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12 de agosto de 2009

Os EUA estão de volta aos anos 30?

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Por João Villaverde

Depois dos tempos neoliberais dos anos 80, 90 e 00, a explosão da enorme crise financeira nos Estados Unidos, no ano passado, fez ressurgir um modelo há tempos dado como morto: o keynesianismo. Isso é o que dizem alguns economistas e analistas expoentes do cenário internacional, certo? Quer dizer, os keynesianos estão eufóricos com o "retorno". Os liberais (ou clássicos) estão enraivecidos com o que chamam de "retorno do keynesianismo".

Ou seja, está todo mundo falando em keynesianismo, desde, pelo menos, os acontecimentos de setembro/outubro do ano passado.

Vamos pensar um pouco, então.

Segundo a teoria de John Maynard Keynes, que virou papa econômico entre os anos 30 e 60 do século XX, o Estado deve participar ativamente da economia. Ou seja, não deve apenas regular mercados, mas atuar como agente, seja investindo em obras públicas, contratando funcionários, aumentando gastos, etc.

Foi com as teorias de Keynes que os EUA, sob a presidência de Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) sairam da mais grave crise da história do capitalismo: a Grande Depressão que se seguiu ao crash de 1929. Depois, a partir do sistema desenhado pelo acordo de Bretton Woods de 1944, os ideais keynesianos viraram consenso pelo mundo ocidental. O Estado de Bem-Estar Social europeu é resultado direto deste consenso.

Importante lembrar que o contra-peso ideológico representado pela União Soviética, com Estado centralizador e soberano sobre a sociedade e o mercado, exercia grande força econômica em muitos pensadores ao longo das décadas de 30 e 60, mais ou menos.

Keynes gostava de dizer (ou seria Roosevelt? não lembro com certeza) que suas ideias ambicionavam salvar o capitalismo dele mesmo, isto é, dar ao sistema uma segurança que a forma liberal (ou neoliberal) era incapaz de assegurar.

Por que então os analistas -- políticos e econômicos -- dizem que os EUA de Obama são keynesianos?

O déficit fiscal americano saltou, entre o primeiro semestre de 2008 e o primeiro semestre de 2009, de US$ 285,85 bilhões para US$ 1,086 trilhões. Estão computados aí, os gastos promovidos pelo governo americano para salvar o país de uma Depressão semelhante a que ocorreu nos anos 30. Obama, assim que assumiu, já saiu anunciando pacote de US$ 800 bilhões para "salvar" a economia -- acabou sendo aprovado em US$ 787 bilhões pelo Congresso. Pouco antes, ainda sob Bush, em outubro/novembro de 2008, o secretário do Tesouro Henry Paulson lançara pacote semelhante, da ordem de US$ 700 bilhões em gastos federais.

A diferença é que as centenas de bilhões de dólares gastos pelo governo americano foram, em sua maior parte, transferidos para os bancos (comerciais e de investimentos) que estavam na beira da falência. Transferência direta de dinheiro, além de títulos repassados e garantia financeira. Tudo para manter o sistema financeiro seguro.

Existem também as enormes quantias repassadas às indústrias automobilísticas -- GM, Ford e Chrysler -- para que estas não falissem.

Há mais gastos em obras federais? Certamente. Mas eles não são tão vultosos assim e não se comparam -- nem de longe! -- com o que Roosevelt levou à cabo nos anos 30.

***
Imagem tirada daqui.

26 de maio de 2009

O terceiro mandato de Lula e o intrometido interessado

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Por João Villaverde

A história de permitir um terceiro mandato ao presidente Lula vem causando bafafá, como era de se esperar, é claro, em todo o meio político-midiático. Existem dois grupos de parlamentares que giram em torno de duas propostas acerca disso:

1) O primeiro grupo segue a proposta que prevê a possibilidade de um terceiro mandato, tornando constitucional uma terceira candidatura de Lula à presidência, nas eleições de 2010.

2) O segundo grupo defende a prorrogação por mais dois anos dos atuais mandatos de presidente, governadores, deputados e senadores.

Sobre isso, o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes disse o seguinte:

"Acho extremamente difícil fazer essa compatibilização com o princípio republicano. As duas medidas têm muitas características de casuísmo e, por isso, vejo que elas dificilmente serão referendadas ou ratificadas pelo STF."

Ou seja, Mendes diz que a primeira proposta é incompatível com o princípio republicano, e a segunda é casuística. E já adianta: elas dificilmente serão referendadas pelo Supremo.

Legal que nada disso foi problema em 1997, quando o Congresso de então aprovou a medida que alterava a Constituição e autorizava o então presidente Fernando Henrique Cardoso à disputar um segundo mandato. Até aquele ano aquilo era proibido - portanto, era incompatível com o princípio republicano - e a emenda também foi casuística, uma vez que todos os governadores e prefeitos no poder adoraram a nova ideia e, por isso, apoiaram.

Meu médico receitou exercitar a memória porque assim retardo o envelhecimento cerebral e ajudo na agilidade do pensamento. Então, e apenas por isso, gostaria de lembrá-los do seguinte: no governo FHC, o advogado-geral da União era Gilmar Mendes. No apagar das luzes (não confundir com o apagão de 2001) do governo FHC, em 2002, Gilmar Mendes foi escolhido para ser ministro do STF.

Mas isso é coincidência, evidentemente.

Como magistrado experiente, ministro do Supremo a sete anos, Gilmar Mendes deveria saber que ele pode ter a opinião que quiser sobre o que for, mas deve se pronunciar apenas nos autos - ao menos em assuntos que são de sua alçada jurídica. Ou seja, se ele quiser falar abertamente que acredita numa vitória do Vasco amanhã, ele está livre. Mas dar palpite sobre temas que, oportunamente, poderão recair em votação pelo plenário do STF, Gilmar Mendes está antecipando julgamento.

E antecipar voto em questões da República é algo altamente incompatível. Para não dizer casuístico.

21 de maio de 2009

Convite

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Caros,

Os leitores deste espaço - especialmente os residentes em São Paulo - estão mais do que convidados a comparecer ao debate que se realizará na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de SP na próxima segunda-feira à noite.

O que:
Crise Econômica e o acompanhamento da mídia

Quem:
Luis Nassif, jornalista, titular do blog Luis Nassif Online
Antônio Corrêa de Lacerda, economista, professor-doutor do Departamento de Economia da PUC-SP, conselheiro da Sobeet (Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e Globalização)
Paulo Totti, jornalista, repórter especial do jornal Valor Econômico

Mediadores:
Hamilton Octávio de Souza, chefe do Departamento de Jornalismo da PUC-SP
João Villaverde, estudante de Jornalismo pela PUC-SP, membro do Centro Acadêmico Benevides Paixão, e colaborador deste Óleo do Diabo.

Quando:
Segunda-feira, 25 de maio, das 19hrs às 23hrs

Onde:
Auditório - Sala 239 - Prédio Novo da PUC-SP, entre as ruas Ministro de Godoy e Monte Alegre

O debate é aberto a todos - não é preciso pagar ou se inscrever - basta encontrar o auditório.

12 de maio de 2009

A Coreia do Norte e Bush - a crônica do século XXI

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"Você não pode chamar alguém com quem quer negociar de 'eixo do mal'. Imagine que você brigou com sua mulher, que quer reatar ou até mesmo se divorciar, mas em termos amistosos. Mas aí, no começo da conversa, você a chama de 'prostituta'. Os EUA fizeram isso com a Coreia do Norte, então queimaram toda possibilidade de diálogo."

Por João Villaverde

A análise acima é de Paik Hak-soon, cientista político da Coreia do Sul, entrevistado pelo repórter Raul Juste Lores, da Folha.

George W. Bush, quando candidato pelo partido Republicano nas eleições de 2000, já mostrava - ao dizer o que pensava sobre diversas questões - ser altamente conservador. Seu conservadorismo, exemplificado dia a dia durante seus 8 anos de governo, era rancoroso e rançoso. Especialmente a partir do 11 de setembro de 2001, quando Bush ganhou o mote que elevou sua popularidade às alturas, o governo americano instituiu um "novo" modelo.

Passara a usar todo o poder hegemônico - a teoria de conquistar corações e mentes - lapidado ao longo do governo Clinton (muito ajudado, bom que se lembre, pela decadência formal do contraponto ideológico simbolizado pelos soviéticos) como agulha, ou bala, para exercer seu poder de dominação. O que Bush e seus lacaios - a turma que o aparelhava no governo - queriam (e em boa parte fizeram) era forçar o mundo a engolir a supremacia americana.

A supremacia militar, a supremacia ideológica, a supremacia cultural, a supremacia do dólar (econômica e financeira).

Em termos de política externa, Clinton praticara uma política de inteligência de não agressão e persuasão. Tinha o momento histórico ao seu lado, bem como sua posição de negociação. Exercia todo a supremacia dos Estados Unidos de uma forma igualmente unilateral, mas fazia parecer consensual. Havia consenso, mas era um consenso conquistado pela diplomacia e validado pela ideologia. Era hegemônico no sentido stricto senso, ou, melhor dizendo, gramsciano.

Bush jogou tudo isso no lixo.

Estrategicamente falando, foi ruim inclusive para os americanos. Eles perceberam isso no ano passado, quando a disputa pelo cargo de presidente foi evidenciada por dois críticos de Bush. Não apenas o candidato democrata - rival político direto - mas também John McCain, a opção republicana, pertencia a ala mais moderna do partido (mesmo McCain sendo o candidato com idade mais avançada a ter disputado uma eleição).

O moderno, compreendido com um atraso indesculpável pela sociedade americana, é entender as diferenças - todas elas - e prezar pelo poder interminável das negociações.

O governo George W. Bush não era, sob nenhum ponto de vista, moderno.

Ao optar pela guerra, por ignorar a existência dos outros, exemplificada pelo desleixo e mal trato para com a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2003 e 2004, e pelo apoio a grupos políticos em outras nações, exemplificados pela direitização israelense vivida no período e o malfadado golpe de Estado ocorrido na Venezuela em 2002, o governo Bush sacramentou as mentes e corações neste início de século XXI.

Bush demonizou Chávez, o Irã, a Coreia do Norte, e os "terroristas" do Hizbollah e do Hamas. (Re)criou-se o maniqueísmo do "conosco ou contra nós". Dos bonzinhos (americanos e seus parceiros) contra os bandidos (os demonizados citados acima).

Hoje a irracionalidade belicista parece irrefreável no Oriente Médio, na Europa Oriental e na Coreia do Norte. E não existem sinais de que isso seja bom para ninguém, como dizia o slogan martelado pelos americanos nos últimos oito anos.

O maior abacaxi que a nova administração dos Estados Unidos herdou não é a crise - que pode ser debitada igualmente na conta de ambas ideologias partidárias dominantes, uma vez que boa parte das medidas de liberalização financeira foram feitas sob os democratas nos anos 90. O verdadeiro abacaxi herdado é o desrespeito ao resto do mundo.

O governo Obama terá de lembrar a todos que do seu país também nascem negociadores, não apenas cowboys.

