Estou lendo um livro do Shakespeare que, acho eu, pouca gente conhece. É uma peça política intitulada Coriolano, contando as vicissitudes de um aristocrata da Roma Antiga, um "patrício" que odiava profundamente a plebe, ainda mais porque a plebe havia obtido grandes vitórias políticas e constitucionais, como o direito de destituir os cônsules e de eleger seus próprios tribunos, que gozavam de enormes e importantes prerrogativas.
Coriolano - é o nome desse personagem - era, por outro lado, um guerreiro de extraordinário valor. Sua coragem e destreza nas difíceis guerras que Roma enfrentava a todo momento, e que fizeram a cidade viver sob o fio da navalha por séculos, sempre à beira de ser destruída por tantos inimigos, eram reconhecidas por todos.
Como de praxe, o livro me remete ao presente. Essa é uma característica deliciosa das grandes obras de arte. Seu universalismo as tornam sempre contemporâneas. Quem é o Coriolano de hoje?
Esperem. Deixem-me contar um pouco mais da história para vocês entenderem melhor.
Ao final da guerra, Coriolano, no auge de seu prestígio, é indicado para cônsul, função máxima na Roma republicana. Para ser confirmado no cargo, no entanto, ele deveria cumprir uma tradição: pedir humildemente os votos e o apoio da plebe. Isso é uma humilhação terrível para Coriolano. Instado por amigos e familiares, ele cede e pede os votos, mas o faz com tanta má vontade que, apesar de conseguir os votos, a plebe logo depois muda de idéia e decide retirar seu apoio. Coriolano então deve voltar à praça e se humilhar perante o povo. Deve pedir desculpas e suportar ofensas e admoestações que os tribunos populares lhe fizerem. Depois de ouvir um longo sermão de sua mãe, que insiste na importância de engolir seu orgulho e fazer o que deve ser feito, Coriolano vai ao encontro da plebe.
Não resiste, porém, às primeiras provocações. Chamado de traidor da pátria por um dos tribunos, Coriolano tem um acesso de fúria e joga tudo para o alto. A partir daí destila abertamente sua ira antipopular. Os tribunos e o povo, furiosos, o condenam ao exílio - por muito pouco ele não é executado de maneira cruel, lançado do alto de uma rocha.
A história segue, mais tramas virão. Em futuros posts, eu conto mais e continuo as comparações, mas essa sinopse é suficiente para vocês entenderem o paralelo que vou fazer. Ciro Gomes é nosso Coriolano. É um homem corajoso, de valor inegável, com disposição para a luta, mas possuidor de um orgulho que beira a soberba. Sua verve ácida contra a política de alianças do governo Lula me lembrou muito as condenações de Coriolano à plebe sem caráter. Ciro Gomes é um aristocrata moral. Um patrício. Não tem estômago forte o suficiente para sentar-se à mesa com a plebe política que constitui o esteio do poder em Brasília. Mas é preciso. O gênio de Shakespeare deixa isso bem claro. Este é o preço da democracia, esse é o custo da liberdade. Um político com ambições de estadista não pode ser um intolerante moral. Em primeiro lugar, essa intolerância embute preconceito social e muita hipocrisia. Ciro Gomes não se insurge contra a corrupção ao redor de seu amigo, o tucano Tasso Jereissati. O "roçado de escândalos" a que Ciro se refere estará sempre na horta dos outros, nunca na sua.
Ciro Gomes cometeu graves erros políticos. Ele deveria, para começar, ter se lançado ao governo de São Paulo. O PT paulista havia se rendido. Um leque amplo de partidos estava disposto a se unir com muito entusiasmo em torno de sua candidatura. A UNE, que é sediada em São Paulo, preparava-se para se engajar encarniçadamente na campanha de Ciro para governador. Era um cálculo político perfeito. Um combate acirrado no ninho tucano obrigaria mídia e PSDB a gastarem suas energias ali mesmo, enfraquecendo-os na disputa nacional.
O deputado, todavia, pareceu se deslumbrar com as luzes que se acendiam sobre seu rosto sempre que fazia críticas ao PT. O astuto Ciro Gomes teve seus dias de inocente útil. A mídia usou-o e agora tenta apresentá-lo como carta fora do baralho.
Eu não entendo tanto de política para saber se é possível ainda lançá-lo ao governo de São Paulo. Acredito que Ciro perdeu o "time". Mas ele é ainda uma peça importantíssima no tabuleiro eleitoral. Os quase 10% de votos que ele tem representam aproximadamente 13 milhões de eleitores, e o fato de uma parte destes eleitores estarem migrando para José Serra quando Ciro não consta na pesquisa, revela quão importante será que o deputado, desde já, se posicione com mais transparência e objetividade em relação à Dilma ou Serra.
A plebe, cuja ira se acende tão facilmente, perdoa com a mesma presteza aqueles que a respeitam e se portam com humildade. A única alternativa para Ciro, nesse momento, na minha também humilde opinião, é pedir desculpas aos tribunos e ao povo por sua soberba dos últimos meses e, com a mesma coragem que ele demonstra na guerra contra os grupos reacionários que dominam a mídia nacional, ele se curve aos interesses maiores da nação e entregue-se de corpo e alma à missão de derrotar a direita e eleger Dilma Rousseff.
22 de abril de 2010
Ciro, o patrício moral da política
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É possível que o Ciro Gomes tenha enxergado o cenário descrito em seu artigo. A ambição advinda de sua soberba moral o faz sonhar com a conquista do cargo máximo da nossa Roma. E alguem com a sua grandeza não pode servir de apoio as conquistas de outrem.
Numa disputa mais aberta, sem a polarização dramática que ocorrerá esse ano, Ciro teria um papel interessante, no tocante ao debate de idéias e projetos.
Mas com o quadro que temos, não é interessante a candidatura dele. É como se ele representasse um flanco descoberto da candidatura governista, uma vez que ele apenas parcialmente tenta (e é só so que pode também) se descolar de Lula.
Em São Paulo eu não sei. Talvez já não haja o apoio necessário.
Ciro fez a aposta grande, acreditando que seu discurso forte em meio a dois candidatos sem carisma teria efeito. Vai terminar sem nada nessa história.
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