história de vida, formação -, somos irmãos de pensamento. Obrigada.

Anônimo disse...

Miguel, emocionei-me com seu discurso político. Um discurso pela vida humana plena. Você é um político na verdadeira acepção do termo. Muito obrigada pela comunhão que me proporcionou.

Anônimo disse...

Lamento apenas a sorte de grande parte dos brasileiros que estão separados de forma vil de textos como este do Miguel.

Em contrapartida são bombardeados com os textos idiotas de figuras como Arnaldo Jabor.

Anônimo disse...

Você é uma pessoa muito especial Miguel! Comovente esse texto!

Miron disse...

Definitivamente, sou seu fã. Li seu texto em voz alta para minha prole. Miron

Itárcio Ferreira disse...

Fiquei emocionado com seu texto, vou divulgá-lo ao máximo, sem palavras, parabéns!

Miguel do Rosário disse...

Estou imensamente grato pelas palavras de vocês. Não canso de dizer que elas são o melhor cachê do artista. Abraço a todos.

Anônimo disse...

poxa, miguel, esse texto está, como diziam os antigos, supimpa!

Miguel do Rosário disse...

Este comentário foi removido pelo autor.

Anônimo disse...

muito bem, o importante é pensar.

Anônimo disse...

Excelente discurso. Saiba que, quando escreve um texto como esse, também está fazendo um grande favor ao seu país e estimulando reflexão, raciocínio e debates.
Como destacou, só os atrasados ainda enxergam as coisas como "direita" e "esquerda". Esse tempo já passou.

karla disse...

O texto é bom, mas você próprio, Miguel, denuncia nele um artifício em nada genuíno. Esclareço: este texto em algo se assemelha ao que se ouve nos palanques dos nossos políticos e nas bravatas e tentativas de cativar a platéia do próprio Lula. Claro, guardadas as proporções no que diz respeito aos argumentos e à expressão.

Escrevo isso sem medo da sua própria reação ou da resistência de seus admiradores. Afinal, notei que há um comentário que foi suprimido pelo autor. Espero que não o tenha feito pelo motivo que me ocorre agora. Ademais, os comentários que ficaram são todos concordantes e elogiosos. O que acho razoável. O que dizer se o seu texto foi capaz de promover a conversão da “querida senhora”? Todavia, acredito que essa unanimidade não seja de todo desejável por alguém capaz de escrever como você. Essa comunhão de opiniões soa um pouco como falta de idéias e de ânimo...
Fora isso, não pretendo, aqui, entrar nos méritos e nos deméritos dos governos Lula, FHC...

Mas não posso deixar de registrar que falta HUMOR em seu texto, Miguel. E que falta o VERDADEIRO humor em Lula.

Bem, talvez o encontremos, um pouco, em Arnaldo Jabor, caro comentarista Wilson Cunha Júnior.

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