13 de abril de 2009

Lambanças policiais

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Por João Villaverde

O corregedor Amaro Vieira Ferreira, da Polícia Federal, foi indicado tempos atrás como relator do inquérito interno da PF para averiguar a conduta do delegado Protógenes Queiroz durante a Operação Satiagraha. O inquérito de Amaro vem gerando uma farra desnecessária: ele ainda não terminou suas investigações, mas trechos mil já foram vazados. Detalhe: o inquérito nasceu para investigar o vazamento e suposto favorecimento da Satiagraha à TV Globo, que foi a única empresa de comunicação a conseguir imagens dos presos pela Satiagraha, no dia 08 de julho do ano passado.

Quer dizer, uma situação ridícula se desenhou: o inquérito do vazamento foi vazado.

Mais que isso, o corregedor Amaro pratica uma série de ilações em seu relatório (que, de tão vazado, pode ser lido clicando aqui). Ao invés de investigar e apurar o suposto vazamento de Protógenes - que nada influi no resultado da Satiagraha, bom lembrar - o corregedor Amaro prefere atacar e desqualificar Protógenes - aí sim, numa tentativa de anular os efeitos da Satiagraha.

Num dos trechos, Amaro afirma que a participação de agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) ao lado de funcionários da Polícia Federal durante a Operação Satiagraha foi ilegal. Segundo o corregedor, os servidores da Abin foram "introduzidos e mantidos clandestinamente" nos trabalhos da operação "por iniciativa de Protógenes", sem autorização judicial ou formalização.

Detalhe importante: a Abin e a Polícia Federal pertencem a algo mais amplo: o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). E segundo prevê a legislação que rege os princípios do Sisbin, os agentes da inteligência brasileira - Polícia Federal e Abin - podem participar de operações de ambas instituições e essa ajuda não necessita de autorização judicial ou mesmo de formalização. Enquanto a Abin e a Polícia Federal tem prerrogativas e trabalhos distintos, seus objetivos são os mesmos e algumas práticas operacionais são semelhantes. Ou seja, a participação de agentes de uma instituição em operações e tarefas da outra não é, de maneira alguma, ilegal.

Ao invés de inquerir ou averiguar, o delegado Amaro está desvirtuando seu papel de corregedor, preferindo atacar um delegado de sua instituição, a PF, e o próprio Sisbin.

O mais grave disso tudo é que ninguém discute nada. Só o que vemos é a repercussão do inquérito (vazado) de Amaro, como se aquele conjunto de ilações fossem todos verdadeiros. Fica uma situação engraçada: quando tiveram acesso aos relatórios de Protógenes, foram logo procurando erros e atacando o delegado, acusando a Abin e perseguindo o juiz federal. Já o inquérito (vazado) da corregedoria da mesma PF é tido como indiscutível, como verdade verdadeira. Nessa jogatina de interesses, a mesma instituição - a Polícia Federal - passa de incompetente a super inteligente em questão de meses.

O que incomoda é que não é preciso muito trabalho ou pesquisa para discutir o inquérito (vazado) do corregedor Amaro. Não precisa conhecer o regimento interno da PF, da Abin, a constituição do Sisbin ou mesmo a legislação brasileira. Precisa apenas pegar o telefone, ligar para alguém que conheça e fazer uma pergunta:
"Abin e PF, é ilegal?"
- Não, não é.

Pronto, acabou.

12 de março de 2009

Collor e Dantas

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Por João Villaverde

Pesquisando sobre a imprensa escrita e a candidatura de Fernando Collor de Mello à presidência do Brasil, em 1989, me deparei com reportagem da revista IstoÉ, edição de 07 de março de 1990, sobre a futura ministra da Economia, Zélia Cardoso.

Como se sabe, Collor fora eleito presidente no finzinho de dezembro de 1989. Em seguida, viajou à Europa para festas de fim de ano e começou a discutir nomes para pôr seu projeto de "modernizar o Brasil" em prática. Graças aos mecanismos costurados pelo presidente José Sarney durante a Constituinte (1987-88), Collor assumiria ainda sob a regra antiga: no dia 15 de março. Até lá, nos primeiros 2 meses e meio de 1990, o presidente ainda era Sarney.

Collor viajava, conversava, pensava, costurava, escolhia, definia. Ao longo de janeiro e fevereiro, definiu os últimos nomes. Entre eles, o de Zélia como ministra da Economia (o nome anterior da pasta, Fazenda, tinha sido abolido, dentre outras mudanças cosméticas). Com isso - e com a hiperinflação destruindo o poder de compra dos salários - era importante conhecer a futura ministra.

Daí que a IstoÉ, sete dias antes da posse do novo presidente e da ministra Zélia, produz reportagem recontando a vida, a carreira e as negociações em torno de Zélia. Na capa, ela aparece olhando para cima, com feição esperançosa, com a manchete, em letras grandes, logo abaixo de seu rosto: "Confiante em Deus". Transcrevo a seguir, trechos da reportagem da revista.

Até este ponto, a matéria contava que Collor já decidira sobre boa parte de seu ministério, faltando ainda o nome da economia. O mais conhecido, dentre os apontados, era Mario Henrique Simonsen.


Ficaram faltando para a unanimidade, do lado dos que apoiaram Collor, O Globo e o favorito de O Globo, o ex-ministro Mário Henrique Simonsen - derrotado, segundo a versão do próprio jornal, porque radicalizou numa conversa com o presidente eleito a respeito da dívida externa. Simonsen, que é do board do nosso maior credor, o Citibank, não aceita a ideia de que o governo brasileiro retire seu aval na parcela da dívida que a União não contraiu diretamente.

Nesse sentido, aponta a reportagem da IstoÉ, Collor preferia uma linha semelhante a de Dilson Funaro, ministro da Fazenda de Sarney (o segundo, responsável pelo Plano Cruzado), que decretou a moratória da dívida externa. A reportagem segue:


Mas o candidato de O Globo pode ter se desgastado à toa, já que a ministra indicada não toca mais, publicamente, naquela promessa de campanha. Após o anúncio, Simonsen ficou quieto. O Globo, na sua ânsia de nomeação, noticiava, em janeiro, na companhia de seu rival Jornal do Brasil, um convite feito por Collor a Simonsen, durante encontro que, pelo que diziam os dois matutinos, ocorreu na exata hora em que o presidente eleito estava rigorosamente impossibilitado de pronunciar qualquer convite - Collor encontrava-se diante da broca de seu dentista, lá mesmo, no Rio de Janeiro. O episódio pulverizou as últimas esperanças dos cariocas de emplacarem o ministro da Economia - e consolidou uma vitória que começou a se desenhar na chamada batalha de Roma.

Tão logo se refugiou da tensão da campanha, na Europa, na passagem de ano, seu influente ex-sogro, Joaquim Monteiro de Carvalho, o interceptou na capital italiana, tendo a tiracolo o economista Daniel Dantas, funcionário gradualíssimo do banqueiro Antônio Carlos de Almeida Braga e outro ministeriável da facção Rio. Collor percebeu o perigo e imediatamente convocou Zélia a Roma.

Dantas, 35 anos, administrador da Icatu Participações - a holding que coordena os negócios de Almeida Braga - dispunha da torcida aberta do chefe, dos Monteiro de Carvalho, do dr. Roberto Marinho, dono das Organizações Globo, e do ex-ministro Simonsen. Tinha muitas ideias na cabeça e uma franca disposição a divulgá-las na imprensa. Como eram bastante recessivas, provocaram reações dos sindicatos e deram a chance que Collor esperava: despachou Dantas para uma posterior conversa com Zélia, em São Paulo.

Dias depois, já de volta ao Brasil, Collor confidenciou que Dantas era 'um administrador de fortunas e o Brasil, um país de misérias'. Naquele momento, Zélia talvez ainda não estivesse escolhida - mas Collor deixava claro que tampouco era carta fora do baralho.

- A matéria da IstoÉ não foi assinada. O diretor de Redação era Mino Carta.

- Collor acabaria escolhendo Zélia, e, juntos, baixaram o Plano Collor, no dia seguinte à posse do presidente. O Plano, entre outros pontos trágicos, continha o confisco da poupança. A economia brasileira foi lançada em grave recessão ao longo de 90, 91 e 92. Zélia seria trocada, em 1991, por Marcílio Marques Moreira, o homem que instituiu o regime de taxas de juros explosivas no Brasil. Collor sofreu o impeachment, no fim de 1992.

- Daniel Dantas continuou no Icatu até 1993/94, quando fundou seu próprio negócio, o banco Opportunity, se embrenhando na mais obscura aventura empresarial do Brasil moderno, a partir da privatização da Telebrás, em 1998.

2 de março de 2009

Rápida reflexão sobre a excelente telefonia brasileira

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Por João Villaverde

A partir dos anos 80, no longo processo de reforma do modelo varguista de desenvolvimento no Brasil, uma das ideias defendidas com mais ênfase era a privatização da telefonia. Essa ideia foi ganhando massa crítica entre os acadêmicos - majoritariamente de Economia e Administração do eixo Rio-São Paulo - que retornavam com mestrados e doutorados de escolas americanas. Por aqui, esses intelectuais passaram a ocupar cada vez mais espaços estratégicos.

Aos poucos ocuparam a imprensa, ora como fonte, mais à frente como articulistas. Depois, passar a altas posições em grandes empresas. Finalmente, foram ocupando espaços executivos no governo. Nos anos 90, seguindo um processo que se dava em toda a América Latina, o discurso de "inserir o país na modernidade, enxugando o Estado, fortalecendo a iniciativa privada" foi colocado em prática.

A ideia de privatizar a telefonia foi então colocada em prática.

O objetivo do modelo privatizado, conforme se apregoava, seria obter a universalização do acesso às telecomunicações (basicamente, ao sistema de telefonia), por meio de empresas concessionárias que operariam em um mercado concorrencial e competitivo. Adicionalmente, não se deveria esquecer de assegurar o desenvolvimento industrial e tecnológico do país. O argumento principal era de que a concorrência iria conduzir à universalização, sem prejuízo para o desenvolvimento industrial e tecnológico.

Para verificar se todo esse discurso bonitinho valeu a pena ou não é preciso, portanto, medir o que foi alcançado em temos de universalização, competição e desenvolvimento industrial.

Pois hoje, segunda-feira 02 de março, a seguinte nota publicada na Folha Online exemplifica um pouco todo aquele processo de passar os serviços de telecomunicação das mãos do Estado para as mãos das empresas privadas. A matéria pode se lida clicando aqui.

A ONU divulgou hoje estudo que apresenta informações sobre os serviços de telefonia e internet em 150 países. O Brasil aparece entre os 40 em que o uso de telefones fixos e celulares consome a maior fatia da renda per capita.

Tomando como referência o preço de um pacote básico, a União Internacional de Telecomunicações (UIT) chegou à conclusão de que o uso do celular no Brasil é um dos mais caros, consumindo o equivalente a 7,5% da renda média per capita do país. Numa escala crescente de custo, o país ocupa a 114ª posição. A telefonia fixa morde uma fatia menor da renda do brasileiro (5,9%), mas também coloca o país entre os últimos, no 113º lugar.

