31 de março de 2012

Os netos da ditadura choram seus mortos

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Belíssima e pungente a crônica de Hildegard Angel sobre a manifestação de jovens ocorrida no último dia 29, na Cinelândia. A colunista passava por acaso pelo local, desceu do carro e assistiu ao tumulto, emocionando-se profundamente em ver tantos jovens protestando por uma dor tão antiga. Angel viveu essa dor na própria carne, pois seu irmão, Stuart Angel Jones, era também um jovem militante político, assim como eram os garotos entoando slogans anti-ditadura em frente ao Clube Militar. Stuart foi preso, torturado, morto (conforme relato de testemunhas) e seu corpo jamais foi encontrado.

Lembrei-me então da única vez que vi meu pai chorando. Irrompemos em casa subitamente, e flagrei-o sozinho no sofá da sala, com lágrimas escorrendo e uma tristeza estampada em seu rosto como eu jamais vira. Meu pai era um tipo sertanejo forte, como diria Euclides da Cunha. Veio de Araguari, rincão isolado de Minas Gerais, próximo à fronteira com Goiás, terra de jagunços.  Miraculosamente, virou intelectual e veio estudar e trabalhar no Rio de Janeiro. Essas coisas aconteciam com frequência no Brasil daqueles tempos. Vide Drummond, nosso maior poeta, que emergiu misteriosamente de Itabira, e Guimarães Rosa, cuja aparição algo mística eclodiu em Cordisburgo; ambas cidadezinhas perdidas e decadentes do interior mineiro.

Meu pai enxugou as lágrimas e fechou-se e eu jamais soube porque ele chorava. Um dia, porém, pensando no assunto, tive a sensação poderosa de ter descoberto: ele havia lembrado de seu irmão! Eu sabia que aquele era o fato mais triste em sua vida, cujas dores eu mesmo havia experimentado na infância, pois eu tinha seis anos quando aconteceu a tragédia.

Francisco do Rosário Barbosa, meu tio, foi espancado e torturado até a morte por policiais da 9ª Delegacia do Catete, em 1981. A razão? Absolutamente nenhuma. Foi morto por nada. Porque a ditadura criara monstros, que tinham prazer em matar. Os vícios da ditadura permanecem até hoje, como se pode ver pelas estatísticas de Rio e São Paulo, onde a polícia figura como uma das principais responsáveis por homicídios e corrupção.

Aconteceu assim. Meu tio voltava de um trabalho noturno numa empresa de clipping jornalístico. Morava em Copacabana e estava dentro de um ônibus na Praia do Flamengo quando policiais pararam o veículo. Os agentes entraram e pediram documentos a cada passageiro. Francisco protestou timidamente contra os modos, provavelmente não muito gentis, pelos quais os pms abordavam os passageiros.

Eu não estava lá, mas eu sei que foi um protesto tímido porque meu tio, assim como todos os Barbosa, são uma raça de tímidos. Meu pai e seus irmãos todos falam baixo, pausadamente, são extremamente cordatos, pacíficos, corretos, educados, como aliás é a maioria do povo mineiro.

Pra quê?  Com que razão meu tio havia feito aquilo? Uma pessoa mais sabida saberia que mesmo um pequeno gesto era perigoso naquela época. E no entanto, Francisco, um jovem com menos de 30 anos, recém casado, não conseguiu se conter. Protestou contra os maus modos dos policiais ao abordarem trabalhadores voltando cansados para casa num ônibus coletivo.

Ali mesmo no ônibus, Francisco foi violentamente espancado. Depois foi levado à delegacia e torturado até a morte.

Francisco era muito amado pela família. Tinha nove irmãos, um pai e uma mãe, todos sentimentais e muito apegados uns aos outros. A dor foi profunda. Meu pai reuniu os familiares desconsolados e disse que a única maneira de darem sentido àquele sentimento de devastação e perplexidade, a única maneira de não permitir que degenerasse em amargura, frustração e esta horrível sensação de impotência e covardia que nos arrasa quando uma força acima de nós destrói um ente querido, a única maneira digna de lidar com aquela tragédia, era usá-la como instrumento de luta para derrotar a ditadura!  Meu pai então dedicou-se com todas as suas forças para mostrar ao Brasil que a ditadura, embora já flertasse com a abertura política, era um monstro que precisava ser extirpado. Foi à TV, às rádios, aos jornais, contratou advogados, e foi, eu acho, o único caso durante o regime em que se conseguiu levar os responsáveis à prisão. Meu pai venceu. Botou delegado e sub-delegado na cadeia, condenados pela Justiça comum. Se é difícil realizar algo assim nos dias de hoje, imagine naquele tempo! Eles foram soltos alguns anos depois, mas acabaram ambos assassinados por algum bandidinho local que eles devem ter torturado.

A prisão dos responsáveis só foi possível, naturalmente, porque ainda não havia Anistia...

Eu já escrevi sobre esse mesmo assunto por aqui, em duas oportunidades. A primeira foi em 2007, numa crônica sobre o livro que meu pai escreveu sobre o assassinato do irmão, "Quando a polícia mata". A segunda foi em 2009, por ocasião dos protestos contra a Folha pelo uso do termo "ditabranda", quando eu escaneei o livro do meu pai e disponibilizei-o gratuitamente na internet.

Lendo a crônica da Angel, como eu ia dizendo, eu vi que as lágrimas que ela verteu ali em frente ao Clube Militar, assistindo uma geração tão jovem protestando contra a celebração de uma data que simboliza, em verdade, uma traição à pátria, aos direitos humanos e às esperanças que milhões de brasileiros alimentavam, à época, de construírem um país mais justo, as lágrimas de Angel eram as mesmas lágrimas do meu pai, eram as lágrimas de toda uma geração.

