9 de março de 2010

Ciclope cego

Por ocasião do encontro de "intelectuais" do Instituto Millenium, o colunista Arnaldo Jabor defendeu que a mídia se tornasse mais agressiva. Reinaldo Azevedo, blogueiro da Veja, argumentou por sua vez que ela parasse de "ouvir o outro lado". De uma forma geral, o evento serviu para selar publicamente um pacto de guerra contra o governo Lula. Como tem dificuldade em apontar, junto ao governo, algum problema sério em sua gestão econômica ou social, o dedão se estica na direção da liberdade de expressão. Uma acusação surreal, visto que não há nenhuma iniciativa oficial no sentido de tolhê-la; apenas debates, ainda no campo do abstrato, falando sobre a democratização da mídia.

É incrível como grupos tentam se apropriar do conceito de democracia. Com ajuda de meia dúzia de intelectuais de aluguel vendem ao público a idéia de que eles, cujo poder não é nunca auferido pelo sufrágio universal, que apoiaram o golpe contra democracia em 1964 e o sustentaram por décadas, possuem um capital democrático mais valioso que governantes eleitos pelo povo. E daí procuram, sempre em nome da democracia, interditar os debates em torno do tema comunicação de massa, lançando no ar o gás tóxico da suspeita, da mentira, da calúnia.

Não satisfeitos com isso, reúnem-se e declaram guerra aos representantes do povo. Naturalmente, preparam a opinião pública antes. Quem defenderá o Congresso, esse bando de ladrões? Quem defenderá o governo, esse antro de pervertidos? A sociedade deve se alinhar ao lado dos capitões da mídia, os verdadeiros, os únicos, os exclusivos paladinos da democracia!

Nesta terça-feira, professores e estudantes de comunicação social terão a oportunidade de dissecar o corpo vivo do Leviatã. Não porque nesta terça a imprensa esteja particularmente pior do que em outras oportunidades. O monstro tem sido generoso neste sentido. Pode-se analisá-lo quase todos os dias. É que hoje suas vísceras me parecem estar mais expostas do que nunca. A fera se mostra destrambelhada, confusa, como se estivesse cega - furiosa e cega. Recorda-me inclusive um outro monstro. Na Odisséia, o herói Ulisses e seus amigos se viram presos na caverna do Ciclope, assim como nós, brasileiros, sobretudo os que procuram participar da vida política, nos sentimos muitas vezes presos dentro do micro-universo midiático. Todo o dia, o Ciclope catava alguns homens e os comia vivos, no café da manhã. Até que Ulisses tem a idéia de oferecer ao monstro o vinho que trazia, um vinho muito especial, muito forte. O monstro, após bebê-lo (devorando alguns homens como aperitivo) dorme e, durante o sono, Ulisses, com auxílio de seus colegas, logra enfiar um enorme pedaço de madeira, previamente afiado na ponta, no único olho do gigante.

Que fica cego. E furioso. Como nossa mídia nos últimos dias.

Não dá para enfrentar um monstro assim de frente. A saída é esperar que ele se distraia e fugir. Ganhar o mar, a liberdade. Assim fá-lo-á Ulisses e os amigos que sobreviveram, disfarçando-se de ovelhas.

Ulisses, no entanto, não consegue resistir à seu orgulho. Já seguro em seu barco, afastando-se da ilha onde viviam os ciclopes, ele ergue sua voz bem alto, para que o monstro o ouça, e zomba dele.

O que fazemos por aqui, na blogosfera. Estamos ainda a enfiar a lança no olho do ciclope? Estamos a fugir de sua fúria cega? Ou estamos na fase de zombar - já seguros em nossos barcos - do gigante ferido?

De qualquer forma, vale não esquecer que muitas fadigas e sofrimentos esperarão pelo nosso herói, e que o deus dos mares, Posidão, nunca perdoará Ulisses por ter cegado o Ciclope, seu filho.

*

Chega de papo furado, temos muito trabalho pela frente. Tanto que é difícil saber por onde começar. Um pouco de disciplina, por favor. Números!

1) Globo tenta salvar barriga de ontem, quando noticiou, em forma de denúncia, a participação da ministra Dilma na inauguração de um hospital. O gancho da matéria era de que o governo federal não havia investido dinheiro na obra. Não era bem assim. A Casa Civil e o Ministério da Saúde explicaram que a obra integra o PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), conjunto de obras coordenado pelo governo federal, e que, no caso deste hospital, o Ministério da Saúde bancaria o custeio, que corresponde a gastos anuais superiores a 50 milhões. A obra, financiada pelo governo do estado, custou 40 milhões de reais. O custeio - repetindo - custará mais de 50 milhões por ano ao ente federal. Se isso não é botar dinheiro, alguém poderia explicar o que é?

