“Todos os estranhos e terríveis acontecimentos são bemvindos, mas o conforto, desprezamos”, Cleopatra, rainha do Egito (69 a 30 anos antes de Cristo).(Desculpem a falta de acentos em algumas palavras, estou na França, usando um teclado estrangeiro e ainda por cima um Mac. Consegui corrigir um pouco usando um editor de texto, mas acabei tirando alguns pontos finais, sei la porque...)
Tenho pesquisado sobre o Egito, e gostaria de trocar algumas ideias com vocês. Os jornais franceses publicam diariamente artigos sobre os acontecimentos da praça Tahrir, mas os articulistas perderam muito tempo se acusando mutuamente de manter posições moderadas ou radicais, em vez de se dedicarem a explorar as razões profundas da revolução na terra dos faraós. Deixei por fim os jornais de lado e enfiei o nariz na rede. Encontrei um excelente
artigo sobre a blogosfera egípcia, que na verdade é quase uma monografia.
Também resolvi pesquisar mais sobre a historia moderna do Egito, sobretudo a figura de Gamal Abdel Nasser, o primeiro grande líder da era republicana e independente do país. Li biografias de Nasser na Wikipedia e outros sites. E encontrei partes de seu livro disponíveis na internet, intitulado Filosofia da Revolução,
Parte I,
Parte II e
Parte III. As paginas estão viradas, entao você tem que salvar no seu computador, abrir com o Acrobat Reader e mandar girar no sentido anti-horário. Está tudo em inglês
Engraçado como as coisas se ligam. Parece papo de doidao de lsd, mas é verdade. Estou na cidade onde viveu Blaise Pascal, que escreveu que "se o nariz de Cleopatra fosse mais curto, isso teria mudado o destino do mundo", uma frase que já usei - forçando a barra, tanto eu gostei dela - num
post sobre política brasileira. Foi também em Clermont-Ferrand que o papa Urbain II - acabei de ler essa informação ao pé da sua estátua - abençoou, numa missa, a primeira Cruzada, a qual, segundo Nasser, marcaria tanto o inicio dos movimentos que levariam ao renascimento europeu como o inicio de um período de grande decadência para o Egito.
Afinal o belo e grande nariz de Cleopatra - cuja beleza altiva seduziu Julio Cesar e Antonio, e separou os dois aliados - não foi a única influencia do Egito sobre a nossa civilização. A escrita, a medicina, a astronomia, a própria literatura ocidental, as modernas técnicas agrícolas, tudo nasceu nos vales do rio Nilo.
A imagem que temos do Egito Antigo em geral é apenas negativa, de faraós cruéis reinando sobre uma multidão de escravos. Não era bem assim. A Europa sempre teve reis exercendo poder totalitário e nem por isso deixou de produzir beleza, ciência e civilização. Houve tempos de paz, estabilidade, justiça e progressismo no Egito dos faraós, o que se pode inclusive ler no Velho Testamento. O injustiçado José, traído por seus irmaos, que o vendem a mercadores que operavam no Egito, acaba se tornando chanceler do farao, numa prova de como o regime permitia ascensão social de ex-escravos.
A arte antiga egípcia tem uma sofisticação e qualidade que o ocidente alcançará apenas milhares de anos depois.
Mas falemos do Egito contemporâneo, do Egito rebelde, libertário e democrático que emerge das ruas, cantando e enfrentando com bravura um regime hipócrita, cruel, assassino e submisso ao que ha de pior no imperialismo americano.
As manifestações recentes, que surpreendentemente parecem se intensificar cada vez mais, ao contrario do que previam inclusive os esquerdistas jornais franceses, não sao as primeiras que o pais experimentou nas ultimas décadas. Os egípcios tem se manifestado constantemente neste inicio de século, mas nada se compara ao que vemos hoje.
Voltemos entao a revolução de 1952, que derrubou o rei Farouk, um pupilo das potências ocidentais, cujo conservadorismo e corrupção lembram muito o regime atual de Mubarak. Em seu livro Filosofia da Revolução, Nasser traça um retrato das imensas dificuldades enfrentadas pelos revolucionários para evitar que o processo de transição política descambasse em revanchismo violento, e sobretudo para conciliar dois movimentos que se chocavam, mas que eram ambos necessários: a revolução política, que pedia união de todas as classes em prol do fim do domínio estrangeiro, e a revolução social, que exigia conflito de classe para produzir justiça e igualdade. Nasser tentou conduzir simultaneamente as duas revoluções, embora tivesse consciência de que, na maioria dos países, houve séculos de intervalo entre elas. Para fazê-lo, sacrificou a democracia. Foi uma espécie de Getulio Vargas do Nilo. Prendeu comunistas e muçulmanos ao mesmo tempo em que se aliava politicamente à União Soviética, criando assim o bloco dos países não-alinhados, e servindo de exemplo para todo o Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo em que ampliava o controle sobre os meios de comunicação, realizou uma vasta reforma agraria, limitando a propriedade de terra a 200 acres e, com isso, aplicando um golpe mortal no latifúndio.