A internet de banda larga, considerada pela UIT importante ferramenta para o desenvolvimento econômico, tem um preço elevado no Brasil. De acordo com o estudo, seu custo mensal equivale a 9,6% da renda média per capita brasileira. E lembrem-se, na momento da reflexão, que nossa renda é baixa. Somos um país de Terceiro Mundo, bom lembrar. Essa realidade foi totalmente ignorada quando se passou os serviços de telecomunicações para mãos privadas.

Em seu seminal "A Lógica do capital-informação", o pesquisador Marcos Dantas, doutor em Engenharia da Produção pela Coppe-UFRJ, foi enfático: "o modelo que se construiu e tentou implantar nas telecomunicações brasileiras está errado. Está errado porque ignorou a realidade. A conhecidíssima má distribuição de renda brasileira foi completamente ignorada na hora em que o governo Fernando Henrique Cardoso definiu as características básicas do seu modelo para as telecomunicações".

Qualquer análise isenta e desinteressada apontaria para a incapacidade (sem falar na falta de vontade) de o investimento privado lograr superar nossas barreiras de renda, liderando assim um programa destinado a democratizar a telefonia no Brasil.

"A experiência internacional anterior a 1998 (quando se deu a privatização da Telebrás no Brasil) permitia afirmar que em nenhum lugar do mundo a concorrência democratizou as telecomunicações. Pelo contrário: nos (poucos) países onde a telefonia fora de fato universalizada, isso ocorreu por meio de monopólios públicos. Mais: antes dos leilões da Telebrás, também se sabia muito bem que o espaço para a concorrência nas telecomunicações se limita, quando muito, ao chamado mercado corporativo e ao familiar de alta renda. O governo dispunha de levantamentos feitos por empresas de consultoria contratadas pelo BNDES, confirmando que o mesmo se repetiria no Brasil. "

Não há pois surpresa no fato de a concorrência não ter vingado no conjunto do setor. Aliás, nada relacionado a péssima experiência de telefonia privada no Brasil deveria surpreender.

Ao contrário. Deveria fazer pensar.

10 de fevereiro de 2009

A Bolívia moderna

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Por João Villaverde

A nova constituição boliviana elucida alguns pontos importantíssimos da nova sociedade moderna. Afinal, o que é uma sociedade moderna? É algo complexo, mas parece consenso que devemos respeitar as diferenças culturais e sociais. O ser humano é diferente – já estamos há cinco mil anos por aqui e isso deve ser compreendido por todos. Quer dizer, se somos capazes de escolher um parceiro e com ele dividir nossas vidas – a ideia do matrimônio do catolicismo, por exemplo – e aceitar suas diferenças, por que não seríamos capazes de agir da mesma maneira com os outros, mesmo aqueles não conhecemos?

Dei uma volta longa, mas volto a nova constituição boliviana. Um ponto em especial, me inspirou nos últimos dias. Ela regulamentou, quer dizer, tornou legal e constitucional um mecanismo já usado há muito tempo em algumas regiões do país. A tarifa indígena. Uma empresa para usar os recursos dos povos originários precisa devolver a estes uma parte, que é cobrada pelos indígenas. Vou explicar melhor, mas antes é preciso entender três coisas.

1)Os povos originários são os indígenas. Eles estavam aqui antes de qualquer europeu, americano ou quem quer que seja. São seres humanos como todos os outros e não devem ser espoliados de suas terras, como ninguém gostaria de ser. 2) As empresas são criações humanas que buscam o lucro. São capitalistas de nascença, e isso é importante ter em mente. Portanto, não há distinção, da perspectiva do índio, do capital da empresa, quer dizer, se ele é nacional ou internacional. A história mostra que por dinheiro, pode ser vizinho ou estrangeiro, todos são capazes de tudo. 3) A Bolívia é um país crucial para entender a América Latina. Como escreveu o cientista político Cesar Benjamin, a história produziu diferenciações importantes. No Brasil, na Venezuela, na Colômbia, no Chile e na Argentina, predominaram povos novos, formados já no mundo moderno pela mistura de grupos humanos originários da própria América, da Europa, da África e até da Ásia, usados como força de trabalho pelo capitalismo europeu. No Peru, no Paraguai e no Equador, predominaram povos herdeiros das civilizações pré-colombianas; mesmo espoliados pela invasão europeia, preservaram línguas, costumes, formas de organização social, crenças e valores. A Bolívia ocupa um lugar especial. Não é apenas o centro geográfico do continente. É também o principal lugar de encontro desses dois grandes contingentes humanos. Por isso, sempre esteve sob ameaça de desagregação. Até recentemente cresciam as tensões separatistas.

A pressão sob a Bolívia e mais especificamente sob o presidente Evo Morales é forte desde sua vitória nas eleições de 2006. No ano passado, uma verdadeira guerra civil foi quase disparada pela tensão instaurada nas regiões ricas, que não aceitam a liderança indígena. Até por isso, a vitória da nova constituição é ainda mais importante simbolicamente.

Aliás, os aspectos mais relevantes da nova constituição são o fortalecimento da economia estatal, da economia comunitária e dos direitos dos povos indígenas originários do país. Estes ganharam, inclusive, o direito de estruturar um órgão judiciário indígena, aos quais serão aplicados princípios, valores culturais, normas e procedimentos próprios. Isso é incrível, não tem paralelo com nada já colocado em prática. Uma incoerência histórica é finalmente consertada: a grande maioria da população, os índios, eram forçados a seguir as leis e os costumes da minoria colonialista. A nova constituição mantém o judiciário “convencional”, mas dá direito aos indígenas valerem seus direitos e valores de maneira legal.

A tarifa indígena, como estava falando, é simples. O repórter Marcos de Moura Souza escreveu matéria no Valor Econômico tempos atrás (“Empresas pagam ‘taxa’ indígena na Bolívia”, Valor, 26/01) dando exemplos práticos do funcionamento das taxas. A maior fabricante de cerveja da Bolívia, a Cervejaria Boliviana Nacional, paga anualmente uma tarifa aos povos indígenas pela utilização das águas do rio Huari – para produzir cerveja de mesmo nome. Nas margens do rio vive uma comunidade indígena. A cervejaria desembolsa uma contribuição anual em dinheiro ao povo indígena, que não passa pelo governo central ou pelos departamentos (estados). Este ano são 400 mil bolivianos para os “caciques” (R$ 132,7 mil), valor reajustado a cada quatro anos.

A matéria lembra inclusive de um episódio dramático que ocorreu antes da instituição das tarifas. “No início da década um derramamento de óleo no Rio Desaguadero praticamente extinguiu os peixes do lago Poopo. Ao redor do lago vivem comunidades indígenas tradicionais que tinham sua alimentação baseada na pesca e que, por um bom período de tempo, se viram às margens de um mar de óleo sem vida”.

O artigo 304 diz que comunidades indígenas camponesas autônomas poderão “criar e administrar taxas, patentes e contribuições especiais” em suas áreas e “administrar os impostos de sua competência no âmbito de sua jurisdição”. No capítulo sobre “direitos das nações e povos originários camponeses”, a Carta diz que eles terão de ser consultados a respeito da exploração de recursos não renováveis no território que habitam. Estabelece ainda que terão direito à “participação dos benefícios da exploração” desses recursos.

Quando uma empresa se interessa por algum projeto na Bolívia que afete territórios de comunidades indígenas, a primeira coisa que precisa fazer é entrar em acordo com os próprios indígenas. Isso é regra agora. Não adianta a visão colonialista de passar por cima dos índios para ganhar dinheiro. E não adianta o velho discurso de se apoiar na “modernidade” para justificar os projetos. Já vimos que isso nada tem a ver com modernidade, mas com antiguidade. Ser moderno é entender que os seres humanos são diferentes e não há nada de errado com isso.

O engraçado é o argumento dos críticos desse artigo da nova constituição. Dizem que essas tarifas são danosas ao investimento privado. Aliás, a grande crítica feita aos termos da nova constituição é quanto as condições do investimento privado internacional.

Isso era esperado.

O artigo 366 da constituição boliviana, prevê que "todas as empresas estrangeiras que realizam atividades na cadeia produtiva hidrocarburífera em nome e representação do Estado estarão submetidas à soberania do Estado, a dependência das leis e das autoridades do Estado. Não se reconhecerá em nenhum caso tribunal, nem jurisdição estrangeira e não poderá invocar alguma situação excepcional, de arbitragem internacional, nem recorrer a reclamações diplomáticas". Isso não é uma afronta ao capital estrangeiro. Ninguém é forçado a investir na Bolívia. Ninguém é obrigado a investir em qualquer país. Mas se for, deve-se submeter as regras que determinado país considera melhor para si. Simples.

Porque se acham que a Bolívia perde ao não incentivar os investimentos privados, as pessoas tem de mudar sua concepção de mundo. Se massacrar povos “atrasados”, poluir rios, levantar fábricas nas planícies, criar classe sociais (aqueles que trabalham e aqueles que pagam) e tudo o mais, se isso é “trazer a modernidade”, então a Bolívia foi muito bem modernizada desde o início. Estamos vendo o que está acontecendo com o capital estrangeiro em tempos de crise. Não era bom? Então porque não param de sair do Brasil e de todos os emergentes desde que a crise explodiu? Depender dos outros é muito fácil quando os outros estão malucos pelo lucro fácil.

Agora se é a vez dos povos originários – que são a maioria além de tudo! – ocuparem o poder – democraticamente, é bom lembrar – e trazerem um pouco de igualdade para a Bolívia, então é importante parar para pensar. Porque impor uma visão de mundo sobre um povo parece excesso de altruísmo ou abuso de má-fé.


Link da foto.

22 de janeiro de 2009

Encruzilhada histórica

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Por João Villaverde

Existe um processo pouco percebido sendo desenvolvido aos poucos no Brasil e nos países emergentes semelhantes. Não é nada formal ou mesmo um pacto entre elites dominantes, mas um jogo que estabelece vencedores (os mesmos de sempre e alguns novos jogadores) e esconde dos perdedores a grande derrota. Podemos estar diante de um modelo intermediário entre uma nova dominação ou a restituição da hegemonia clássica.

Explico.

As exportações brasileiras estão diminuindo em volume há anos, pelo efeito do real valorizado (quando Lula assumiu o dólar valia R$ 3,80; antes da crise chegou a R$ 1,55). Mas o saldo comercial não parava de crescer graças a um motor paralelo: o aumento dos preços dos produtos vendidos ao exterior. Quer dizer, vendia-se menos quantidade, mas as mercadorias valiam mais.

Estavam mais caras graças a nossa produção de bens industrializados de maior valor agregado? Não, embora tenhamos nos desenvolvido fortemente em vários setores. Mas nada que alterasse nossa composição exportadora. As mercadorias mais vendidas continuaram sendo os produtos primários de sempre: grãos e minérios. Commodities, em geral. Por que elas aumentavam de preços? Graças a enorme e crescente demanda chinesa.