É comovente constatar que essa dor ainda não morreu, mobilizando jovens que não viveram a ditadura, mas a conheceram em espírito. Nos protestos da Cinelândia vemos o verdadeiro significado da palavra História. Nada morre. Tudo que acontece a um país permanece vivo, eternamente, para o bem e para o mal. A truculência dos militares contra a sociedade civil, a sua agressão à democracia e aos direitos soberanos do povo, ainda são e sempre serão, chagas vivas, abertas, no coração da história brasileira.

27 de março de 2012

Dilma, os ativistas e as conspirações

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Prezados, eu publiquei no Cafezinho um texto que eu queria ter publicado por aqui no sábado. Mas não tive inspiração na hora para fazê-lo, então acabei publicando lá no Cafezinho mesmo, apesar de ser um texto mais com a cara do Óleo.

http://www.ocafezinho.com/2012/03/27/dilma-os-ativistas-e-as-conspiracoes/

20 de março de 2012

Notas sobre um retrocesso que não houve

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Perdoem o texto meio truncado e confuso. Estou correndo contra o tempo para terminar um trabalho, mas não podia deixar de registrar aqui algumas descobertas. Não sou dono da verdade. Corrijam-me, por favor, se tiver errado alguma coisa. Como diz Veríssimo, sou o cara mais humilde do mundo.  Não recebo um centavo do Minc, nem conheço ninguém por lá. Não recebo dinheiro de lugar nenhum. Sempre trabalhei no setor privado, e aliás estou com prazo estourando para entregar a tradução de um filme. Sinto-me obrigado a dizer essas coisas porque vejo que alguns críticos da Ana, antes mesmo de entrarem no debate, lançam suspeitas sobre quem pensa diferente. Parece a política Bush do ataque preventivo. A polêmica do Minc virou um ambiente barra pesada. Espero que poupem este modesto blogueiro de sua agressividade.

Meu interesse não é defender ninguém. Respeito a Ana de Hollanda como sempre respeitei qualquer ministro da Cultura anterior a ela, inclusive dos governos FHC pra trás. Quero trazer o debate para o campo dos argumentos. Acredito que devemos respeitar os outros se queremos que nos respeitem. Isso vale para adversários também, porque se perdermos a linha, perdemos a razão. Quando escrevia contra o Serra e contra o governo FHC, baseava-me exclusivamente em dados, em argumentos, nunca usei slogans fáceis, jamais apelei para a baixaria. Quem o fez, na verdade ajudou Serra a crescer nas eleições. Se respeitava os ministros da Cultura de FHC, também respeitarei os da Dilma.

Ontem eu passei muitas horas estudando Siafi, Portal da Transparência, relatórios governamentais para o tribunal de contas, para ver direitinho os gastos do governo, e poder fazer uma análise séria sobre um possível retrocesso político da atual administração. Analisei a gestão do Ministério da Cultura, especialmente os Pontos de Cultura. Li o livro do Ipea sobre o assunto, lançado há alguns meses, com dados pesquisados ao final de 2010 junto a centenas de pontos de cultura. O livro do Ipea é elogioso, mas ao fim (ver o capítulo IV, eu copiei trechos aqui) aponta um rol de problemas graves de gestão e conceito, que precisariam ser resolvidos. O Minc inclusive já fez seminários para discutir o livro do Ipea, encontrar soluções e reformular o programa.

Em 2007, o Minc (que incluíra apenas 109 pontos no ano anterior) aceita a inscrição de 1.843 pontos de cultura. Nos anos seguintes, iria voltar para 200 ao ano, em média. Mas a partir de 2008, tendo que lidar com aquele aumento súbito feito em 2007, os recursos e a gestão dos pontos do Brasil inteiro foram sendo transferidos para prefeituras e estados, que não estavam preparados para tal responsabilidade (segundo analisou o Ipea). Em 2010, o programa quase entrou em colapso, e o Minc pagou pouquíssima gente, entregando à gestão da Ana de Hollanda um passivo de centenas de milhões de reais.

O relatório do Minc para 2012 e próximos anos, porém, prevê solucionar esses problemas e continuar a política de expansão do programa Cultura Viva, conforme se verá abaixo. Mas imagino que não vai ser fácil.

Agora uma rápida digressão.

Vi também os gastos do governo com Saúde, Educação e Meio Ambiente. O governo ampliou os gastos nesses setores em relação aos gastos totais.

Os gastos do Ministério da Saúde, por exemplo, somaram 24,15 bilhões de reais em 2011, aumento de 29,4% sobre o ano anterior, e representaram 1,88% dos gastos totais do governo, contra 1,79% em 2010 e 1,65% em 2009. Sugiro que pesquisem os gastos destinados às políticas públicas de saúde para a mulher. Terão uma agradável surpresa também.

Já falei sobre a forte expansão do Bolsa Família em 2011 e 2012, tanto em valor total, como em valores únicos para cada família.



Fiz essa digressão rápida, porque acho importante salientar que o governo Dilma ampliou substancialmente os gastos sociais em relação ao último ano do governo Lula (que foi o melhor ano de Lula), mesmo enfrentando um momento econômico bem mais difícil. É o que se espera de um governo de esquerda. É o que realmente faz diferença na vida dos mais pobres. Paparicar o povo do Twitter não ajuda o mais necessitado.

Voltando aos pontos de cultura, em 2010 foram incluídos 215 novos pontos; e em 2011, 251 pontos. Ou seja, até nisso houve avanço. E o Minc planeja ampliar o programa para 4.170 pontos até 2014 (contra 3,6 mil hoje). Repito: é uma informação oficial do Minc. Teremos que checar isso no futuro. Mas é preciso que a blogosfera dê ao Minc o direito de apresentar sua versão. Os críticos devem trazer dados e links para contestar. Falar em retrocesso da boca pra fora é leviano.

