30 de maio de 2010

O pó malhado de José Serra

If you got bad news, you wanna kick them blues. Se a coisa tá feia, e você quer dar a volta por cima, apele para a cocaína. É o que diz a canção imortalizada por Eric Clapton. É o que fez José Serra. A diferença é que a canção vem carregada de ironia. O tucano falou a sério.

De certa forma, é bom que Serra e seus cúmplices na mídia gastem saliva e energia tentando fazer da Bolívia a origem de nossos males. Quer dizer, isso é ruim diplomaticamente e ajuda a criar um preconceito xenófobo no Brasil. Daqui a pouco, veremos carecas paulistas espancando bolivianos, a mídia entrevistará antropólogos para saber a razão disso e a Ilustríssima dedicará um caderno inteiro ao tema. Por outro lado, é uma estupidez do ponto de vista eleitoral, visto que as eleições acontecem aqui no Brasil, não na Bolívia. É bom porque ajuda a Dilma.

Além do mais, a mídia agora está sendo obrigada a se contorcer para transformar as afirmações de Serra num argumento racional. A Veja, como era de se esperar, embarcou a todo vapor. E hoje a Folha traz uma matéria de Josias de Souza intitulada "PF avaliza visão de Serra sobre Bolívia".

É uma matéria curta mas eficiente, e não foi a tôa que incumbiram um de seus melhores repórteres para a tarefa.

Através de uma sutil e astuta manipulação sintática, Josias de Souza consegue várias proezas:

  1. Converter a opinião de uma fonte anônima da PF numa declaração oficial da própria instituição.
  2. Diz que a opinião dessa fonte "reforça" as acusações de Serra; daí transforma "reforçar" em "avalizar".
  3. Reforçar é uma coisa; avalizar é outra. Dizer que a PF avaliza a visão de Serra é uma mentira e uma temeridade. 
  4. Transforma uma questão eminentemente diplomática e política, porque envolve a soberania de outra nação, em mero assunto de polícia. 
  5. Usa um silogismo afoito e miserável: aumentou produção de coca na Bolívia, logo Morales fez corpo mole.
A produção de cocaína aumentou em toda a América Latina. Aumentou na Colômbia em plena vigência do plano Colômbia, pelo qual o governo deste país recebeu quase 2 bilhões de dólares dos Estados Unidos para combater o plantio da droga. 

As declarações de Serra foram desastradas e grosseiras, e assim devem ser tratadas, por diversas razões:
  • O governo boliviano enfrentou, nos últimos cinco anos, uma gravíssima crise política, que por pouco não descambou em guerra civil. Tudo isso agravado pela queda no preço do petróleo, principal insumo de exportação do país, e pela crise econômica mundial, que afetou as suas já combalidas contas públicas. Querer que o governo boliviano consiga, sozinho, enfrentar aquele que é um dos problemas mais sinistros do mundo moderno, ou pior, julgá-lo negativamente por isso, é prova de mau caratismo. Serra não tem moral para cobrar do governo boliviano uma política de combate antidrogas se não consegue controlar sequer uma organização criminosa que age dentro dos presídios do estado que seu partido governa há 16 anos.
  • Esse tipo de problema deve ser tratado no âmbito diplomático, e usando sempre a linguagem diplomática. Está aí o maior problema. Não se pode acusar, sem prova, um governo amigo de ser cúmplice do narcotráfico. O governo Uribe foi acusado, por diversas vezes, por sua própria Justiça, de ser cúmplice de paramilitares e narcotraficantes, mas o governo brasileiro nunca usou essas acusações para fazer proselitismo na imprensa brasileira. As declarações de Serra têm origem, portanto, numa visão rancorosa da Bolívia, nascida de preconceitos de todo o tipo: contra um país pobre, contra um governante índio, contra uma visão ideológica diferente da sua. 
  • O plantio de coca no mundo, por razões óbvias, nunca seguirá a vontade de governos, e sim a demanda. Se aumentou a entrada de coca boliviana no Brasil, a culpa não é de Morales, e sim porque o Brasil está consumindo mais. Trata-se de um problema terrível, de fato, e que por isso mesmo deve ser discutido com seriedade e prudência; não é honesto transformá-lo em sensacionalismo eleitoral. 
  • Trata-se de uma acusação genérica e inconsequente, que prejudica as relações bilaterais entre os países e, portanto, dificulta qualquer ação em conjunto. É contraproducente.
O Brasil tem procurado ajudar a Bolívia a se desenvolver economicamente, através de financiamentos a sua infra-estrutura, aumento das relações comerciais, investimentos no país, pagando preços mais justos pelo gás boliviano. É hipocrisia e má fé querer que a Bolívia combata eficazmente o plantio de coca sendo um país devastado economicamente. Morales tem obtido conquistas sociais muito importantes para seu povo, e isso, com certeza, ajudará os bolivianos a reduzirem a dependência econômica da coca. Serra acena com a estratégia oposta: vamos ferrar ainda mais a Bolívia para ver se eles páram de plantar. É claro que não vai dar certo.