O desenvolvimento chinês dos últimos trinta anos produziu uma economia fortemente urbana, com moeda desvalorizada (o que incentiva as exportações, uma vez que com a mesma quantidade de dólares recebidos pela venda se consegue maior quantidade de moeda nacional) e mão-de-obra barata, sem direitos trabalhistas e impostos baixos. O modelo era simples: importa-se produtos básicos, industrializa internamente e reverte para exportação. Os dólares entram e enchem as reservas. Essas são aplicadas nos Estados Unidos, ajudando as famílias americanas a se endividarem e adquirirem mais e mais produtos chineses.

A crise financeira americana alterou profundamente os termos desse modelo. Com a falência de bancos, o crédito secou. Sem crédito, as famílias pararam de rolar suas dívidas - asfixiando os bancos ainda mais - e pararam de consumir. No ano passado, 25 bancos quebraram. Outros estão na iminência de quebrar e os grandes bancos estão recebendo aportes bilionários do governo para resistirem. A fanfarra baseada na crença do crescimento eterno do mercado imobiliário foi enorme. Os bancos não param de falir e estão entrando em colapso com mais rapidez. Na última sexta-feira, dois bancos faliram (o National Bank of Commerce, de Illinois, e o Bank of Clark County, de Washington) antes de qualquer tipo de ação do governo - a regulação foi tão afrouxada nas últimas décadas que o governo não tinha nem informações.

A previsão oficial é de outros 20 bancos vão falir, apenas nos primeiros três meses de 2009.

Com isso, o fluxo de dólares para a China diminuiu e tende a diminuir ainda mais. Os países da União Européia não são válvula de escape: a recessão é forte por lá também.

A grande diversificação comercial do governo Lula foi crucial para agüentar o tranco inicial da crise mundial. A maior parte das exportações de produtos de alto valor agregado são direcionadas para nossos vizinhos latinos - o comércio entre países da América Latina aumentou enormemente desde 2003.

Ainda assim, a maior parte do saldo comercial é razão da venda de commodities para os países industrializados. Dentre eles, nosso maior comprador é a China. Isso não mudou. Intensificou-se apenas. Com o Chile aconteceu a mesma coisa. Desde 2003, a produção industrial se diversificou, aumentando exportações e importações com os vizinhos. Mas praticamente 80% da entrada de dólares é oriunda do cobre, uma commodity.

Com a crise financeira internacional destruindo bancos dos países desenvolvidos, o crédito externo travou. Com isso, muitas linhas de financiamento de exportações brasileiras foram fechadas. Ao mesmo tempo, os bancos nacionais também pararam de conceder empréstimos (ou concedem a taxas absurdas, o que equivale a não emprestar). O financiamento, nos últimos dias, tem-se limitado às linhas especiais criadas pelo governo em dezembro. Mesmo o real mais desvalorizado não compensa, uma vez que a própria demanda interna está mais enfraquecida – de novo, efeito da escassez de crédito.

Esse é o panorama de como estamos, de como estão as coisas em janeiro de 2009, ainda que em compasso de espera para as primeiras medidas de Obama à frente dos Estados Unidos. O governo Obama é crucial, mas não agora. Antes é preciso preciso perceber o que há pela frente para depois discutir Obama, China e o resto do mundo (Brasil incluso) no meio disso.

O que importa é perceber a encruzilhada que o momento coloca à frente do Brasil e dos países emergentes de condições semelhantes.

Para manter as exportações fortes – o que é de interesse brasileiro para manter a entrada dos dólares necessários para honrar os compromissos externos, uma vez que nossa moeda não é conversível – o Brasil precisa que a China não pare. A maior parte de nossas exportações, como já se viu, refere-se a produtos básicos. A produção das commodities é relegada ao grande capital do agronegócio. Mas boa parte dos mercados importadores dos bens industriais chineses – os países ricos – estão em recessão. A China deve realocar essa produção para seu próprio mercado interno e para países como o Brasil: abertos, com renda mínima e com grande mercado interno.

Com as famílias americanas cortando seu consumo e a Europa deixando de ser uma alternativa, tudo o que os chineses querem é um Brasil importador. Com a demanda americana e européia em baixa também para as commodities brasileiras, tudo o que o Brasil quer é uma China importadora.

Ou seja, incentiva-se (de maneira indireta, é claro) a China para que ela continue comprando nossos bens primários, que depois serão remetidos de volta para cá sob a forma de produtos industriais.

Dessa maneira, mantendo aumentos do salário mínimo e de programas de transferência de renda (simplificando: para as classes baixas, Bolsa Família; para classes altas, superávit primário), os bancos ficam sem pressa para retomar o crédito, podendo manter o rigor seletivo e o lucro com títulos do Tesouro, e o Banco Central fica livre de se desgastar muito com o combate à inflação. Tanto os bancos quanto o BC, ajudados pelos produtos chineses que chegam com preços baixos e em grande quantidade. A renda mínima promove o consumo dos bens chineses sem necessitar do crédito bancário. A renda elevada mantém a produção dos bens primários que são levados à China.

O modelo desenhado é intermediário de uma troca de modelos, proporcionada pela conjuntura. Podemos entrar de cabeça no modelo sino-cêntrico ou podemos continuar no modelo anterior, vigente a pouco, de dominação americana.

Obama tem a chance única de fazer prevalecer o jogo como todos os participantes (vencedores e perdedores) conhecem: ele pode restituir a hegemonia americana por meio das finanças e do comércio. A hegemonia cultural, como sempre, é conseqüência da dominação econômica.

Com isso, mantém-se o processo de dependência externa, histórico e crônico ao mesmo tempo. O país continua colonizado, trocando ou não de colonizador.

12 de janeiro de 2009

Israel e os fundamentalistas islâmicos

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Por João Villaverde

Desde que estourou a guerra, com as forças de Israel bombardeando Gaza em 27 de dezembro, muito se falou de 1967, 1973 e 2006, datas históricas e importantes para compreender o conflito entre israelenses e palestinos. Certamente são. Mas a história foi, em grande parte, mal contada. Praticamente não se falou de outra data histórica: 1948. Foi nesse ano que, horrorizados pelo genocídio promovido pelos alemães nazistas contra os judeus ao longo dos anos 30 e 40, o Ocidente criou o Estado de Israel. A criação ignorou qualquer coerência geográfica ou ética: Israel foi cravado no meio da Palestina, agora dividida. Mais de 750 mil palestinos foram expulsos de suas terras para dar espaço à Israel.

As diferenças e incompreensões instauraram-se aí.

A partir de então, 1948, Israel desenvolveu forte relações com os Estados Unidos - financeira e religiosa - que permitiu levantar um Estado grande e um dos maiores exércitos do mundo. A guerra dos seis dias, em 1967, gerou o primeiro grande debate internacional. Aproveitando de seus serviços de inteligência, Israel antecipou um ataque coordenado pelo Egito, Síria e Jordânia, destruindo toda a força armada dos três países. Para evitar novas surpresas, Israel passou ele mesmo a invadir o território alheio, levando milhares de famílias israelenses para as terras ocupadas. Israel ocupou todo o Sinai, ao norte, a Faixa de Gaza, ao sul, Jerusalém oriental e parte da Jordânia, espremendo milhões de palestinos - já há 19 anos sem pátria - na Jordânia.

Em 1948 foram as forças internacionais que ocuparam territórios palestinos para dar espaço a Israel. Em 1967, foi a vez de Israel sozinho ocupar territórios palestinos.

O grande debate que se formou se deu graças a justificativa de guerra: Israel antecipou um ataque coordenado por uma frente árabe, constituída pela Síria, Egito e Jordânia, mas com apoio também do Iraque, do Kuwait, da Arábia Saudita, da Argélia e do Sudão.

Sem querer entrar nos méritos das justificativas de guerra. Mas ali nasceu um ódio visceral entre judeus e palestinos e o mundo árabe. Primeiro porque Israel teve as justificativas de antecipar um ataque. Segundo porque o ataque, para a frente árabe, justificava-se pela implantação estranha de Israel em 1948, e terceiro que a partir dali seguiu-se a ocupação ilegal de território palestino pelos colonos israelenses.

O que incitou um acirramento no conflito foi uma questão secular, pouco lembrada. A década de 1970 para o mundo muçulmano marcou o início do XIV século da Hégira, período do renascimento, purificação e fortalecimento do Islã, tal como ocorre no início de cada século. A partir dos anos 70 iniciou-se um processo de revoluções culturais e religiosas pelo mundo islâmico, renascendo um franco processo de fundamentalismo religioso, em muito apoiado pelo fracasso promovido pela globalização econômica na região.

As elites do mundo muçulmano, como as nossas latino-americanas, entraram de cabeça na defesa da globalização. Nos anos 70 e 80 nascia e era desenvolvido o batido discurso de "inserir o país na modernidade". O mundo muçulmano a "modernidade" era um pouco diferente: ocupava-se o controle do Estado, que passava a ser estratégico para ditar os rumos da sociedade moderna, capitalista e global. Iniciou-se uma dialética crescente entre o fortalecimento do Estado-nação e do fundamentalismo islâmico.

Islã, em árabe, significa submissão, e um muçulmano é alguém que se submeteu à vontade de Alá. Há a lei divina, o sharia (contituída pelo Corão e os Hadiths), que está relacionada ao verbo shara'a, isto é, caminhar em direção a uma fonte. Para a maioria dos muçulmanos, a haria não representa uma lei rígida, mas uma referência para se caminhar em direção a Deus, podendo ser adaptada pelas circunstâncias históricas do período vivido.

Ao contrário dessa abertura permitida pelo Islã, o fundamentalismo islâmico implica a fusão de sharia e fiqh, reconstruindo a história do Islã para demonstrar a eterna submissão do Estado à religião. Portanto, para um fundamentalista, o vínculo fundamental não é watan (terra natal), mas sim umma, ou comunidade de fiéis, em que todos são iguais em sua submissão perante Alá, conforme explicou o sociólogo Manuel Castells no segundo volume de seu "Era da Informação".

Ou seja, a confraternização universal entre islãmicos transcende o estado-nação, que passa a ser encarado como fonte de cisão entre fiéis. Inicia-se um conflito cada vez mais radical no mundo árabe: aqueles seguidores da sharia e aqueles seguidores do discurso nacionalista do Estado-nação. Conforme explica o estudioso islãmico Bassam Tibi, "o Estado-nação é um elemento estranho e praticamente imposto. A cultura política do nacionalismo secular não só é novidade no Oriente Médio, como também mantém-se meramente na superfície das sociedades envolvidas".

A modernização econômica promovida pelos Estados no Oriente Médio durante os anos 70 e 80 foi fracassada, uma vez que suas economias não conseguiram entrar no jogo pesado da globalização, ou seja, concorrência comercial e revolução tecnológica. Os países foram inundados por importados, que aumentou o desemprego e descaracterizou as relações. A disparidade campo-cidade cresceu horrores. Ao mesmo tempo, toda uma geração de jovens formados nas décadas de 50 e 60 - quando os países cresceram muito - se viu sem oportunidades e perdidas em discursos ocidentais de globalização, que não alcançaram os objetivos vendidos. A crise de legitimidade do estado-nação foi resultado de sua corrupção generalizada, ineficiência, dependência de potências estrangeiras e, no Oriente Médio, de repetidas humilhações no âmbito militar diante de Israel, seguidas de um processo de acomodação com o inimigo sionista.