A coisa é bem confusa, porque tem verba aprovada que não é paga, restos a pagar, etc. Eu encontrei vários números diferentes, mas suponho que os relatórios já consolidados do Portal da Transparência sejam os mais confiáveis.

Os gastos concretos com o programa Cultura Viva em 2011 e 2010, segundo o portal da Transparência, foram estes: R$ 47, 44 milhões em 2011 e R$ 38, 4 milhões em 2010. Ou seja, não houve nenhum retrocesso, ao contrário. Link 2011 Link 2010



Se os críticos têm dados diferentes a apresentar, por favor, façam-no, trazendo as fontes.

Fui analisar o cadastro de inadimplentes. São milhares de pontos inadimplentes Brasil a fora. O livro do Ipea discorre bastante sobre isso, lembrando que a inadimplência implica a devolução dos recursos. Imagine o impacto para um grupo de produtores pobres em ter de devolver 180 - 200 mil reais? O programa Pontos de Cultura se tornou, de repente, um problema social grave, arriscado. A coisa se complica ainda mais porque tudo tem de passar pelas secretarias municipais e estaduais de cultura, que não tem funcionários preparados. É uma verdadeira bomba.

Cada vez mais eu estou estupefato com a falta de elegância do Juca Ferreira. Ele ficou 8 anos no Minc, teve tempo para aprender bastante, daí volta e ataca a sua substituta que está somente há 1 ano, e justamente em relação a problemas nos pontos de cultura que ele mesmo não conseguiu resolver?

O que me aborrece é que é fundamental que haja crítica, mas que seja responsável, embasada, séria. Não fique no tititi. Eu adoraria ver uma boa crítica de esquerda à Dilma Rousseff, mas tragam mais dados, por favor.

Ah, tem também essa entrevista com a mulher que gerenciava os pontos de cultura do Minc, estava lá desde os tempos do Juca. Ela fala que é preciso olhar para os Pontos de Cultura sem "messianismo", para avaliar com frieza a extensão de seus imensos problemas, gerenciais e mesmo conceituais:

"Não se trata apenas de dívidas, mas de desorientação administrativa, de pilhas de processos sem resolução, de prestações de contas sem retorno desde 2008. Como lidar com tudo isso de forma respeitosa com as pessoas e cuidadosa com as exigências de ser governo e estado, sem provocar atrasos? É impossível."

Tem o lance do Ecad. Não entendo nada disso, admito. Eu gostaria, no entanto, de assistir a um congresso de músicos e compositores, para ver a opinião de todo mundo. Queria vê-los discutindo, com tranquilidade, saber o que pensam, e analisar a conjuntura toda, pesando todos os lados. Nesses manifestos contra a ministra, onde a principal acusação era ser "amiga" do Ecad, não vi um músico (ou quase nenhum). A maioria era global, incluindo Regina Duarte e Nelson Motta. Até onde entendo, a ministra não pode mandar fechar o Ecad, assim como Juca Ferreira jamais o fez. Enquanto não ouvir a opinião de uma grande quantidade de músicos, especialmente os mais produtivos, que mais contribuíram para a música brasileira, prefiro me manter à parte nessa polêmica.

Apenas uma observação sobre o manifesto dos intelectuais, onde figura na cabeça da chapa a filósofa Marilena Chauí: um amontoado de clichês sobre globalização, pelo amor de Deus! Prefiro acreditar que os signatários mais ilustres não prestaram a devida atenção ao conteúdo. Vocês sabem que não me impressiono com "carteirada" de intelectual. O manifesto podia trazer a assinatura de Immanuel Kant e Spinoza. Se fosse um texto mal escrito, conceitualmente confuso, mesmo assim eu criticaria.

Na minha opinião, e me perdoem se falo besteira, a principal virtude de um ministro da Cultura deve ser a honestidade. É um dos ministérios com menos verba, e o pouco que tem está amarrada a programas sempre deficitários, como os que respondem pela conservação do patrimônio arquitetônico do país. Acho que é saudável termos um ministro da Cultura discreto. A cultura de um país quem faz é o povo e suas vanguardas. Não precisamos de nenhum gênio no Minc para nos conduzir a um "novo patamar".


Abaixo outros links para ajudar:

http://www.cultura.gov.br/culturaviva/secretaria/scdc-em-numeros/
http://www.ipea.gov.br/digital/Ebook/culturaviva/index.html
http://www.cultura.gov.br/site/wp-content/uploads/2012/03/APRESENTACAO_programas-prioritarios-2012-site.pdf
http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/PrestacaoContasPresidente/RelatorioPareceresTCU/RPP2010.pdf

17 de março de 2012

O capitalismo não existe

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(Luis Felipe Noe, pintor argentino)

Encerrei o último post com uma provocação: "O capitalismo não existe enquanto sistema econômico, ou antes, não é um regime organizado ideologicamente". Agora preciso explicar. Eu já li Marx, e alguma coisa de economia clássica, mas minha opinião nesse ponto é baseada no bom senso.

O capitalismo é uma ideologia; um tanto vaga, instável, puxada para cá e para lá, mas toda ideologia tem esse problema.

Não é, todavia, um sistema político nem um regime econômico. Na Política de Aristóteles, estudam-se os diferentes regimes de organização política: monarquia, aristocracia, democracia. Em nenhum momento, se fala de capitalismo. Igualmente no opúsculo Política, de Espinoza.

Marx e Engels inventam o conceito de capitalismo a partir de uma reconstrução narrativa da história econômica da humanidade. Em Origem da Família e Propriedade, Engels cita a domesticação do animal como o surgimento do conceito de propriedade, que em seguida se estenderá à terra e à família.