O jornal procura criminalizar a inauguração de um hospital. Era o dia internacional da mulher, e o governo inaugura um hospital dedicado a mulher. Um grande hospital, público, gratuito, moderno. É muita mesquinharia.

Gostaria de saber quem o Globo persuade com essa estratégia. Pior é que sei... A classe média carioca, que paga planos de saúde caríssimos para se tratar na rede D'Or, não vê (ou finge não ver) a importância de se inaugurar um grande hospital em São João de Meriti, em plena baixada fluminense, a área mais pobre e mais violenta do estado.

O foco no aspecto eleitoral da obra na verdade criminaliza o próprio sentido da pressão democrática popular. O povo quer atenção. Quer hospitais, escolas, saneamento básico. Se o governo lhe oferece isso, não pratica um ato eleitoreiro, e sim realiza a Vontade do Povo, com maiúsculas. Torna-se popular. Criminalizar a inauguração de um belíssimo hospital público, instalado bem no coração de uma das áreas mais sofridas e desesperadas da metrópole carioca, é estupidez.

2) O universo jornalístico se deparou, nesta terça-feira, com um artigo de Demétrio Magnoli extremamente ofensivo, agressivo, grosseiro, contra dois repórteres da Folha de São Paulo. O mais estarrecedor é que o artigo foi publicado na própria... Folha de São Paulo. Está certo que Magnoli é um dos meninos queridos do Instituto Millenium, e que só está seguindo a orientação (vocalizada por Arnaldo Jabor, mas certamente difundida por todos os "sócios" deste novo Ipes) de aumentar a agressividade, mas a Folha desta vez perdeu as estribeiras. Publicar uma grosseria contra seus próprios repórteres mostra-se não apenas uma odiosa intimidação ao trabalho livre da imprensa, de sua própria imprensa;  é também uma indesculpável deslealdade.

Magnoli só agiu assim porque eram dois repórteres modestos, não-famosos. Seria mais honrado se ousasse atacar nominalmente o colunista Elio Gaspari, que escreveu um texto muito mais pesado contra a fala de Demóstenes Torres do que a matéria dos repórteres da Folha. De qualquer forma, o terno de Gaspari também deve estar molhado com os perdigotos de Magnoli.

Tudo isso para quê? Por quê? Leandro Fortes dá algumas pistas, e eu também procuro entender por aqui. Recapitulando: durante os debates no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade ou não das cotas raciais, o senador Demóstenes Torres, do DEM, partido que desde o início se posiciona contra as políticas afirmativas, fez um discurso absolutamente imbecil, regurgitando as interpretações mais vulgares da obra de Gilberto Freyre. Eu tenho o orgulho de ter lido mais de uma vez a magistral obra-prima Casa Grande & Senzala, e sei que o senador disse uma ciclópica asneira. Freyre é sarcástico, de uma ironia às vezes excessiva ao tratar de fatos tão trágicos como o vício do estupro dos senhores de engenho. Mas é ironia, e toda a maravilhosa coesão estética da obra freyriana é sustentada por este humor brutal, cáustico, severino. Ouvir Torres falar em "sexo consensual" entre senhores e escravos, citando a obra do grande antropólogo pernambucano, é de revirar o estômago. O senador só falou besteira, e o termo besteira seguramente é um eufemismo para lá de bondoso para se referir a seu discurso. O que ele quer dizer quando afirma que os próprios africanos participaram do processo de escravização de seus semelhantes? Que as crianças negras de hoje tem culpa no cartório?

E agora, o senhor Demétrio Magnoli, usa as páginas da Folha como quem adentra um botequim sujo e, qual um bêbado furioso, começa a vociferar descontroladamente contra quem discordou das impropriedades do senador Demóstenes Torres. Pior ainda, contra quem noticiou as discordâncias!

A única explicação possível para a violência de Magnoli é o cerco político em que se viu a oposição nas últimas semanas, e que, com a desmoralização de Torres, despertou a fúria de um demônio acuado. Magnoli,  contratado como pitbull midiático, foi adestrado para morder seus adversários. Parece-me, no entanto, que este que se acreditava um terrível Cérbero começa a ficar precocemente desdentado e confuso, e atacar os empregados do próprio dono.