Como escreveu Farhad Khosrokhavar, famoso sociólgo islâmico, "quando o projeto de formação de indivíduos que participem ativamente da modernidade revela-se absurdo na experiência real da vida cotidiana, a violência torna-se a única forma de auto-afirmação do novo sujeito. A exclusão da modernidade adquire um significado religioso: deste modo, a auto-imolação passa a ser a forma de luta contra a exclusão".

O Hamas, em Gaza, segue exatamente esse pensamento. O Hizbollah, no Líbano, também. Esses movimentos - e muitos outros - tem todo um contexto histórico que explica sua existência. Não justificam seus ataques, mas compreendem suas ações assistencialistas - o Hamas foi eleito principalmente por levantar escolas e hospitais - e também seu ódio.

O massacre irracional e criminoso de Israel contra os palestinos em Gaza tem objetivos políticos claros: haverá eleição para o cargo de primeiro-ministro logo mais, em fevereiro. Mais que isso: aproveitaram de uma justificativa convincente entre seus pares - "os terroristas do Hamas não param de lançar mísseis contra nós" - para aniquilar o que resta de Gaza.

É importante notar o seguinte: Israel deixou totalmente Gaza em 2005. O que se seguiu na região foi justamente o conflito religioso, explicado acima, exemplificado pela disputa entre Fatah (apoiado pelos EUA e por Israel) e Hamas. O Hamas foi eleito, levou a maioria, e uma guerra entre palestinos se iniciou. Os membros do Fatah foram todos expulsos de Gaza, indo se refugiar no gueto palestino na Jordânia, apelidado de Cisjordânia (conhecido por West Bank por lá). Quando Israel viu o Hamas soberano em Gaza, logo ordenou o fechamento das fronteiras, iniciando um bloqueio econômico de alimentos, bebida e energia. Gaza estava literalmente enjaulada.

A situação de fome e miséria explodiu rapidamente. Ainda assim foi assinado um cessar-fogo de seis meses entre o Hamas e Israel, em julho do ano passado. Era um cessar-fogo ridículo, convenhamos. O Hamas se dispunha a parar de lançar mísseis caseiros contra o sul de Israel, enquanto Israel praticamente não se mexeu para terminar o embargo. Foi permitida pouca entrada de ajuda humanitária. Resultado: foi um péssimo negócio para a população de Gaza, uma vez que não mudou em nada a péssima condição de vida, sem comida, água, remédios e combustível.

Como se não bastasse, Israel rompeu o cessar-fogo, com um ataque rápido e letal, que matou sete palestinos. O ataque foi estratégico: ocorreu no dia 04 de novembro, dia das eleições americanas, que escolheram o democrata Barack Obama como novo presidente. Isso foi pouquíssimo lembrado. (Ver texto no Biscoito Fino e a Massa sobre isso).

Mesmo assim o Hamas não se mexeu. Terminado o acordo, em 19 de dezembro, retomou o lançamento de mísseis. E deu cabo para a justificativa de Israel.

Já são mais de 800 palestinos assassinados desde o início dos bombardeios israelenses.

26 de dezembro de 2008

Bolsa Família, os interesses escusos e o ano novo

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Por João Villaverde

Em tempos de crise econômica mundial, há um claro acirramento dos participantes do debate sobre os rumos econômicos brasileiros. Em tempos passados, até 2006 por exemplo, era difícil furar o bloqueio dos neoliberais, que dominavam as políticas e a mídia.

Alguns mantras foram - e continuam sendo - martelados até a morte. Entre eles, o especial é o "corte de gastos públicos". Para os que defendem essa política, é preciso cortar tudo: gastos com Previdência, com transportes, com seguro-desemprego, com habitação, com saneamento, e, claro, com programas sociais.

Já escrevi sobre esse tema. E continuarei escrevendo tanto quanto ele estiver sendo levantado. É uma afronta que se defenda cortes nos benefícios repassados pela Previdência ou que se diga que os beneficiários do programa Bolsa Família são vagabundos. E os gastos com juros? Os juros da dívida pública ocupam os maiores gastos do governo. E ninguém fala em cortar esses gastos. Ou para apontar que quem vive de renda é vagabundo. Por que uns são e outros não?

Sobre o Bolsa Família, o Valor publica um ótimo artigo do Naercio Menezes Filho, economista da USP e do Ibmec - portanto, acima de qualquer suspeita de ser "esquerdista" ou do PT - que traz ótimas informações sobre os efeitos do Bolsa Família.

Ao todo, 10,6 milhões de brasileiros receberam recursos do Bolsa Família em outubro de 2008. Se considerarmos um número médio de quatro pessoas por família, isto significa que cerca de 42 milhões de pessoas estão sendo beneficiadas pelo programa, ou seja, 22% da população brasileira.

O custo do programa é baixo, em torno de R$ 832 milhões mensais, ou R$ 80 por família.

Com relação aos seus impactos, vários estudos já mostraram que o Bolsa Família tende a reduzir a desigualdade e a pobreza extrema, o que é muito importante para a sociedade brasileira.

Além disto, sabe-se hoje que seus impactos na oferta de trabalho são praticamente inexistentes, ou seja, que as pessoas não deixam de trabalhar porque recebem os benefícios do programa. Parece que, pelo contrário, muitas mães começam a trabalhar quando seus filhos voltam a freqüentar a escola, que é uma das exigências do programa.

É preciso refletir sobre os rumos de nossa sociedade. É preciso conhecer quem fala o quê e quem defende o quê. É preciso ter idéia dos interesses presentes nas nossas classes políticas e empresariais.

Por isso é preciso se vacinar para entender o jogo escuso por trás da defesa de cortes de gastos públicos. Um exercício para entender a lógica interesseira dos nossos cabeções:

Antes da crise explodir, se defendia que o Brasil precisava entrar no rol dos países “modernos”, isto é, industrializados e civilizados. Esse discurso começou a ser plantado na imprensa de massa nos anos 80, quando a falência econômica e política da ditadura militar começava a abrir espaços para debates. O “sucesso” dos Estados Unidos e da Inglaterra naquela década, ao mesmo tempo em que medidas internas nos dois principais países da América Latina foram por água abaixo – Plano Austral na Argentina em 1985 e o Plano Cruzado no Brasil em 1986 – gerou um processo de “modernização” da política e da sociedade brasileira.

Todo esse discurso e pensamento estava descentralizado nos acadêmicos brasileiros que retornavam de mestrados e doutorados em universidades liberais nos Estados Unidos. Esses acadêmicos, economistas e empresários, começaram a ocupar espaços na grande imprensa nos anos 80. E começaram a dar as regras do jogo a partir dos anos 90.

O discurso neoliberal foi colocado em prática no Brasil pela primeira vez por Fernando Collor de Mello, em 1990. Ali nasceu a prática de enxugar o Estado – seja privatizando as estatais, seja acabando com fundos setoriais – e de abertura da conta comercial e de capital. Todo e qualquer gasto público passou a ser visto como “erro de política econômica”, ou “desculpa para corrupção”. Segundo a visão hegemônica, era preciso estimular o sistema privado a ocupar o espaço do governo.

Claro que ninguém atentou para o fato óbvio: o discurso, antes de ideológico, era interesseiro. A grande maioria das pessoas que ocuparam cargos públicos estratégicos a partir de 1990 estão hoje na iniciativa privada, ganhando rios de dinheiro em cima das regras que eles mesmos criaram.

Aliás, proponho um rápido exercício de ano novo. Quem estiver disposto, por meio de uma rápida pesquisa no site do Banco Central, por exemplo, anote os nomes dos diretores e presidentes do BC, a partir de 1990. Agora cruze com os dados atuais: onde estão essas pessoas. Há ideologia nisso?

Depois que a crise explodiu a lógica desse discurso mudou.

Agora que os países mestres (Estados Unidos e União Européia) estão colocando seus governos para agir, salvando o sistema e criando pacotes para obras de infra-estrutura – que, além de criar empregos, cria demanda por produtos e equipamentos, além de melhorar a qualidade de vida após concluída – não é mais preciso copiar os ricos.

O que o Brasil deve fazer diante da crise? Cortar gastos públicos. É incrível!

As empresas só investem se tiverem perspectivas de lucros. Muitas estão segurando planos de investimentos para verem no que vai dar. Mesmo os bancos, que tiveram lucros recordes por seis anos consecutivos, no primeiro sinal de crise, já subiram os juros e diminuíram a oferta de crédito às empresas e ao consumidor. As empresas não gastam por estarem com medo e sem crédito. Os bancos não emprestam por estarem com medo. Os consumidores gastarão menos com o aumento do desemprego e com menos crédito na praça. Se o governo não investir, quem investirá?

Mesmo os interessados em ocupar o espaço do Lula em 2010 deveriam começar a se preocupar. Se todo mundo parar, ninguém se beneficia.

***

Um excelente ano de 2009 ao Miguel, aos colaboradores e leitores do Oleo do Diabo.

19 de dezembro de 2008

O calote na América Latina

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Por João Villaverde

No dia 02 de dezembro, o presidente do Equador, Rafael Correa, anunciou que estava estudando a possibilidade de não honrar sua dívida de US$ 462 milhões com o BNDES. Nove dias depois, anunciou a moratória de US$ 30,6 milhões de sua dívida externa. Ao todo, não dá 500 milhões de dólares.

A interpretação feita aqui no Brasil foi de novo ataque de um "amigo" latino-americano, no caso do BNDES, e de um movimento "populista", no caso da dívida externa.

É uma visão ultrapassada. O calote é um ótimo negócio.

A dívida externa do Equador é pequena em valores totais. Ao todo são US$ 1,3 bilhões. Isso é um contracheque para qualquer grande empresa brasileira. Mas proporcionalmente, é um grande valor para o Equador.

Parte dessa dívida é absolutamente discutível. Os tais US$ 462 milhões do BNDES, por exemplo. Quem tomou esse dinheiro emprestado foi uma empresa, que não cumpriu seu cronograma de obras no país vizinho. O que Rafael Correa fez foi pressionar para que o contrato fosse cumprido. Aliás, ele não deu o calote. Apenas disse que estava analisando a possibilidade. Continua pagando a parcela de juros ao BNDES.

Todo o estardalhaço tinha endereço, o mesmo desde 2003: caracterizar Lula como incompetente e ineficiente. Como Rafael Correa faz parte do novo movimento de esquerda que está no poder na América Latina, o tiro acerta dois alvos de uma só vez. Lula é burro e os esquerdistas latino-americanos são populistas.

Nada se fala dos avanços sociais e representativos que a Bolívia, a Venezuela, o Equador e mesmo a Argentina, no biênio 02-05 experimentaram. Não é uma questão de barrar qualquer crítica a Evo Morales, Hugo Chávez (que enfrentará um período muito difícil a partir de 2009), Rafael Correa e Kirchner (que a partir de 2006 mudou todo o rumo). Mas há de se ter critério e coerência.

Parece pedir muito de nossa imprensa e elite política e empresarial, eu sei.