A origem do capitalismo, segundo o marxismo, remonta aos primórdios da humanidade, quando ocorrem os primeiros escambos. O seu desenvolvimento dialético, porém, levaria o capitalismo a entrar em crise, criando condições para uma revolução que o levaria a autodestruir-se, depois de dez mil anos de hegemonia. Veríamos, enfim, o nascimento e o domínio do socialismo.

Eu acho o marxismo tremendamente pretensioso neste ponto, em achar que uma evolução de dez mil anos, envolvendo toda raça humana, seria modificada pelo voluntarismo de alguns poucos "iluminados".

Então eu, também pretensiosamente, vislumbrei os principais erros do marxismo e da interpretação do significado deste na história moderna.

O maior equívoco do marxismo, a meu ver, foi equiparar o socialismo, que é uma interessante e sedutora utopia, mas sempre uma utopia, à realidade orgânica que rege a história humana. Esta realidade orgânica é misteriosa porque não somos capazes de apreendê-la em sua plenitude, assim como não podemos entender, totalmente, os segredos do universo, o funcionamento do cérebro ou a resistência da teia de aranha.

O socialismo pode formar um contraponto dialético ao capitalismo, mas o capitalismo deve ser posto em seu devido lugar: é antes de tudo uma resposta acadêmica ao discurso socialista. O comportamento social do homem baseia-se tanto em fatores psicológicos como econômicos, ambos interligados.

Existe uma psicologia das massas, e não me refiro àquela psicologia registrada por acadêmicos. Esta corresponde a um estudo desta psicologia, uma tentativa, quase sempre canhestra, de captar as sutilezas e complexidades da psicologia social.

Da mesma forma, portanto, que não se pode confundir o estudo da psicologia das massas com a psicologia das massas em si, o estudo da economia política não substitui a economia política. O estudo do ser é uma coisa, o ser propriamente dito é outra. Discursar sobre as correntes oceânicas é uma coisa, o oceano monstruoso e terrível é outra.

O que chamamos de capitalismo, então, na verdade são posições políticas, um tanto precárias, fundamentadas no estudo da história. Não pode ser confundido com a realidade em si da economia humana, que é algo tremendamente poderoso e orgânico.

Por favor, não confundam a minha tese como uma louvação à força eterna do capitalismo. Ou como uma postura resignada, descrente das possibilidades de qualquer transformação efetiva. Ao contrário, podemos observar, na história, transformações profundas na maneira como os homens se relacionam entre si e com a produção de riquezas. Ao confundirmos o ser da história e da economia com o capitalismo, estaremos atribuindo a uma ideologia mambembe, criada às pressas no século XIX para servir de contraponto ao socialismo, uma complexidade que esta nunca teve.

Esta confusão, além disso, apenas gera desencanto, decepção, frustração, e converte jovens fogosamente idealistas em adultos amargos e reacionários. A frequente passagem de um trotskismo entusiasta para a um conservadorismo furioso tem sido frequente nas últimas décadas.

O regime econômico no qual vivemos não é capitalista. Existe, claro, a ideia vulgar segundo a qual o capital rege o mundo. Esta é uma concepção tão poderosamente arraigada nas pessoas, no entanto, que não podemos negá-la simplesmente. Então vamos aceitá-la, e desenvolvê-la dialeticamente.

O capital rege mundo, assim pensa Marx, assim pensa o vulgo, e concordamos. De uma forma ou outra, sempre regeu. Afinal o poder político também sempre foi associado ao capital. Mas eu acho equivocado dar ao capital um poder cabalístico. O capital encarna o conjunto das forças produtivas dominadas por um país ou classe social. Por trás do capital, há sempre um poder político e por trás do poder político há sempre homens.

Poderíamos argumentar que o capitalismo é sim um regime econômico e um sistema ideológico e que a prova disso são as leis capitalistas, que regulam o direito de herança e propriedade privada, por exemplo.

Eu diria que foi o capitalismo que se auto-associou a essas leis, milenares. As constituições modernas, aliás, relativizam essas leis. O direito à herança nos EUA, por exemplo, é bastante limitado. O imposto sobre a herança nos EUA é draconiano. A maioria dos milionários, antes de morrer, entregam boa parte de seu patrimônio para fundações sem fins lucrativos. A propriedade privada, por sua vez, é uma conquista do trabalhador moderno, uma vez que, durante séculos, ou mesmo milênios, este não tinha segurança jurídica sobre seu próprio patrimônio. A propriedade privada não é um conceito apenas capitalista. Alguns pensadores marxistas alegam que o socialismo é um grande criador de propriedade privada: faz com que, pela primeira vez, trabalhadores que não tinham nada, possuam um pedaço de terra e uma casa.

Um dos problemas do que poderíamos chamar de capitalismo seria a concentração da propriedade. Aí sim, temos situações realmente nocivas. Mas esse é um problema que, se levado ao extremo, prejudica severamente as economias capitalistas, porque empobrece o consumidor, gerando uma demanda deficitária.

Um regime autoritário, por sua vez, comunista (como a Coréia do Norte) ou não (como a Arábia Saudita) concentra a propriedade em mãos do Estado ou família dirigente.

A concentração da propriedade não é uma característica orgânica do capitalismo. Ela também obedece a leis econômicas naturais. Ela concentrar-se-á necessariamente, ou em mãos de corporações, ou em mãos do Estado. Em ambos os casos, quanto maior for, ficará cada mais sujeita ao controle social. As empresas gigantes são sempre mais fáceis de tributar e vigiar.

Então, se não é capitalista, qual o nome para o sistema econômico e político que temos no Brasil?