3) A manchete do Globo hoje anuncia a alta no preço do pão. E não só isso.


A manchete está errada. O Brasil não "ameaça" ninguém. O Brasil ganhou, junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) uma ação contra o subsídio do algodão praticado pelo governo americano. Magnífica vitória da diplomacia comercial brasileira, numa luta iniciada, é bom dizer, no governo FHC, é tratada como um ato de antiamericanismo irresponsável que irá fazer subir o preço do pão.

Mentira. O trigo é o último dos produtos cuja taxa de importação o governo brasileiro elevaria. Não tem sentido. O governo brasileiro subsidia regularmente a compra de trigo por parte das grandes processadoras brasileiras, num esforço para dar estabilidade ao preço do pão, produto com grande peso na cesta básica nacional. O Brasil produz cerca de metade a um terço do que consome. O resto importa da Argentina. Os EUA, excepcionalmente, deverá ser uma fonte importante este ano, por causa de uma quebra de safra na Argentina e desempenho negativo das lavouras brasileiras. Até fevereiro deste ano, porém, a importação de trigo americano ainda está só no reino das intenções.

Como vem ocorrendo sempre, no dia seguinte, a matéria do Globo é desmentida, no próprio jornal, que se utiliza de subterfúgios linguísticos para apresentar a contrainformação sem se desculpar pelo exagero da véspera.

4) Nos últimos dias, Folha, Estadão e Globo publicaram editoriais que correspondem a verdadeiras declarações de guerra contra o PT. Ontem foi a Folha. Hoje são Globo e Estadão. Ao que parece, todavia, esta será a tônica diária nos próximos meses. O título do editorial do Estadão de hoje é:

O partido da bandidagem

Não creio que é possível estabelecer um debate político minimamente... nem digo imparcial, mas... civilizado se o jornal assume uma postura tão explicitamente beligerante e agressiva em relação a um dos lados. O editorial está no Clipping de hoje, basta clicar Control + F (comando de procurar) e digitar o título informado.

O Estadão pré-julga e pré-condena sumariamente não apenas alguns petistas enrolados em denúncias de um procurador com histórico de perseguição ao PT, como estende a atitude para o partido como um todo, encerrando assim o texto:

Mas, a cada escândalo, mais se aprende sobre a destreza com que a bandidagem petista se apossa do dinheiro alheio para chegar lá - e ali se manter.

O texto é esquizofrênico, desesperado, maquiavélico, falso. Sempre que se faz um ranking dos partidos com mais problemas na justiça, o DEM e o PSDB aparecem no topo da lista, bem acima do PT. Ao final de 2007, por exemplo, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que reúne duas dezenas de entidades, divulgou o mapa das cassações no Brasil: 623 políticos perderam os mandatos entre 2000 e 2006. Foram três os motivos principais das cassações: compra de votos, abuso de poder econômico e político e desvio de serviços e dinheiro públicos para campanha eleitorais. O movimento mostrou os partidos mais atingidos pelas cassações. Pela ordem: Democratas, PMDB e PSDB. Observe o quadro abaixo:



O PT vem em nono lugar no ranking dos partidos que registraram mais condenações da Justiça. DEM e PSDB, por sua vez, ocupam os gloriosos primeiro e terceiro lugar. Quem merece mais, portanto, segundo dados oficiais, o epíteto de "partido da bandidagem"?

5 comentarios

Peixoto/Pres.Prudente/SP disse...

Quem me dera, ao menos uma vez acreditar nesta Mídia que aí existe, acreditar que o PIG é perfeito e que todos os seus leitores são felizes. É DILMA a primeira mulher Presidente do Brasil.

alê m. disse...

bacana o ranking com os partidos mais atingidos pelas cassações. seria bom ter acesso tb a uma série histórica. existe?

Miguel do Rosário disse...

Tem sim, alê.

Aqui:

http://www.mcce.org.br/node/19

Claudio Rodrigues disse...

Caro Miguel,
Leio todo o dia por que tuas considerações sempre são excelentes. Manifesto-me hoje porque as considerei geniais.
Claudio

Anônimo disse...

È engraçado, os capangas do Instituto Millenium falam dos riscos referentes à liberdade de imprensa. Mas, um desses infelizes atentam em editorial na Folha de São Paulo contra a liberdade de impresa, da multiplicidade de opiniões. O cara confunde opinião com reportagem, uma das essenciais do jornalismo. Um erro crasso.

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