O calote de US$ 30,6 milhões anunciado pelo Equador em 11 de dezembro último é irrisório. Se trata de uma dívida contraída por governos anteriores sem qualquer legitimidade. A idéia do cupom Global 2012 (os tais contratos que somam US$ 30,6 milhões) era financiar a banca privada internacional. O Equador não precisava do dinheiro quando tomou emprestado anos atrás. Não só não precisava como gastou errado: o dinheiro fora usado para pagar juros de outras dívidas. Portanto se trata de uma dívida totalmente discutível, e é isso o que Rafael Correa fez.

Ao anunciar o calote, o país suspende automaticamente o pagamento de juros mensais e o comprometimento de ainda pagar a dívida principal. Sobra mais dinheiro para investimentos importantes - como, por exemplo, construção de escolas e hospitais públicos.

E o calote não precisa ser levado às últimas consequências. Nunca é. se trata de um choque moral - antes de financeiro - nos credores. Com o medo do outro lado, aumentam as chances de uma renegociação super benéfica para o país lesado. Nesse caso, o Equador pode acabar negociando com os donos do Global 2012 por um pagamento 70 ou 80% menor e com juros baixíssimos.

Foi o que Kirchner fez nos primeiros três anos de seu governo na Argentina. Tinha um ministro da Fazenda muito hábil, Roberto Lavagna, que tratava de estudar e negociar com todos os credores, analisando contrato por contrato, situação por situação, tendo as limitações de caixa debaixo dos braços - funcionando como fator limitador dos pagamentos. Ao mesmo tempo, o presidente Néstor Kirchner dava todo o apoio político, funcionando como o anteparo para as críticas da imprensa elitista nacional e internacional.

Funcionou perfeitamente por três anos. A dívida externa e interna da Argentina foi cortada absurdamente. Quase 85% dos credores aceitaram os preços que o governo estava disposto a pagar. Os que não aceitaram estão até hoje sem receber, com os processos rolando em tribunais internacionais. Ao mesmo tempo, Lavagna desenvolveu uma política cambial inteligente, depois que a dolarização destruiu a economia argentina em 2001. O peso foi desvalorizado e fixado informalmente, aumentando a produtividade da indústria interna.

Boa parte disso foi jogado fora a partir do fim de 2005. Mas isso é outra história.

O calote do Equador também não vem sozinho. Rafael Correa não esconde de ninguém sua intenção de acabar com a dolarização, instituída no país em 2000.

A questão do calote também está pesando nas discussões entre Brasil e Paraguai, em torno das usinas hidrelétricas de Itaipu. O novo presidente do Paraguai, Fernando Lugo - que automaticamente entrou na mira da imprensa e da classe político-empresarial do Brasil - afirmou sua vontade de rever os contratos assinados com o Brasil, que criaram a Itaipu em 1973.

Em 1973 o Paraguai vivia a ditadura de Strossner (ditador entre 1954 e 1989). O Brasil estava na sua ditadura militar, e o general no poder era Garrastazu Médici. Não é preciso dizer mais sobre o clima político que gerou Itaipu.

A obra e a empresa - afinal, Itaipu é uma empresa, bom lembrar - alimentaram uma elite política no Paraguai que enriqueceu e se manteve no poder por todo esse tempo. Mesmo depois da saída de Strossner, o partido Colorado (que sustentava a ditadura) continuou no poder, agora vencendo "eleições" (são conhecidas até no mundo mineral as históricas de falcatruas e assassinatos envolvendo a "democracia" paraguaia). A vitória de Fernando Lugo, neste ano, tirou os colorados do poder após 61 anos.

Mas e dái, certo? Afinal, Lugo é "populista".

O pensamento pequeno ignora outras questões que cercam Itaipu. Não é de hoje que forças de esquerda paraguaias questionam o contrato que criou Itaipu. Questionam a 35 anos. Mas finalmente elas alcançaram o poder, tirando de lá "los barones de Itaipu", conforme a própria parcela privilegiada do país se referia a classe de estrategistas.

De maneira prática, o que se coloca é o seguinte:

- Toda a política gerencial de Itaipu é feita por brasileiros. Ou seja, é tecnicamente impossível que o Paraguai dê um calote no Brasil. Quem controla os pagamentos mensais de compensações sãos os próprios brasileiros!

- A gritaria que se forma é que o Brasil já fez sua parte, ao assumir praticamente sozinho os empréstimos externos para construir a usina, que é, até hoje, a maior hidrelétrica do mundo (será suplantada apenas agora, pela hidrelétrica Três Gargantas, na China). Os empréstimos que o Brasil dos militares tomou nos anos 70 para levantar Itaipu depois seriam mortais para o Brasil, durante nossa grave crise da dívida dos anos 80.

Existem uma série de fatores para serem levados em conta, não apenas o reducionista e ridículo argumento de que o calote, seja do Equador, seja do Paraguai, "ferem a soberania nacional".

Os blockbusters de Hollywood ferem mais nossa soberania nacional do que as negociações com Correa e Lugo!

16 de dezembro de 2008

O corte de gastos públicos

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Foto: Gianne Carvalho, viaduto, Rio de Janeiro

Por João Villaverde

No Brasil, qualquer discussão macroeconômica esbarra no mantra liberal de "cortar gastos públicos". Esse mantra foi desenvolvido pela escola de Chicago, grupos de economistas acadêmicos radicados na Universidade de Chicago nos Estados Unidos, tendo à frente o papa liberal Milton Friedman.

Isso começou nos anos 70.

A partir do triênio 1979-1980-1981 isso virou escola mundial, quando Margaret Thatcher e Ronald Reagan, na Inglaterra e nos Estados Unidos respectivamente, começaram a defender o enxugamento do Estado.

Essa política, caracterizada pelo nome de "neoliberal" foi exportada pelo poder hegemônico emanado pelos dois países ao longo dos anos 80 e 90 para os países pobres e o resto do mundo. A idéia era diminuir ao máximo a participação do Estado na economia. Poucos países conseguiram escapar dessas políticas.

Foram duas razões principais:

1) Estavam todos, invariavelmente, quebrados, após o enorme endividamento dos anos 80. Diversos países pobres deram calote nas suas dívidas nos anos 80 e 90. O Brasil deu no fim de 1987. Como precisavam de dinheiro, se submeteram a todo tipo de pitaco dado pelos órgãos internacionais que "obrigavam" o neoliberalismo.

2) A elite desses países pobres que estuda em universidades dos países ricos e retorna aos seus de origem trazendo consigo o "pensamento moderno". Culturalmente, os países pobres somos colonizados e costumamos dar as honras nacionais aos nossos que trazem títulos de mestres e doutores em faculdades gringas. A elite então alcança cargos estratégicos no governo e nas empresas, e o rumo do país passa a ser ditado pelos interesses dos ricos.

E qual é o principal mantra?

O corte de gastos públicos.

Mas alguém já parou para pensar o que está acontecendo nos Estados Unidos e na Inglaterra hoje? Não são eles os criadores do pensamento liberal? Então, vamos ver o que acontece:

- Os Estados Unidos estão comprando participações em bancos e instituições financeiras privadas para salvar o sistema do liberalismo. Quando deixaram a teoria liberal falar mais, deixando o Lehman Brothers falir em 15 de setembro, a crise alcançou patamares dramáticos. Elegeram um presidente negro - o país é historicamente racista - que promete criar 2,5 milhões de empregos públicos e promete um plano de US$ 800 bilhões.

- A Inglaterra viu seus bancos e instituições financeiras se meterem nas estripulias financeiras criadas pelo sistema americano. A crise chegou na Inglaterra antes de todo mundo, logo após surgir nos EUA. O que fez a Inglaterra? Estatizou o Northern Rock, um dos maiores bancos comerciais ingleses e o primeiro-ministro Gordon Brown é um dos maiores defensores da mudança do modelo atualmente.

Ainda assim, nossos cabeções não se dão por vencidos. Continuam defendendo que o governo corte gastos públicos.

E veja. Não estão defendendo um gasto público inteligente, que seja racional, atento para as necessidades. Não. Eles defendem o corte de gastos unilateralmente, sem critérios claros. E o pior: são estes cabeções, todos formados em universidades americanas e inglesas, colunistas dos grandes jornais, entrevistados nas rádios e nos telejornais, dirigentes de bancos e instituições e tudo o mais. Estes ocupam boa parte do noticiário.

A falta de espaço para gente séria faz com que ignoramos um comentário inteligente de um economista inteligente. O presidente do Ipea, o órgão de pensamento estratégico brasileiro, Márcio Pochmann, da Unicamp, disse recentemente o seguinte:

"Precisamos perguntar à população se ela está satisfeita com o serviço de saúde, se a educação atingiu um nível de qualidade que não precisa de mais recursos, construção de escolas... Todos defendem o corte dos gastos. Então pergunto onde cortar?"

Quando tratamos da Previdência, das hidrovias, rodovias, ferrovias, do transporte público, da educação, da saúde, do sistema penitenciário, das policias, da habitação, do setor público em geral, a grande pergunta que devemos fazer é: está bom do jeito que está?

Saber a resposta ajuda a entender que, por trás da ideologia, há muito interesse em jogo no Brasil.

11 de dezembro de 2008

O julgamento de Raposa/Serra do Sol

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Por João Villaverde

O julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a demarcação de terras da reserva indígena de Raposa/Serra do Sol em Roraima foi mais uma vez adiado. Dessa vez, foi o ministro Marco Aurélio Mello quem pediu vistas.

Agora a decisão será protelada até fevereiro do ano que vem. E os rizicultores (produtores de arroz) da região vão ficando onde os índios deveriam estar.

A história é inacreditável. Em todos os sentidos.

Um dos pontos que não ficou bem amarrado pela Constituição de 1988 é sobre a demarcação de reservas indígenas. Sempre ficou em aberto se as reservas deveriam ser demarcadas como "ilhas" ou como território contínuo. Qualquer pessoa com o mínimo de coerência sabe que o humanamente correto é a defesa de terras contínuas, que não separem tribos e famílias.

Porque pode parecer estranho para alguns. Mas os índios também são humanos.

Dez anos depois de promulgada a Constituição, o governo federal entrou com um pedido no Supremo - o órgão máximo do Judiciário brasileiro - para que decidisse, de uma vez por todas, o que deve ser seguido pelos estados brasileiros.

Já se passaram dez anos desde que o governo FHC fez o pedido. De lá para cá, nada mudou.

No início do primeiro governo Lula, o governo tomou uma decisão radical: mandou expulsar os arrozeiros da região Raposa/Serra do Sol até que o STF tomasse sua decisão. Em troca, o governo daria terras ainda maiores para esses fazendeiros. E mais importante: daria título de posse. Com a posse de donatário legal das terras, o fazendeiro pôde contratar crédito rural em bancos públicos e privados. Ou seja, um excelente negócio para eles.

Ainda assim, uma minoria dos arrozeiros não arredou pé. Entraram com um pedido para que o governo federal esperasse a safra que já estava plantada. O procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza - um homem sério, famoso por ter liderado as investigações contra parlamentares ligados ao esquema do "mensalão" - acatou.

Isso foi em 2005. Os arrozeiros estão lá até agora.

