9 de outubro de 2009

Discutindo no botequim

No sábado passado, ocorreram várias aberturas de exposição no centro do Rio. No Largo das Artes, na Durex, no Barracão Maravilha. A melhor de todas, porém, aconteceu na esquina da rua do Senado com a Riachuelo. O sobradão colonial, convertido em ateliê há cinco anos, finalmente foi aberto ao público, com exposição de diversos artistas de primeira linha. Para mim, foi um alívio ver que ainda existe uma arte autêntica, generosa, romântica, preocupada mais com o belo artístico do que com o conceito. O artista Alê Souto, que também participa da exposição, foi um dos responsáveis pela articulação que resultou na abertura do espaço.

O local ainda tinha uma vantagem, um bar em frente que vendia skol garrafa por 2,50 reais. Eu encontrei alguns amigos sentados à uma mesa, ocupei uma cadeira e começamos a conversar. Alguns reclamavam da decadência da área, ao que eu contrapus que todos os bairros "artísticos" ou "boêmios" das grandes cidades tinham sido decadentes, e por isso mesmo atraiam artistas, estudantes e trabalhadores pobres, em busca de aluguéis baratos e baixo custo de vida. É justamente o que a Lapa ainda oferece, apesar do corredorzinho semi-luxuoso que surgiu no quarteirão entre os Arcos e a Gomes Freire. Uma enorme barata, neste momento, surgiu na parede, bem diante de nossa mesa, para dar sua opinião sobre o tema. Tirei os sapatos e ataquei-a, mas ela, que devia ter frequentado curso de kung-fu na infância, conseguiu se desviar no último milésimo de segundo e escapou, e sumiu.

O papo entrou no tema Olimpíadas. Os cariocas, naturalmente, tem falado muito sobre as Olimpíadas. A opinião mais confortável, ao menos entre a classe média, é que foi um acontecimento péssimo para a cidade, que irá resultar em disperdício de dinheiro público e corrupção. Eu sinto, todavia, que grande parte fala isso da boca pra fora. Na mesa onde eu estava, conforme eu ia dizendo, havia as duas correntes. Uma, que achava que as Olimpíadas seriam um desastre, outra que a enxergavam como um fato positivo. Eu engajei-me logo entre os otimistas, citando informações que somente um frequentador da blogosfera possui. Falei que estimava-se que mais de 100 bilhões de dólares seriam investidos na cidade e que a experiência do PAN poderia servir para evitar o erro da falta de transparência.

O papo foi fluindo, naturalmente, e quase já mudávamos de assunto, quando uma colega insistiu num prognóstico bastante sombrio. Começou a lançar pragas, numa linguagem apocaliptica, não apenas para o Rio, mas para todo o Brasil. Afirmou, com todas as letras, que o Brasil não tinha jeito, que estava fadado ao fracasso, e que as Olimpíadas, portanto, também não poderiam dar certo. Seu discurso radicalizado isolou-a, mas ela o manteve.

Então eu comprei a briga. Lembrei que o Brasil tinha vários pontos positivos, admirados no mundo. Citei, por exemplo, o programa de assistência gratuita aos doentes de Aids. Ela, então, argumentou que se tratava de assistencialismo. Fiquei perplexo com o cinismo e a crueldade daquela opinião. Disse-lhe que tinha um amigo com Aids que recebia os remédios do governo e que só estava vivo por causa disso. Ela reagia apenas com um risinho sarcástico. Sem argumentos, disse que tinha mestrado, pós-graduação, tinha morado no exterior. Era uma tentativa de me intimidar, de se colocar numa posição superior. Nossa discussão já tinha ficado um pouco agressiva e desagradável.

Creio, no entanto, que teremos que nos acostumar com esse tipo de discussão. É o resultado da ruína do pensamento único. Na verdade, devemos até incentivar essas discussões. Parte da classe média desenvolveu um cinismo pavoroso, um anticomunismo infantil (porque não temos nenhum fantasma comunista por perto), e uma agressividade extremamente pedante em relação à pensamentos divergentes.

Dissemos que ela estava repetindo clichês, e que se tratava de um caso clássico de "síndrome de vira-lata". Ela não estava preparada para enfrentar um blogueiro escaldado nesse tipo de pendenga ideológica. Informei-lhe que os EUA prestam forte assistência social a sua população, citando o vale-alimentação que dão a milhões de americanos pobres desde a II Guerra. Ela não sabia nada disso.

Em comparação aos países desenvolvidos, incluindo os EUA, os programas sociais brasileiros são tímidos. Na Dinamarca, a mulher grávida tem quase 2 anos de assistência estatal. Na França, o jovem com mais de 18 anos, sem emprego, recebe automaticamente uma ajuda do governo para iniciar a sua vida independente, e tem desconto em aluguéis.