Ainda não resolvi a questão do nome para o modo econômico, mas pode-se dizer que vivemos um regime político constitucional republicano democrático presidencialista. É um regime político cujo valor é quase sempre subestimado pelos observadores leigos ou desatentos, à esquerda e direita. Não podemos esquecer que o sufrágio no Brasil e no mundo apenas se universalizou a partir da década de 70 e em muitos países, somente a partir da década de 90 que esta universalização alcançou a maturidade. E falo de países como EUA, Inglaterra, Alemanha e Brasil.

É incrível pensar que, até o final da década de 60, ainda havia restrições de ordem tributária para que negros e homens pobres votassem nos EUA!

Por isso mesmo que eu encaro estas teses sobre "crise de representatividade" com muito ceticismo. Como assim crise de representatividade se os povos mal tiveram tempo de se acostumar ao sufrágio universal, que lhes conferiu um novo poder político?

Muitas dessas teses nascem de interpretações contaminadas de moralismo, ou mesmo preconceitos bem vulgares, acerca dos representantes e partidos políticos. Ora, o poder político é um problema grave para o homem, em termos filosóficos. Um problema que vale para democracias ocidentais, autocracias árabes ou ditaduras comunistas. O homem é um bicho complicado, um animal político com uma psique repleta de impulsos contraditórios: por exemplo, anseia por liberdade, por um lado, mas aceita que esta liberdade seja cerceada por leis que lhe garantam segurança, de outro. Liberdade versus segurança, criatividade versus padronização cultural; são forças dialéticas que se complementam, mas a beleza espiritual do homem reside justamente na tensão entre elas, e na pureza de cada uma. Não se espera de um artista genial que se porte do mesmo jeito que o secretário de segurança, e, no entanto, a saúde social de uma cidade depende igualmente de ambos. Em nossa cachola convivem forças antagônicas cuja tensão configura a nossa personalidade, e cujo equilíbrio nos torna produtivos.

Com esta análise, não quero dizer que o mundo tem um futuro brilhante, medíocre ou sombrio. Isso seria tarefa para videntes. Aceito também que existam divergências ideológicas bem marcantes, que podem ser associadas, em algum grau, a conceitos de esquerda ou direita, embora não concorde com a simplificação maniqueísta com que seus respectivos militantes tratam uns aos outros.

Uma coisa boa, no entanto, é que a fé na democracia hoje ganhou consenso de ambos os grupos ideológicos. Nem sempre foi assim. Acreditar na república e no sufrágio universal já foi sinônimo de esquerdismo radical, e muita gente foi fuzilada, presa e perseguida por causa disso. Eu acredito que os princípios que regem a democracia, se desenvolvidos com inteligência e sensibilidade social, podem nos levar a um mundo bem mais justo. É um ideal tranquilo, que me conforta o suficiente a ponto de cometer a loucura de acreditar no futuro.

10 de março de 2012

Os paradoxos de Rabelais

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(François Rabelais, França 1494 - 1593)


Sabe como a capital da França recebeu o nome de Paris? Segundo Rabelais, o fidalgo Gargantua chegou a cidade pela manhã e provocou tal sensação, em virtude de suas proporções físicas literalmente gigantescas, que o povo lhe seguia de uma parte a outra. Tentando fugir da perseguição, Gargantua sobe ao cume da Notre Dame, e contempla a multidão cada vez maior que se aglomera embaixo. Então, ele desabotoa a braguilha, põe para fora seu bilau e despeja uma enorme torrente de urina, causando uma inundação que afoga milhares de pessoas. Os únicos sobreviventes são os que logram refugiar-se nas partes altas de Montmartre.

Indagado por um de seus acompanhantes porque havia feito aquilo, Gargantua responde que foi somente "par ris", em francês arcaico. Pra rir. Por troça. Daí veio o nome de Paris.

A própria história é uma grande piada, como de resto é toda a literatura rabelaisiana. Por razões que não me cabe explicar no momento, sou um francófilo e um estudante apaixonado de história e literatura francesa, e há dois anos li pela primeira fez o Gargantua, que junto a Pantagruel (que é o pai de Gargantua), são as duas obras-primas de François Rabelais, cujo papel na história da cultura gálica é similar ao de Dante na Itália, Shakespeare na Inglaterra, e Camões em Portugal.

Mas Rabelais é, sobretudo, um magnífico sacana, o que foi uma surpresa para mim, que sempre ouvira falar nele apenas como um clássico tradicional. É uma leitura divertida, despretensiosa, onde topamos com todo tipo de pornografia, escatologia, guerras absurdas, comilança excessiva e, sobretudo, uma defesa incondicional do uso imoderado do vinho.

É realmente divertido pensar no que significou este livro numa época terrivelmente conservadora (século XVI). A obra, claro, foi rechaçada por boa parte do stablishment, em especial os religiosos. Mas outros defenderam Rabelais, inclusive alguns representantes mais esclarecidos do clero. Também me diverte pensar que a Igreja Católica já teve uma ala progressista em termos de cultura, como se pode constatar visitando a Capela Sistina.

Como uma obra assim passou a representar o marco inaugural do renascimento francês, um dos pilares deste humanismo alegre e irônico - e talvez por isso mesmo tão poderoso - que iria caracterizar a literatura francesa a partir de então?

Mas eu não vim aqui falar apenas de Rabelais, e sim procurar estabelecer uma ponte entre seu humor libertário, corrosivo, quase diabólico; seu entusiasmo transbordante pela vida; sua verve incendiária, que era ao mesmo tempo maligna, esperançosa, sarcástica e humanista; uma ponte entre Rabelais e o mau humor da literatura política contemporânea.