No início desse ano o pedido de análise foi reforçado. A sessão de agosto recebeu um dos mais belos votos já feitos, por parte do ministro Carlos Ayres Brito. Ayres Brito desmembrou, um por um, todos os argumentos daqueles que fazem a defesa dos arrozeiros.

1) Dizem que os índios não podem ficar em faixas da fronteira do Brasil com outros países. A reserva Raposa/Serra do Sol, por exemplo, faz fronteira com os perigosíssimos países da Venezuela e da Guiana.

- Os índios defendem suas terras melhor que qualquer militar. Por lá só entra gente da Funai, que lida com comunidades indígenas, e o presidente da República. O argumento de que eles não defendem a soberania nacional é uma falácia antiga que os militares - que adoram uma teoria conspiratória - defendem. Os arrozeiros tomaram esse argumento para eles por interesse.

2) Dizem que os arrozeiros são mais importantes para o país porque produzem riqueza, enquanto os índios nada fazem para o desenvolvimento nacional.

Convenhamos. O que é desenvolvimento nacional? Se você responder que é devastar florestas, matar animais e dizimar índios para produzir arroz que será vendido no mercado internacional gerando riqueza apenas para meia dúzia de fazendeiro, então OK, eles estão certos.

Depois do voto de Ayres Britto, o ministro Carlos Alberto Direito pediu vistas, para que todos pudessem estudar melhor o assunto.

Quanto a estudar melhor o assunto, nada contra. Esse país está precisando de gente disposta a estudar melhor as coisas. Mas essa história está aí desde 1988. E o processo está lá no STF desde 1998! O mínimo que se espera de um ministro do Supremo é que conheça a Constituição ou que ao menos conheça os processos que lá estão.

O julgamento foi marcado então para dia 10 de dezembro.

Pois ontem, dia 10 de dezembro, lá estavam todos reunidos mais uma vez para finalmente decidir se a regra é justa para os índios ou para os rizicultores. Dos 11 ministros do Supremo, oito votaram. Todos a favor da demarcação de terras contínuas para os indígenas da região. Tudo corria bem, até que o ministro Marco Aurélio Mello pediu vistas ao processo.

A decisão foi, mais uma vez, protelada. Os índios continuam esperando. E o país continua esperando. Esperando enquanto os arrozeiros de Raposa/Serra do Sol ganham seu dinheiro com o arroz plantado onde índio deveria estar vivendo.

O que fazemos? Esperamos.

O julgamento do STF sobre o que fazer com os índios de Roraima é um desenho perfeito de algo maior: a história do Brasil.

9 de dezembro de 2008

Anotações e considerações - Cultura e Política

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Por João Villaverde

Na segunda-feira à noite, depois do expediente, corri para o auditório do Masp, na Avenida Paulista, para acompanhar o primeiro dia da série de três debates promovidos pela Folha acerca das comemorações de 50 anos de seu caderno cultural, a Ilustrada.

O primeiro debate é o que mais me interessava: Cultura e Política, com Maria Rita Kehl (psicanalista), Caetano Veloso, Cacá Diegues e Ferreira Gullar. Para mediar, o editor do caderno de política do jornal, Fernando Barros e Silva, também colunista de Opinião da Folha, ocupando às segundas-feiras a coluna de Clóvis Rossi.

Graças ao infernal trânsito de São Paulo, perdi as falas iniciais de Caetano, Maria Rita e Cacá Diegues. Quando cheguei, Gullar começara a falar.

Antes, que fique claro meu respeito à todos os debatedores. Minhas opiniões e divergências são de visões de mundo, de mudança com as coisas como elas estão. Nada tem a ver com a obra passada deles.

Para Ferreira Gullar, poeta e escritor surgido nos anos 50, historicamente ligado ao comunismo soviético - chegou a morar na URSS nos tempos de exílio nos anos 70 -, os tempos de cultura no Brasil são outros. Enquanto que nos anos pré-ditadura havia um grande debate nacional acerca de um país "novo", que se descobria, e nos anos da ditadura havia um "Inimigo" óbvio a ser escancarado e combatido, a partir dos anos 80 perdeu-se o engajamento.

Gullar falou muito que o Brasil da ditadura não era o mesmo que os militares expunham. "Havia fome, violência, favelas, desrespeito, tudo ficava escondido pela censura e pelos números de crescimento". Para ele, aquilo deveria ser mostrado de alguma forma, e a cultura estava encarregada desse papel.

De um certo modo, essa era a opinião dominante entre os convidados.
Não deixa de ser curioso que essa visão - que é dominante nas artes e na cobertura de cultura, bom que se diga - é um espelho da máxima de Fukuyama, de que, após o fim da União Soviética em 1991, tínhamos alcançado o "fim da história". É um espelho porque a frase não pode ser literalmente associada ao pensamento dos três artistas presentes (Caetano, Cacá e Gullar). Os três são críticos, em maior ou menor escala, da sociedade atual. Mas não deixa de ser sintomático esse pensamento reducionista de que, com o fim da ditadura militar, não há mais porque existir engajamento político nas artes. Quer dizer então que não há mais fome, violência, favelas e desrespeito no Brasil? A sucessão de Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula erradicou todos esses males do país. É isso?

Ferreira Gullar aproveitou a deixa para tratar de política contemporânea: "Não há, a exceção do Chávez na Venezuela, quem acredite em socialismo nos dias de hoje". Não pretendo entrar nos méritos do conteúdo exposto, mas na conotação social e comportamental colocada como pano de fundo. Discutir se Gullar está certo ou errado, se Chávez é bom ou ruim, se o socialismo é possível ou não, é indiferente. O contexto é outro. Ao pensar dessa forma - e não sofrer contestação dos debatedores - está se passando a visão de mundo hegemônica na classe artística de hoje: 1) os engajados do passado não vêm mais razão para esse engajamento na sociedade atual. 2) os artistas do presente já estão inseridos nesse mundo. Não querem, nem precisam discutir as coisas. Afinal, as coisas são como elas são. Não há porque mudar.

A tristeza desse pensamento é atestar para o sofrível nível das artes no Brasil atual. Se antes tínhamos artistas e pensadores de artes ao mesmo tempo - pessoas que, além de produzir, discutiam a produção dos outros e as condições sociais ao mesmo tempo - hoje não temos nem um nem outro. A arte é recebida acriticamente, porque foi assim concebida. E o movimento se retro-alimenta: não há obra engajada, que discuta os rumos da sociedade. Ao mesmo tempo, a crítica especializada - cada vez mais pulverizada, porém ainda fortemente centralizada nos cadernos culturais dos grande jornais - não propõe qualquer julgamento político àquilo que recebe. E o público - cada vez mais transformado em consumidor - busca cada vez mais alienação e abstração.

O que se vê, então, é um crescente processo de alocar às artes o papel de abstração.

Gullar tratou disso em sua fala. Disse que o artista tem a liberdade de escolher produzir uma arte política ou abstrata. No entanto, disse que a arte é eminentemente abstrata. É verdade. E seu ponto de vista pode ser entendido de qualquer forma. Mas o que parece coerente é que, mesmo política, a arte antes é abstrata. Se for direta não é arte, mas panfleto. E a arte política reside justamente na crítica do sistema e do status quo por meio da abstração reflexiva.

E falando em reflexão. Qual foi o último grande momento de reflexão acerca dos rumos do país e da sociedade mundial proposto pelas artes? A Bienal do Vazio? O Ensaio sobre a Cegueira? Paulo Coelho? Mallu Magalhães?

Aí entramos no ponto que iniciou o verdadeiro debate (até então se tratava das falas iniciais dos convidados). A questão do individualismo e da descentralização do consumo de cultura graças ao desenvolvimento tecnológico.

Cacá Diegues contou de um amigo que, voltando de viagem ao Vietnam, comprou uma cópia pirata de "Tieta" - filme de Diegues - em DVD. Ele disse adorar a idéia de ter um filme piratiado e comercializado no Vietnam. Disse apoiar a iniciativa. Maria Rita Kehl lembrou que o rapper Mano Brown gostava de dizer que nada o deixava mais feliz que saber que seus cds eram vendidos por ambulantes nas estações de metrô em São Paulo. Caetano aproveitou a deixa para dizer sobre as enormes possibilidades abertas pela internet, que vem destruindo o tradicional modelo da indústria fonográfica. "Já fiz música para poucos ouvirem, já passei pela fase pesada da indústria cultural, e agora estou vendo uma abertura total", disse.

Para Cacá Diegues é questão de tempo - entre cinco e dez anos - para que não haja mais produção física dos meios de distribuição de filmes. "Poderá se passar filmes de Miami, Los Angeles, para a Avenida Paulista por meio de linhas telefônicas. Nesse momento, o custo de exibição será zero e o produto vendido será o agregado: a pipoca mais cara do mundo, a Coca-Cola mais cara do mundo, a camiseta, o boné, etc.".

A palavra chave dos novos tempos, para os três artistas, é democratização. É a democracia na produção, na distribuição e no acesso à todas as formas de cultura. De fato, é um sinal dos tempos contemporâneos. É assim com cultura, é assim com jornalismo. Com os blogs, por exemplo, a informação e a opinião é descentralizada da figura dos grandes jornais, e o debate é instantâneo, por meio dos comentários. Há enorme interação entre o produtor e o consumidor da notícia. A mesma coisa acontece com a cultura.

"O mercado continua sendo importante. Antes, importante para a indústria. Agora, importante para a figura individual do produtor de conteúdo artístico", disse Caetano. Para Ferreira Gullar, os homens são iguais em direitos, mas diferentes em qualidades. "Ninguém é Pelé. O Oscar Niemeyer é um gênio, mas se não fosse pelo pedreiro, o desenho não sairia do papel. Em casa é a mesma coisa. Não fosse a comida da dona Maria, eu não faria minhas poesias". Foi aplaudido.

Maria Rita Kehl pegou o microfone: "A questão é: quem vai querer ser o Niemeyer e quem vai querer ser o pedreiro?". Poucos, mas fortes aplausos localizados no auditório.

Alcançaram o consenso por meio da "cultura de nichos", isto é, da arte sendo feita pensando em grupos específicos, sem mais a pretensão de alcançar as massas.

Aí reside boa parte do mundo que vivemos hoje. Há nichos espalhados por toda a parte. Na política há aqueles que buscam os grandes jornais. Há aqueles que buscam os blogueiros de direita. Os blogueiros de esquerda. Os blogueiros grosseiros. Os blogueiros educados. Os blogueiros intelectuais. Os engraçados. Os músicos. Os blogs de teatro. Os blogs sobre séries de televisão americana. Os blogs de novelas. Os blogs de celebridades. Os blogs jurídicos. As revistas financeiras. As revistas de celebridades. As rádios de música clássica. Os sites de rock indie.

A televisão à cabo nso Estados Unidos dos anos 90 já trazia um pouco do que a internet oferece hoje. Diversificação do conteúdo, atendendo a fatias específicas de mercado, sem rabo preso com índices de audiência, mas com a publicidade, que também é localizada, uma vez que se mapeia e se conhece perfeitamente o público consumidor.