A questão toda é extremamente complexa e as declarações de Serra revelam um político inescrupuloso, procurando faturar em cima dos terríveis problemas políticos, sociais e econômicos que marcam a realidade boliviana. Ele sequer relativiza sua crítica lançando-a sobre a conturbada história do país, marcada desde seus primórdios pela injustiça, pela brutalidade, e pelo saque indiscriminado de suas riquezas. Serra não tem nenhum assessor no campo da diplomacia? Esse é outro problema grave de Serra: sua arrogância centralizadora, chauvinista, solitária. Um diplomata, para poder se relacionar bem com outro país, deve estudar profunda e detalhadamente a sua história. Deve pesquisar as relações econômicas que movem e controlam o país. E deve evitar, naturalmente, julgamentos morais apressados. 

Além do mais, está se fazendo deliberadamente uma grande confusão. A crítica de Serra é uma tentativa de lucrar com o desespero social oriundo do aumento do consumo de crack no país, que é uma droga usada principalmente pelas classes baixas. Omite-se, no entanto, que a maior parte da coca boliviana que entra no Brasil é consumida pelas elites. O crack é o resto, a xepa, e seu uso está ligado à miséria, à ignorância e à depressão psicológica. 

A pujança econômica do Brasil faz aumentar o consumo de cocaína no país, e estimula o plantio na Bolívia. É uma verdade simples e brutal. O consumo per capita no Brasil ainda é muito baixo em relação ao dos Estados Unidos. Confira abaixo uma tabela do Relatório de Drogas da ONU 2009:



Repare que a América do Norte, com 522 milhões de habitantes, tem 9,57 milhões de usuários de cocaína, ou 2,3% de sua população adulta. Apenas nos EUA, a taxa de consumo chega a 2,8% dos indivíduos com idade entre 15 e 64 anos. O consumo na América do Sul, cuja população é de 357 milhões, atinge 2,31 milhões de pessoas, correspondendo a não mais que 0,9% da população adulta.

Por que os americanos usam mais cocaína? A hipótese mais plausível, a meu ver, é que eles desfrutam de maior poder aquisitivo. Qual a conclusão? Há uma tendência, entre os países da América do Sul, de crescimento do consumo, paralelamente ao aumento da renda per capita. Brasil à frente. 

O crescimento da produção de coca na Bolívia, portanto, está ligado ao aumento da demanda por parte da sociedade brasileira, o que por sua vez é uma das consequências, tristes mas inevitáveis, do desenvolvimento econômico. 

