O título é uma brincadeira, por favor. Mas é que em São Paulo, de fato, tenho a sensação de estar pisando em terreno minado, ou passeando junto às trincheiras de um exército adversário. Talvez isso passe com o tempo. Já tenho luz e internet. Quer dizer, mais ou menos. Temos dois notebooks e só uma fonte de energia. E a Pri levará a única fonte para o trabalho, na segunda-feira. Tenho que descolar 200 reais para comprar uma outra pra mim na rua Santa Ifigênia, a meca dos produtos eletrônicos. Se alguma alma generosa se dispuser a doar essa quantia ao blog, agradeço imensamente. Juro pra vocês, não gosto de pedir nada. Só o faço porque a necessidade de trabalhar em algo que praticamente não me gera renda (as assinaturas da Carta me ajudam, mas não bastam, infelizmente), mesclada à paixão doentia por esse trabalho, me impele a isso. De qualquer forma, se até a Madonna anda pelo mundo pedindo dinheiro, e recebeu 10 milhões de dólares do Eike Batista; se a Globo nos torra a paciência com seu Criança Esperança; tudo isso me faz pôr de lado o orgulho e apelar à generosidade da nação.
Ainda não me estabeleci totalmente, portanto. Por um lado, foi até bom que o trabalho não tenha rolado. Fico mais dependente da boa vontade alheia, mas com muito mais tempo para ler e escrever no blog. E, como já disse, o campo de observação é excelente. Nosso apartamento fica num conjunto residencial da Avenida Paulista que outrora tinha péssima fama (o apelido era "bafão da Paulista"), e até hoje muita gente ainda deve pensar mal dele. Mas não é tão ruim. Por fora é bem pior do que por dentro. Sofreu diversas reformas nos últimos anos e hoje tornou-se um lugar bastante digno e limpo. Foi um achado e tanto, porque uma amiga nos alugou a preço acessível (embora este "acessível", em São Paulo, tenha sempre um zero a mais do que em outras cidades...).
É barulhento, não posso negar. Escuta-se todo ronco de carro passando na Paulista, e por aí você imagina que nossos tímpanos absorvem a música de centenas de milhares de motores. Mas acaba-se acostumando-se até com isto. E a vista é legal. Vê-se a Paulista, o MASP, o parque Trianon...
Tampouco li os jornais. Apenas namorei as manchetes nas bancas, nesses últimos dias. Sem internet e sem dinheiro, optei por adquirir alimentos e café e ocupar o tempo relendo a República. Trouxe uns livros bons para cá, por falar nisso. Imagino que essa nova temporada do ócio blogueiro me permitirá boas horas de leitura. Tentarei terminar o Heródoto, o Tucídides, reler o Kant, dar início ao Vico, ao Jacob Burckhardt, ao Fichte, o Schelling. Enfim, se eu conseguir ler tudo isso (ou pelo menos alguns; ou mesmo UM deles) e ainda fazer um bom trabalho no blog, terei um periodo pleno e satisfatório.
Já desisti da boemia há bastante tempo, admito, não exatamente por gosto, mas porque a cerveja é um luxo acima da minhas posses - ainda mais para alguém dotado de sede colossal como eu, que não se satisfaz apenas com uma ou duas cervejinhas...
Não quero passar a impressão de fracassado, todavia. Entrei muito bem este ano. Prestei um serviço de alto nível para uma agência de consultoria política de Brasília. Gente poderosa e de esquerda. Fui muito bem pago, mas fiz uma bobagem. Achei que o trabalho iria durar mais e aceitei uma viagem que a Pri me propôs, para organizar uma pequena mostra de cinema em Clermont-Ferrand, interior da França, onde rola o maior festival de curtametragem do mundo. Viajamos. O trabalho na tal consultoria durou apenas 30 dias e, quando voltei, estava outra vez aplicando beijos no asfalto.