Claro, é uma comparação puramente retórica. Os contextos são outros. No tempo de Rabelais, havia uma elite escrevendo para elite. O próprio Rabelais pertencia naturalmente a um estrato social superior. Mas os historiadores atestam, por outro lado, a enorme popularidade de Rabelais junto aos leitores mais humildes, ou mesmo entre analfabetos, que apenas ouviam falar de suas histórias. Ele era engraçado. Zombava dos grandes. Inventava causos incríveis e mágicos. Aliás, Rabelais baseia-se, para escrever suas obras, em folhetins extremamente populares na época, que narravam peripécias e trapalhadas de seres gigantes.

Na verdade não pretendo fazer nenhuma comparação, apenas iluminar um contraste. No tempo de Rabelais, havia uma censura drástica a qualquer crítica abertamente política. Com sua literatura quase desesperadamente hilária, Rabelais expressa, a seu jeito, as dores e misérias de seu tempo. O que me impressionou foi que o mundo levou a sério, muito à sério, a ponto de serem escritos volumes e volumes de "estudos rabelaisianos", todas aquelas histórias sobre intermináveis bebedeiras, comilanças, sonecas vespertinas, sexo e procedimentos fisiológicos.

A leitura de Rabelais me chocou profundamente porque me pôs diante do contraste avassalador com a seriedade, correção política e convencionalismo dos dias atuais. Em nossos TV, rádio, imprensa escrita, cinema e literatura, mesmo em seus programas, seções e vertentes mais ousados e picantes, e mesmo com toda a falação contra censura, não vejo uma grama da liberdade de expressão (com raríssimas exceções na literatura) que encontro numa obra publicada no século XVI!

Bem, ninguém tem culpa disso. É um fato cultural ou sociológico, e a equiparação, eu admito, entre século XVI e hoje é um tanto absurda, mas eu não consigo deixar de pensar nesse contraste enquanto navego pela blogosfera.

Neste sentido, o romance de Reinaldo Moraes, Pornopopéia, é um oásis no deserto. Reinaldo é nosso Rabelais, tanto no conteúdo, focado no lado carnal e demasiadamente humano, quanto na forma, onde o sarcasmo, o humor, a ironia invadem e dominam a sintaxe. Toda a complexidade que outros escritores procuram dar à trama, ou à psique dos personagens, Moraes confere à relação entre os seres linguísticos. O protagonista de Moraes é a frase - na sua relação com outras frases, do mesmo sexo, do sexo oposto ou consigo mesma.

O personagem principal, inclusive, é uma espécie de gigante sobrehumano, um Gargantua pós-moderno. Ele consegue, no mesmo dia, ingerir quantidades homéricas de álcool, cocaína, maconha, lsd, praticar sexo animal, repetidamente, com várias parceiras, e no dia seguinte, enquanto continua cheirando cocaína e fumando maconha, manter os nervos em forma para escrever fluidamente um romance magistral (pois o mesmo é narrado em primeiro pessoa).

A vida às vezes é mais incrível que a realidade, talvez alguém poderia fazer isso tudo, mas o personagem de Moraes não cria a empatia que permitiria ao leitor perdoar a falta de verossimilhança. O leitor sente uma inveja tão grande (não do uso de drogas, mas da vitalidade algo divina deste anti-herói) que não consegue gostar tanto do texto.

Esta convergência entre verossimilhança, originalidade e empatia é uma fórmula poderosa, que produziu os grandes clássicos, porque ela enriquece a obra estética com densidade política. Não é a tôa que, durante séculos, a leitura da Ilíada foi a base da educação da Grécia Antiga.

Verossimilhança, modernamente falando, não significa uma história "crível", ou amarrada aos fatos da realidade concreta; significa antes coerência interior, segundo os parâmetros particulares de cada obra.

No entanto, tão difícil quanto produzir um texto verossímil, e agora me refiro a literatura propriamente política (artigos, crônicas, posts) é conferir-lhe originalidade e empatia. Sem essas características, o texto, mesmo emitindo uma opinião aparentemente justa, não gera nenhuma energia nova. Não muda efetivamente nada. Ao contrário, muitas vezes um texto político aparentemente progressista, vocalizando protestos justos e mesmo urgentes, apenas ajuda a promover desânimo. Vemos isso em toda parte. Mídia e blogosfera às vezes parecem unidos no objetivo de nos fazer acreditar que o mundo é uma droga, o Brasil é uma droga, os políticos são uma droga, e que nem o Hermeto Pascoal enxerga muito bem.

À esquerda, um bando de chorões neurastênicos, a pretexto de exercerem militância ou ativismo virtual, vomitam discursos óbvios, raivosos e desesperançados. À direita, vicejam argumentos verdadeiramente apocalípticos, alguns pintados com o sarcasmo mau-humorado e histérico de membros do Antigo Regime.

Os segmentos mais engajados da juventude, com líderes assim, não vêem nada melhor do que acampar na praça, tocando violão, e repetir discursos vazios, desconexos e tristes. "A política acabou". "Os partidos acabaram". "A democracia acabou". Fala-se em falta de perspectivas... Como assim? Até entendo que um jovem iraquiano mutilado e sem instrução pense assim, mas um jovem europeu? E a aventura do conhecimento, onde foi parar?

Na academia, inaugurou-se uma nova escolástica, com gente produzindo textos cada vez mais esquizóides, incompreensíveis, herméticos, para desespero de milhões de estudantes, que precisam fingir entendê-los, mas como isso é impossível, acabam se tornando repetidores cínicos.

Enquanto isso, o planeta gira e a cada ano a economia global incorpora centenas de milhões de seres humanos que, até há pouco, não conheciam o significado de democracia, nunca haviam estado num cinema, nem jamais consumiram quantidade satisfatória de proteínas.