Não acho prudente ser otimista em relação a esse tema. Quer dizer, o relatório da ONU tem alguns números otimistas, que é a estagnação do consumo na Europa e a queda, ligeira, mas consistente, do consumo nos Estados Unidos. Especialistas detectam que as drogas tradicionais começam a perder um pouco de seu status na cultura ocidental, para o que contribui, certamente, um grau maior de informação por parte das pessoas. No caso do Brasil, todavia, não há como conter a ansiedade, inclusive em seus aspectos autodestrutivos, de mais de 50 milhões de brasileiros entrando no mercado de consumo, e suspeito que o uso de cocaína deverá continuar crescendo no Brasil por anos, antes de se estabilizar e iniciar um processo de queda. 

José Serra é um homem vivido, sabe que o consumo de cocaína nas grandes cidades brasileiras é altíssimo, sobretudo nas camadas mais altas da sociedade. As classes emergentes tendem a imitar quem está em cima. Ascensão social não significa elevação moral. Ao contrário, em geral vem acompanhada de um coquetel de novos defeitos: egoísmo, consumismo, vícios. Faz parte da vida. É forçoso reconhecer, contudo, que se os pobres brasileiros registrassem um consumo de cocaína per capita apenas próximo do observado entre a boemia paulistana, a Bolívia teria que quintuplicar a sua área plantada.

Don't forget this fact, you can't get back. Não tem volta, Serra, você falou uma grande besteira. A imprensa está tentando aliviar, mas com isso apenas faz com que o tucano não reflita sobre seus erros e não se aperfeiçoe, e se gaste tinta que poderia ser usada para atacar Dilma Rousseff. O que é ótimo: por trás de um homem triste, há sempre uma mulher feliz. Recado final de Clapton para Serra: If you wanna get down, down on the ground, se você quer cair ainda mais nas pesquisas, continue fazendo merda. Cuidado, porém, para não se desesperar. Viciados em crack roubam a própria mãe. Candidatos sem escrúpulos tentam roubar a vontade das urnas. Ambos sempre se ferram no final.

7 comentarios

claudio rodrigues disse...

Miguel,
Excelente análise e um final genial.

GilsonSampaio disse...

Miguel,
Considere o seguinte:
1 - o governo federal lançou campanha de combate ao crack;
2 - Serra tem mania de copiar o governo federal, p.ex. banda larga, desta vez não tem nada para apresentar;
3 - Serra chuta o pau da barraca da Bolívia para ocultar a cracolândia.
Será que ele tá pautando todo mundo? Porque ninguém indaga sobre a cracolândia?

Tiago Azevedo de Aguiar disse...

A sua análise é ótima.
A pena, é que as pessoas em geral não rebatem o óbvio, e há muita desinformação

André disse...

Miguel,
Como sempre, ótimo artigo, parabéns. Só um toque: a canção imortalizada pelo Clapton foi composta pelo JJ Cale.

Miguel do Rosário disse...

Valeu, André. Já corrigi. Deixei "imortalizada por".

Homero Pavan Filho disse...

Miguel, deu uma baita inveja ler seu texto, um primor, parabéns.
Uma pergunta: por quê, em sua opinião, a escolhida para a baixaria foi a pobre Bolívia?

Galvão disse...

Miguel o José Serra vem insistindo na acusação de que o governo da Bolívia é cúmplice dos narcotraficantes que abastece o mercado de cocaína no Brasil. A insistência tem causado perplexidade a alguns comentaristas de política que acompanham a campanha eleitoral.
Pode até ser paranóia minha, mas por traz desse angu tem caroço. Lembram do caso LUNUS em que a banda (podre?) tucana da polícia federal detonou a candidatura da Roseana Sarney? Já houve o dinheiro de CUBA na campanha do Lula. Pois é bem possível que essa mesma banda da Polícia Federal esteja preparando alguma coisa parecida como: dinheiro da Bolívia para a campanha da Dilma, e a clara vinculação com o narcotráfico. O Serra não tem escrúpulo, é bom o governo, o PT e a Dilma se precaverem contra coisas desse tipo.

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