Sua açao política mais importante, no entanto, e onde provavelmente mais incomodou as grandes potências da época, foram seus esforços para unir o mundo árabe em torno de valores e objetivos comuns e o apoio que deu para que a Africa negra também se unisse.
Mas Nasser falhou miseravelmente ao não enxergar a importância de criar instituições que sobrevivessem a sua gestão. Nasser morreu e o sonho acabou. Seus sucessores, primeiro Sadat, e principalmente Mubarak, destruiriam sua obra. O mundo árabe se fragmentaria em ditaduras isolacionistas sem nenhum compromisso com o desenvolvimento da Africa, sendo que é evidente que a pobreza do continente negro se reflete negativamente nos países mediterrâneos. O Egito conquistara a independência política e instituíra um sistema republicano moderno. Mas ao não investir na consolidação de instituições democráticas, abriu espaço para um terrível retrocesso, com a cristalização de oligarquias e a corrupção de todo sistema.
Novamente, portanto, o Egito se vê diante do dilema de conduzir duas revoluções, uma política, outra social. As potências ocidentais aceitam apenas a primeira, ou nem isso, pois sabem que a essa altura do desenvolvimento da consciência do povo egípcio, não pode haver uma revolução política que não implique em revolução social. Por isso insistem que se trata de uma revolução de classe média. O que de certa forma é verdade. E ai está a grande ironia, e a pungente beleza da historia e de todo processo revolucionário. A classe média egípcia encontra-se de tal forma empobrecida que ela se tornou povo. Trata-se de uma realidade que se repete em todo o mundo árabe e em toda Africa. A classe média desapareceu, dando lugar a sociedades profundamente cindidas: de um lado, os amigos do poder, de outro, a massa.
As implicações geopoliticas dos acontecimentos no Egito descortinam horizontes de liberdade para os mais de 400 milhões de árabes que labutam no norte da Africa. Ha um fator cultural e psicológico poderoso, pois não estamos falando de mais uma revolução islâmica, mas de exigências genuinamente democráticas. Alias é interessante observar que uma das causas do sucesso do islamismo sempre foi o seu respeito pelas agruras sociais, e o esforço que faz para combatê-las. Essa é a diferença entre as manifestações da juventude iraniana e egípcia. Os jovens persas protestam contra um sistema político, mas não tem o apoio popular maciço que vemos no Egito porque o regime islâmico, pese seus terríveis defeitos no campo da democracia e dos direitos humanos, sempre se mostrou bastante progressista no que se refere à luta contra a pobreza. O desemprego no Iran é baixo, enquanto no Egito atingiu um nível insuportável.
"Toma-se conhecimento do fim da guerra pela alegria do porteiro", diz o delicado personagem de Marcel Proust, ao observar como o publico de uma peça de teatro, composto na maioria por pessoas muito distantes de qualquer erudição, tem sensibilidade suficiente para apreender se o desempenho da atriz foi bom ou ruim. Da mesma forma, a revolução no mundo árabe, ou em qualquer parte do mundo, incluindo o Brasil, só pode ser adequadamente medida pelo bem estar das pessoas simples.
Continuando minha conexão França - Egito, ha um trecho da Historia da Revolução Francesa, obra-prima de Jules Michelet, que me comoveu muito. Ele descreve o povo francês como o mais resignado da Europa, tendo suportado humilhações que seus primos ingleses ou germânicos jamais suportariam sem se rebelarem. Ha um limite, porém, mesmo para o mais covarde e submisso dos povos, e a mais negra injustiça, assim como a mais tenebrosa escuridão, torna mais brilhante a luz da justiça. E o povo francês se revolta. E o mais humilde dos povos se converte no mais altivo, no mais terrível defensor da liberdade.
A historia é plena desses contrapesos, dessas dialéticas imprevisíveis e avassaladoras. A nós, nos resta torcer para que a liberdade do povo egípcio, de todos os árabes, de toda Africa e, porque não sonhar, de todos os povos oprimidos, cintile, queime, e reduza a cinzas, esse egoísmo odioso, retrógrado e antidemocrático que ainda rege, qual faraó enlouquecido, os destinos da humanidade!