O déficit de informação é gritante no Brasil. Sempre que eu, por uma razão e outra, saio do meu isolamento habitual, eu me estresso como as pessoas, mesmo as mais inteligentes, repetem, como papagaios, os clichês que ouvem na mídia. Por mais inteligente e culta que seja a pessoa, ela só pode desenvolver uma opinião consistente sobre um assunto através do processamento de informações variadas. É justamente o que não temos. Pode-se ser um gênio, da música, da filosofia, da ciência, não interessa - se as informações processadas não forem honestas e heterogêneas, emitir-se-á opiniões viciadas sobre determinado tema. Há mesmo um agravante. As pessoas que detêm (ou acham que detêm) conhecimentos especializados (sobre ciência, artes, filosofia, etc), desenvolvem uma tal vaidade sobre o seu próprio saber que não admitem estar erradas, mesmo num tema sobre o qual não estão bem informadas. Aliás, esse é o grande trunfo da internet. A intelectualização da massa. Sempre que passeio nas caixas de comentários dos blogs que frequento (Nassif, PHA, etc), impressiono-me com o humor, a clarividência, a simplicidade, a lógica, dos textos, tão diferente do festival de clichês irritantes que encontramos em certos "luminares" da imprensa.

*

Se eu conseguir superar uma firula burocrática, inscrever-me-ei para um Mestrado em Cultura e Política, do curso de História da UERJ. Tenho que ler os autores abaixo em pouco menos de 2 meses. Listo-os aqui para o caso de alguém querer trocar idéias sobre os mesmos:


Autor, Título da obra
1) Homi Bhabha, Local de Cultura.
2) Bronislaw Baczo, Imaginação Social.
3) Peter Burke, O que é História Cultural.
4) Roger Chartier, A história Cultural entre práticas e representações.
5) Ronaldo Vainfas, Histórias das Mentalidades e História Cultural.
6) István Jancsó, Brasil: formação do Estado e da Nação.
7) Lourenço Dantas Mota, Introdução ao Brasil - um banquete no trópico.
8) E.P.Thompson, Costumes em Comum.


Desses aí, só andei lendo, meio atabalhoadamente, o Homi Bhabha.

Os clássicos Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil, de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, já os reli pela enésima vez.

*

Descobri um livrinho organizado pela Heloísa Buarque de Holanda, intitulado Pós-modernismo e Política, onde leio, na introdução, assinada pela própria Heloísa, uma informação bem interessante, sobre a oposição, dentro do pós-modernismo, entre correntes reacionárias e progressistas. Veja esse trecho:

Na Europa, o debate, ironizado como a polêmica entre Frankfurters e French Fries, polariza-se entre as correntes alemãs e francesas em suas versões mais extremadas, tendo como representantes Jürgen Habermas e François Lyotand. A primeira, empenhada no resgate do poder emancipatório da razão iluminista, identifica os pressupostos pós-modernos com a emergência de tendências políticas e culturais neo-conservadoras. A segunda, determinada pela valorização da "condição pós-moderna", avalia com otimismo o declínio do prestígio das narrativas mestras, como o marxismo e o liberalismo, e a liquidação dos traços iluministas do projeto moderno.

Leiam também este outro:

Não me parece que as diversas polêmicas ou mesmo as próprias formas de descrição das características pós-modernas sejam isentas de uma forte coloração política. As possibilidades lógicas envolvidas nos julgamentos ideológicos sobre o pós-modernismo, ligados quase invariavelmente ao tipo de avaliação que realiza sobre o projeto moderno, já definem, com nitidez, pelo menos duas atitudes opostas: uma que procura desconstruir o modernismo para resistir ao status quo, e outra que repudia o modernismo para celebrar o status quo, ou seja, um pós-modernismo de resistência e um pós-modernismo de reação. Este último é o que geralmente informa o senso comum sobre a noção do que é pós-moderno.

Me desculpem se eu ficar um pouco "acadêmico" nos próximos dias. Prometo sempre tentar usar uma linguagem simples e acessível. Aprendi com Nietzche que os grandes pensadores da Antiguidade procuravam se distinguir do povo não através de uma linguagem rebuscada; ao contrário, distinguiam-se pelo uso de vocabulário simples e sintaxe direta. Hoje vivemos o contrário. A classe acadêmica parece ter perdido totalmente o senso de clareza e produz textos cuja leitura constituem uma verdadeira tortura.

Fiquei contente de ler que um dos motivos que levou Immanuel Kant a inventar a filosofia moderna é que ele, confessadamente, não conseguia entender os escolásticos. Eu sinto que grande parte da produção acadêmica e filosófica de hoje regrediu ao misticismo hermético da Idade Média, e que uma lufada de clareza kantiana e simplicidade socrática lhe fariam um tremendo bem.

10 comentarios

Anônimo disse...

Na Áustria, além de terem os estudos todos pagos até a faculdade,os jovens recebem ajuda do governo - 1.200 euros até 26 anos - bastando para isso, se matricular em algum curso - q pode ser na Argentina, por ex. - e
enviar o comprovante de matrícula - sem necessariamente ter q cursa-lo.
alguns deles (q conheci) aproveitam para viajar e conhecer a AL, no estilo mochileiro, claro; e as meninas, se quiserem continuar com a ´bolsa´, depois dos 26, é só engravidar... 1o. Mundo!(Paraíso Fiscal, tb, se não me engano)

jozahfa disse...