E acho injusto e equivocado que se atribua esses avanços sociais, que a humanidade vem experimentando, de maneira constante e firme, há séculos, à economia de mercado ou ao capitalismo. São vitórias da humanidade! Do instinto biológico ou divino que leva o homem a se organizar e a procurar instrução. O capitalismo não existe enquanto sistema econômico, ou antes, não é um regime organizado ideologicamente, mas esse é outro debate, que fica para depois.

3 de março de 2012

Mijando no Rio Sena (uma análise da crise européia)

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(Esta mulher com pose lânguida e doce lembra-me a Europa, continente melancólico, pessimista, mas sempre idealista e apaixonado pela liberdade. A pintura é de Modigliani. Lembrete: o Óleo do Diabo será atualizado aos sábados.)

A Europa não está em crise. Muito pelo contrário, o Velho Continente vive o seu apogeu político, econômico e social. A mesma coisa vale para os Estados Unidos, mas concentrar-me-ei na Europa neste breve ensaio, para não me estender muito.

Muita gente acreditará que essas afirmações saem da boca de um louco furioso, de um palhaço, de um imbecil.

Mas é o que eu afirmo. E provo.

Crise, quem vive hoje é o continente africano, os países árabes, e muitas regiões ou países da América Latina. Aí encontraremos, em magnitude jurássica, fome, violência, doenças, corrupção e ditadura.

A Europa vive uma crise de obesidade, provocada pelo excesso de bem estar e riqueza.

A vida média de seus cidadãos registrou um salto nos últimos 30 anos, sobrecarregando os sistemas previdenciários, cujos déficits monstruosos representam um dos problemas mais graves nas contas públicas dos estados europeus.Não só as pessoas estão vivendo mais, como a taxa de natalidade caiu, elevando substancialmente o percentual da população economicamente não-ativa.

Naturalmente, alguns países europeus enfrentam problemas financeiros graves. Em Espanha e Grécia, o desemprego atingiu níveis alarmantes.

Não estou dizendo que a situação européia é perfeita. O problema é analisá-la com base num conjunto exíguo de dados, e por um período curto de tempo.

Se olharmos para história da Europa dos últimos sessenta anos, o que veremos? Guerras, miséria, destruição. Para não irmos muito longe, vamos nos limitar aos últimos 20 ou 30 anos.

As grandes e médias cidades européias de hoje tem sistemas de transporte público, saneamento, educação e saúde muito melhores do que possuíam há vinte anos. Há bibliotecas públicas em cada bairro. Portos, aeroportos, estradas, ferrovias, a Europa avançou em todos esses segmentos. Há projetos grandiosos, iniciados há vinte anos, que só foram concluídos há pouco. Penso em Paris, por exemplo. O metrô de Paris, inaugurado no início do século XX, conecta-se aos trens que levam às periferias e aos trens que levam a outras regiões da França e Europa. Todo esse sistema tem sido melhorado década após década, e tenho certeza que é bem superior hoje do que era há quinze anos.

Falam-se em corte dos programas sociais, é verdade, mas são cortes pontuais. A estrutura do bem estar social na Europa se mantém intacta: uma previdência social universalizada. Não é preciso sequer contribuir para se aposentar na Europa. Todos tem direito, o que é o supra-sumo do humanismo, pois parte da premissa de que todo ser humano é, de uma forma ou outra, um trabalhador, mesmo que não integre um sistema formal. Essa universalização da previdência só pode ter sido atingida há poucos anos, visto que começou a ser implementada a partir da década de 60 ou 70.

A "crise" européia, na verdade, reflete duas transformações fundamentais no planeta:

  • Uma reviravolta profunda na divisão internacional do trabalho, com migração de setores inteiros da indústria global para a China. 
  • Uma depressão pós-imperialista muito forte no europeu. Depois da II Guerra, a Europa continuou dominando colonialmente (explicitamente ou não) grande parte do planeta, especialmente a África e partes da Ásia. Esta situação permitiu um conforto financeiro que deu condições para seus governos promoverem um generoso Estado de Bem Estar Social. Aliás, essa é uma verdade dura que os europeus tem dificuldade de enxergar: a vida confortável do europeu foi construída, em grande parte, em detrimento do continente africano, que fornecia matéria-prima e mão-de-obra baratas e comprava produtos europeus. 
Quando a Ásia começa a produzir as mesmas mercadorias e a exportá-las a preço mais competitivo, a Europa faz uma transição difícil, que ainda está em curso: sua economia desloca-se cada vez mais para o setor de alta tecnologia e serviços.  Como alta tecnologia, não me refiro somente a produtos de informática, que aliás também já estão sendo produzidos, em sua maior parte, na China, mas sobretudo a máquinas de alta precisão, medicamentos, produtos químicos.  

É preciso sempre lembrar, todavia, que à medida em que novos pólos industriais se consolidam fora da Europa e EUA, criam-se igualmente gigantescos novos mercados, fortemente interessados numa série de produtos do primeiro mundo. O faturamento da indústria de entretenimento norte-americana na Ásia, hoje, indica que possivelmente em pouco tempo este poderá ser o seu maior mercado. A quantidade de turistas que viaja à Europa também tem crescido exponencialmente.

Ou seja, a economia mundial tende ao equilíbrio, mesmo que aos repuxões. A Europa, na verdade, é uma das regiões que melhor enfrenta essa travessia, visto que possui vastos programas de assistência social, que amortecem os prejuízos humanos inevitáveis. 