Enfim, perdão por este post autobiográfico e seus detalhes pecuniários. O preço para escrever com liberdade sempre foi alto. O grande Voltaire amargou muitos anos de Bastilha; muitos enlouqueceram; outros tantos morreram na mais extrema penúria. A história da literatura (e incluo aqui a literatura política) é um vasto cemitério de miseráveis. Dostoiésvki (sempre lembro dele, porque é o maior, e o que mais sofreu) passou a vida escrevendo cartinhas lamurientas e/ou desesperadas para conhecidos e editores, pedindo dinheiro, adiantamentos, empréstimos, e demais flores. Quem o salvou, por incrível que pareça, foi sua secretária, uma pobre moça de classe média baixa que, após se apaixonar pelo grande escritor russo, vendeu seu único imóvel para alugar uma casa para os dois na Itália; onde o alquebrado Dósti escreveria suas maiores obras-primas: Crime e Castigo, Irmãos Karamazóvi, Os demônios... Temos ainda Henry Miller mendigando em Nova York, John Fante comendo laranjas (e só laranjas) em Los Angeles... O que não falta são pobres-coitados que sirvam de modelos para o escritor de hoje não morrer, por sua vez, de baixa autoestima...
Agora finalmente poderei ler meus blogs preferidos: Nassif, Cidadania, Azenha, Caleiro, tantos outros. Também preciso consultar os jornais, recuperar os dias perdidos. Como diriam nossos ancestrais, navegar é preciso...
21 de março de 2010
Estabelecendo-se em campo inimigo (e outras meditações pecuniárias)
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Boa sorte Miguel, você é um lutador.
Quando retornar a capital paulista e você estiver aí ainda, vou convida-lo para um almoço no popular Sujinho, antigo Bar das Putas, fica na rua da Consolação (sem trocadilhos) aí pertinho de onde mora.
Abracetas
Adir Tavares
Belo post, Miguel.
Parabéns pelo trabalho e agradeço a generosidade com que nos presenteia com seus textos, lúcidos e aguerridos.
Td de bom.
Ô MIguel, pelo jeito você vai morrer de fome em ótima companhia...
Já pensou, ser lembrado junto aos que você citou?
É a glória, meu irmão!!!
Boa sorte em Sampa...
Eheh, essa glória eu dispenso, Carlos. De fome, vai ser difícil. O problema é arrumar rápido a porcaria da fonte de energia. É um saco isso, sempre um problema.
Pode deixar que eu me viro.
Abraço,
Miguel
É bom estar no "campo inimigo" e ver as diferenças bem como as contradições. Isso será muito útil para você poder contribuir na discussão política que vai se travar até outubro.
Boa sorte na Paulicéia Desvairada. Beijos na sua Pri... outro em tu!
A lista é imensa,,Van Gogh, Nietzsche, o mundo só anda prá frente por causa dos loucos, pois os certinhos ou perfeitos ou racionalistas da laia do FHC, DD, Arruda, Hitler...
Vc já se encontrou com o Mário Bortolotto?
André
Campo inimigo? Open your mind. And heart.
Tirando os pontos turisticos óbvios da cidade, experimente também alguma das unidades Sesc da cidade. É a entidade cultural mais importante e atuante do país. E vc vai poder ler todos os principais jornais e revistas do pais, de graça. Restaurante bom e barato. Recomendo as unidades Pompéia, Pinheiros e Vila Mariana.
Miguel, vc deve ter meu e-mail aí...
Me manda o seu(por e-mail)que vou te passar uma dica...
Acho um pouco estranho vc considerar campo inimigo o berço do PT. Aliás, alguém já disse que PT e PSDB são quase irmãos siameses, não é à toa que vieram do mesmo útero.
Quanto à batalha pela sobrevivência, vc esqueceu do próprio 'velho barbudo', o Carlos Marx, que, se não fosse o respaldo da sua parceira, a estóica e aristocrática Jennie, e a solidariedade do companheiro Engels, entre outros, a história do pensamento de esquerda seria outra.
Armando, eu começo o texto ressalvando que é uma brincadeira. Obrigado pelo comentário. Pois é, eu sei que o Marx também saboreou pão amassado pelo chifrudo.
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