Olá Miguel, como vai?
Lembrei-me, lendo esta postagem, das velhas casas e barracos de fundo daqui de Santa Tereza. A rapaziada já de muito os divide para morar e montar os ateliês e fazer encontros musicais. Mas Santê fica fora do centro e, apesar de cultural, não tem história nem apogeu suficientes para uma decadência. Mas é já um velho bairro. Conhece BH? Eu mesmo - já faz um bom tempo - morei com amigos artistas por aqui e essa época me traz muitas saudades...
Cara, eu tenho uma tremenda dificuldade para lidar com a maioria de meus pares do dia-a-dia que não têm outras fontes de informação (?) que não o PIG. Aí vai também minha carência natural para articular e verbalizar as idéias. Mas também não é fácil lidar com a ignorância, não é? seja ela de qual categoria for. Sócrates, o qual você aprecia, e que eu conheço muito pouco, mas de quem guardo um belo conceito dela, da ignorância, dizia que o difícil do ignorante é que ele ignora que ignora. Como fazer saber a ele que ele não sabe que não sabe? that's the difficult question!
Mas têm os cretinos que sabem, né? são os calhordas hipócritas...
Bem, descontando a minha preguiça e a falta de grana, o que me afasta da pós ou do mestrado é a chatice do academicismo. Mas eu gosto de estudar e ainda não desisti da universidade. Em verdade estou ainda por lá, no francês, que faz parte de uma busca pessoal, mas que mantêm acesa a chama do saber - rsrs - e o contato com a UFMG. Gosto muito do campus, além do verde relaxante, tem uma quantidade incomensurável de beldades para os ói apreciá...
Mas são importantes a formação e os diplomas e desejo-te sucesso.
E espero que o citado rol não te faça sofrer muito.
Abraço.

Francisco disse...

Queria amigos politizados que discutissem isso. Seu texto começou bem claro. Mas quando começou com modernismo já usou outra língua pra mim. Quando fosse usar uma palavra conceituada era bom uma breve explicação em entre parênteses. ;D
valeu to te seguindo

Anônimo disse...

gosto muito de seus textos. corrija apenas o disperdício. forte abraço.

Miguel do Rosário disse...

prezados,desculpa o atraso na liberacao.estou sem internet em casa.

abs

Luis Henrique disse...

Falar mal do Brasil tal qual sua colega é o esporte favorito da nossa classe média.

"Me desculpem se eu ficar um pouco "acadêmico" nos próximos dias. Prometo sempre tentar usar uma linguagem simples e acessível. (...) A classe acadêmica parece ter perdido totalmente o senso de clareza e produz textos cuja leitura constituem uma verdadeira tortura."

Tá bom, Miguel, mas só um lembrete: ler 'inscrever-me-ei' e 'atabalhoadamente' ainda consiste em tortura.

Um abraço

Fabiano Camilo disse...

Li os livros 2, 3, 4 e 5, mas foi há tanto tempo que parece que foi em outra vida. Não li, mas tenho vontade de ler "O local da cultura", mas não sei quando isso será possível. Suspeito que seja o texto mais denso dentre os oito listados. Estou à sua disposição para trocarmos figurinhas. Entre em contato. O caminho pra minha casa você já conhece.

Um abraço!

José Carlos Lima disse...

VAI AQUI MEU FORA DE PAUTA, É SOBRE E-BOOKS

"Algumas pessoas podem querer manter seus livros físicos por um valor emocional, assim como alguns fazem com os discos de vinil. Mas nossa previsão é de que as próximas gerações lerão exclusivamente no formato digital – disse Cinthia Portugal, relações-públicas da Amazon, em entrevista ao GLOBO.

Tanto otimismo da Amazon nesta, digamos, “Revolução Digital dos Livros”, deve-se à aceitação do Kindle nos EUA. O aparelho é um e-book do tamanho de um livro pequeno, mas com menos de dois centímetros de espessura. Nele, podem ser armazenados mais de 200 obras ao mesmo tempo, entre as 225 mil disponíveis. O Kindle também possui um teclado, possibilitando que se faça anotações como num bloco, ou que se marque alguma página do livro virtual. "

http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2009/01/28/amazon-aposta-que-seu-book-kindle-vai-substituir-obras-fisicas-754178913.asp

COMENTÁRIO

O Globo do dia poderá ser armazenado no Kindle.
É bem provável que os postos de gasolina ofereçam serviços de abastecimento.
E os blogs, será que poderão ser vendidos também nos postos de abastecimento?
Tomara que sim.

Unknown disse...

Acho que a melhor maneira de desarmar os papagaios do PIG é através de fatos, argumentos não funcionam porque pessoas doutrinadas há anos por uma ideia não vão mudar simplesmente porque um desconhecido veio com algo convincente.
Se queremos uma população mais consciente e politizada devemos apresentar fatos que não podem ser contestados porque só isso faz as pessoas saírem da zona de conforto que estão acostumadas.

Nafil disse...

Pois é, fico pensando nessa história de que comunista é isso, é aquilo e que até comia criancinha. O tempo passa, o tempo voa, o mundo roda e a Lusitana gira e finalmente descobre-se que quem come criancinha são os padres. Logo eles que odiavam tanto os comunistas ateus.

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