Nós, da América Latina, enfrentamos uma violenta transição econômica nos anos 90, sem nenhuma ajuda do Estado. Ao contrário. A Europa baixa os juros na crise, o Brasil aumentava. A crise européia não gera inflação; nós experimentamos processos desumanos de hiperinflação. Os gregos estão desesperados porque o governo determinou uma redução de 20% do salário mínimo e corte no salário do funcionalismo público. Nós vivemos décadas de corrosão do salário mínimo, que chegou ao fundo do poço em meados dos anos 90, quando ficou inferior a 40 dólares. O funcionalismo público brasileiro também experimentou contínua redução de salário (via inflação) durante muito tempo. 

O que a Europa vive hoje são as convulsões de um renascimento como um continente ainda mais unido. A decisão de realizar a união fiscal dos países, por exemplo, aponta para uma unificação muito mais consistente. 

Acho exagero as análises que, referindo-se à Grécia, falam em novo colonialismo. O governo grego é democrático, e suas decisões, difíceis e polêmicas, representaram uma escolha soberana. A Grécia poderia ter optado por sair da zona do euro, mas todas as pesquisas apontavam o desejo do povo grego de continuar participando da união monetária. 

Alguns textos, mais superficiais, falaram em época dourada dos gregos. Isso é bobagem. Só é possível entender a Grécia a partir de sua história moderna, após a II Guerra. A Grécia também viveu séculos de opressão, miséria e falta de esperança. Somente nas últimas décadas o país encontrou uma estabilidade que possibilitou aos gregos gozar de um período de calma prosperidade. Vimos, porém, que o país cometeu erros macroeconômicos terríveis, que deveriam ter sido solucionados há muitos anos.

A Grécia sofreu ainda dois impactos desindustrializantes: com a União Européia, passou a ser mais barato comprar da Alemanha do que das indústrias locais; e a China não fica longe. Não acho, porém, que devemos gastar nossa piedade com a Grécia, visto que nós, brasileiros, temos um percentual de miséria muito maior do que na pátria de Sófocles; e logo ali abaixo tem início o continente africano, cujos países ainda experimentam suplícios que fazem da crise grega uma comichãozinha desagradável. O desemprego é muito alto na Grécia, mas quase ninguém passa fome.

A chamada crise na Europa reflete também o fracasso econômico de suas ex-colônias na África. E a culpa recai mais uma vez sobre a própria Europa, que não investiu de maneira inteligente e sustentável nesses países, preferindo financiar ongs assistencialistas que jamais contribuíram para um desenvolvimento econômico concreto (em termos agrícolas e industriais, por exemplo) do continente negro.

Mas a África está crescendo, o que vai beneficiar a Europa no médio e longo prazo, na medida em que criará novos mercados para os serviços e produtos europeus.

O mais famoso poema de Leopardi, o maior poeta italiano depois de Dante, intitula-se O infinito. É um poema curto e belo como um orgasmo. Fala de uma colina de onde o poeta admira o horizonte, e frui o silêncio profundo que lhe faz pensar no infinito. Em seus ouvidos, porém, lhe chega o som do vento agitando as folhas das árvores; daí ele compara aquele "infinito silenzio a questa voce", e vem-lhe a consciência do eterno, das eras mortas e das presentes e vivas. Termina com uma (raríssima na prosa leopardiana, quase sempre pessimista e melancólica) nota de alegria suave e transcendente: "Assim, nesta imensidão se afoga o meu pensamento: e o naufragar me é doce neste mar".

Minha opinião sobre a crise européia lembra esse poema. Eu a vejo como o ruído do vento agitando as folhas, e o comparo ao silêncio profundo das eras mortas, com seus massacres, seus atos de clamorosa injustiça, suas belas e cruéis revoluções, séculos e séculos de fome, miséria, desesperança, guerras. Meditando nesse quadro assombroso de sofrimento, a maior parte dele já superado, sinto uma doçura imensa quando me sento à beira do Sena, na pontinha da Ile de la Cité, numa tarde tão gélida que não há ninguém por perto.

Acompanhado por um pacote com seis long-necks Leffen, pelas quais paguei menos de sessenta centavos de euro cada, contemplo as ondinhas brilhantes de suas águas. De vez em quando, levanto-me, confiro se nenhum barco está passando, e mijo solene e elegantemente no rio, chorando e rindo ao mesmo tempo ao pensar na ironia fraterna de Voltaire, na escatologia cômica de Rabelais, na emoção quase piegas de Jules Michelet ao analisar a Revolução Francesa - e na inacreditável inocência e simplicidade de espírito com as quais o pobretão Rousseau mudou o mundo.


(Pontinha da Ile de La Cité, o coração histórico de Paris)

(Ile de la Cité)

*

Sempre caro mi fu quest'ermo colle,
e questa siepe, che da tanta parte
dell'ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
spazi di là da quela, e sovrumani
silenzi, e profondissima quiete
io nel pienser mi fingo; ove per poco
il cor non si spaura. E come il vento
odo stormir tra queste plante, io quello
infinito silenzio a questa voce
vo comparando: e mi sovvien l'eterno
e le morte stagioni, e la presente
e viva, e il suon di lei. Cosí tra questa
immensità s'annega il pienser mio:
e il naufragar m'é dolce in questo mare.

Giacomo Leopardi

*

Sempre me foi caro esse monte solitário
e estas árvores, que de vários pontos
escondem o horizonte.
Sentado e contemplando os intermináveis
espaços desde lá até as árvores, e os sobrehumanos
silêncios, e sua profunda calma,
eu mergulho em fantasia; e por pouco
o coração não pára. E ouvindo o vento
bramir entre as plantas, eu
comparo o infinito silêncio a esta voz (do vento)
e me sobrevêm o eterno
e as mortas estações e a presente
e viva, e o som delas. Assim, em meio a esta
imensidade se afunda meu pensamento:
e naufragar é doce neste mar.

(Tradução: Miguel do Rosário)