Os produtores de conteúdo interagem com seu público consumidor. A interação gera sintonia de discurso, criando uma fórmula que emula aquilo que se quer com os limites impostos pelo consumidor. Aos poucos, aumenta-se o debate, mas permanecem os gostos e costumes. A arte industrial, que fala às massas, ainda resiste com pontos específicos em determinados campos, é claro. O filme "Batman, o cavaleiro das trevas", por exemplo, está perto de alcançar um faturamento de um bilhão de dólares apenas de bilheteria, ao redor do mundo. Mas está se verificando uma falência de um modelo, anterior mesmo à indústria da cultura, que é o da arte que instiga, que insere o novo, aquilo que ninguém estava acostumado a ver e pensar, criando novas reflexões e novos caminhos. Isso está cada vez mais difícil de ser feito.

Até porque, os pontos mais interessantes do mais recente sucesso de cinema (Batman) - a anarquia social e o maniqueísmo ilusório entre homens - foram solenemente ignorados frente à morte do ator que interpreta o coringa (Heath Ledger) e aos efeitos especiais introduzidos pelo filme (a cidade computadorizada).

O interessante que se formou no debate da Ilustrada esteve, o tempo todo, no subterrâneo. Mesmo nas horas de opiniões distintas, não faltou a tranquilidade habitual pela maturidade dos debatedores e pelo evento em si. Afinal, antes de debate, tratava-se de um dos três grandes dias de comemorações de 50 anos da Folha Ilustrada.

Mas o debate ajuda a fomentar algo que está sendo esquecido. Perguntas colegiais e existenciais clichês: Onde estamos e para onde pretendemos ir.

5 de dezembro de 2008

O que acontece com o Real

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Por João Villaverde

O assunto da vez é a taxa de câmbio no Brasil. Foi a principal manchete dos telejornais noturnos, dos jornais de hoje e o acompanhamento do mercado está permanentemente nos sites de notícias. Ontem, o dólar alcançou R$ 2,53. Há três meses valia R$ 1,55. O salto, enorme, é o único fato. De resto, o campo está aberto para interpretações mil e uma série de interesses em jogo. Como sempre, com crises, abre-se uma oportunidade única de mudança. E a boquinha da turma da bufunfa está aberta.

Há pouca liquidez nos mercados emergentes (especial: Brasil, China, Índia e Rússia). Havia muita antes da crise, com os grandes fundos de investimentos dos países ricos vindo aproveitar as "oportunidades" brasileiras. Durante muitos anos, no Brasil, ganhou-se muito dinheiro sem o mínimo esforço.

Os juros eram (são) altos. A taxa de câmbio era estável - o que tira o risco das operações - e descendente. Peguemos o exemplo de 2007. No ano passado, no dia 1º de janeiro, o dólar valia R$ 2,14. Em maio caiu abaixo dos R$ 2,00. E fechou o ano valendo R$ 1,80. Para os investidores isso é ótimo. Ele pega uma quantia de dólares e transforma em reais em janeiro. Quando, em dezembro, ele troca os reais por dólares e leva para casa, apenas o movimento de valorização cambial já dá para ele um lucro enorme. Porque com a mesma quantidade de reais ele compra mais dólares. E além disso havia a remuneração pela nossa taxa de juros obscena.

Uma farra.

Veio a crise, muitos dólares especulativos saíram dos emergentes e houve desvalorização cambial. Normal. A questão aí é que, passado o estresse geral de setembro/outubro - não que as coisas estejam tranquilas agora, mas o choque diminuiu - os especuladores voltaram. Agora o jogo é diferente. A tendência de aposta é de desvalorizar o real para lucrar. E do lado destes, o parceiro continua o mesmo: o governo, por meio do Banco Central.

O que está acontecendo agora?

O movimento do mercado de dólares ontem foi sintomático para exemplificar esse novo jogo. Temos o mercado à vista - onde os bancos trocam moedas entre si, os exportadores e importadores saldam suas operações de comércio exterior, financiamento externos aos investimentos internos, etc. E temos os mercados futuros (a BM&F, aqui em São Paulo). Lá o campo é totalmente aberto para a ação dos especuladores. Por que não há fiscalização? Sim. Mas principalmente porque o maior fiscalizador, o Banco Central, é ator principal do cassino.

Ontem, quinta-feira, o BC passou o dia todo assistindo o câmbio subir. No início das negociações, o dólar valia 2,47 reais e foi subindo. No fim do dia, quando cessam as operações no mercado à vista, o BC entrou em jogo fazendo o que os especuladores ansiavam: vendeu contratos de swap cambial.

Nos mercados futuros existem duas posições: aqueles que compram e aqueles que vendem. Todos negociam contratos que só serão liquidados em algum tempo no futuro (pode ser daqui a 30 dias, dois meses ou mais). São "apostas". Mas, como estamos no Brasil, estão mais para "certezas". Para cada um "comprado", existe um "vendido".

Quando, até a crise, o real se valorizava (indo dos quase 4 reais de 2002 para os R$ 1,55 de agosto último) os especuladores "vendiam" e o Banco Central fazia o papel do "comprador". Ao operar "vendido", o especulador aposta que o real continuará caindo. Ele ganhou sempre, por mais de cinco anos. Quem opera "comprado" aposta que o real subirá, ou seja, vem ganhando desde que a crise explodiu.

Quer dizer, desde que a crise estourou, houve inversão de papéis na BM&F. Os especuladores estão agora fortemente "comprados" (apostando que o real continuará se desvalorizando) e o Banco Central entra em campo com seus contratos de swap, apostando na posição "vendida". Os especuladores, em sua maioria, fundos estrangeiros, estão em posições compradas de nada menos que US$ 13,1 bilhões. Isso mesmo, mais de 13 bilhões de dólares. Eles, apenas ontem, compraram 6.320 dos 10 mil contratos de swap que o BC colocou a venda, depois do fechamento das operações à vista. Todos com vencimento de fevereiro de 2009 - uma aposta razoavelmente segura em tempos de crise. Por meio deles, o BC vendeu no futuro quase US$ 315 milhões de nossas reservas.

E não pára aí. Esses especuladores fazem uma série de operações cruzadas, investindo em títulos públicos - que rendem esses juros absurdos brasileiros - e não pagam Imposto de Renda. O lucro, como se vê, é imbatível.

Agora uma coisa precisa ser entendida. Antes de qualquer terrorismo, a mídia poderia informar que não há nada de errado com o Brasil. Todos os países que receberam investimentos - financeiros ou não - nos últimos anos estão vendo os dólares sendo sacados dos mercados. As multinacionais estão mandando todos seus lucros nos emergentes para cobrir os rombos que estão tendo nos Estados Unidos e na União Européia. Todos os países estão sofrendo desvalorizações cambiais. Só não acontece em países que controlam suas taxas, como o Chile, a China e a Argentina. Como aqui não se controla, é inevitável o que ocorre agora.

Entendido isso, outro mantra ridículo que é batido sem discussões é que a subida do real vai gerar inflação. Há muita ignorância nessa análise. Mas há muito interesse em ganhar esse discurso. É preciso inteligência nessa hora, saber sacar que os movimentos são inevitáveis e passageiros.

Agora uma coisa não se discute. Com ou sem crise, no Brasil liberal, especulação é o que não falta. E é isso que deve ser controlado.

2 de dezembro de 2008

Pode ser 1929

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Por João Villaverde

O Miguel tem falado muito d'O Globo. Voltou a assinar o jornal agora, no fim de semana. Provavelmente não pôde ler o artigo do jornalista Carlos Alberto Sardenberg, publicado na última quinta-feira. O artigo deixa claro uma coisa: se as reportagens forçam a barra pelo irracionalismo lacerdista, os artigos são desnecessários, e os próprios autores dizem isso!

Estamos vivendo a maior crise desde 1929. Nasceu da especulação descontrolada nos mercados financeiros, se aproveitando de títulos fantasmas, informações desencontradas, índices futuros e dinheiro barato. Foi assim no período pré-1929. Foi assim no período pré-2008. Podemos evitar uma nova Grande Depressão (1929-1937)? Podemos. Podemos repetir uma nova Grande Depressão? Podemos. Dá para cravar hoje, com o que sabemos? Não.

À seguir, o citado artigo do Sardenberg, em itálico. Meus comentários estão logo abaixo.

"Não é 1929" - Por Carlos Alberto Sardenberg
O Globo, 27/11/2008

As comparações da crise atual, nos EUA, com a Grande Depressão de 1929 são tão freqüentes quanto as comparações entre o New Deal de Franklin Roosevelt e os planos de Barack Obama. Fazem sentido?No que se refere à crise, a resposta é não, escreve o economista Daniel Gross, colunista de "Newsweek" e Slate, revista eletrônica. Em comum, as duas situações têm a mesma origem, uma crise financeira, e a mesma conseqüência, uma redução no consumo. Mas as circunstâncias são de tal modo diferentes que 2008 parece coisa leve diante de 1929 e anos seguintes. Eis os principais pontos:
- Em 1933, quando Roosevelt assumiu, quatro mil bancos comerciais tinham ido à falência, destruindo as poupanças de seus clientes; hoje, até agora, apenas 19 bancos quebraram, mas a maioria dos clientes teve seu dinheiro protegido pelos seguros de depósitos;
Os dados estão corretos. Mas a análise está errada. Quando Roosevelt assumiu a situação era desesperadora. Foram 4 longos anos de crise. Não podemos comparar com alguns meses de 2008. Alguém sabe se daqui a 4 anos não teremos uma situação parecida com a de 1933?

- em 1929, a recessão começou em agosto e durou espantosos 43 meses; em 2008, começou no terceiro trimestre e, pelas previsões do FED e dos economistas, termina em junho de 2009;
Outra distorção de pensamento. O Fed prevê que a crise terminará ainda no primeiro semestre de 2009? Pois em 1929 o Fed também previra que a crise acabaria em 1930. A história mostrou que estavam errados. Não é possível se basear em previsões. Especialmente em economia.

- em 1929/33, o desemprego foi a 25%, a renda nacional caiu pela metade, e não havia seguridade social; agora, a pior previsão do Fed é de um desemprego chegando a 7,6% em 2009, com seguro desemprego, e a economia encolhendo 1%;
Novamente. Sardenberg se utiliza das previsões do Fed. João Goulart e Celso Furtado faziam previsões de como seria o governo Jango quando ocorreu o golpe de Estado dos militares em 1964. A monarquia russa fazia previsões do que faria quando acabasse a Primeira Guerra Mundial. Não teve tempo, em 1917, no meio da guerra, ocorreu a Revolução Russa. São exemplos extremos, eu sei, mas servem para ilustrar o pensamento.

- em 1929, o então secretário do Tesouro, Andrew Mellon, dizia que a falência de trabalhadores, investidores, fazendeiros e proprietários teria o efeito positivo de fazer com que as pessoas "trabalhassem duro, com mais valores morais"; agora, as autoridades estão fazendo de tudo e gastando um monte de dinheiro público para resgatar pessoas e negócios;
Nesse ponto Sardenberg está corretíssimo. É justamente essa ação coordenada entre governos que pode estancar a grande crise que passamos.

- em 1929/33, o Federal Reserve, surpreendido, elevou juros e apertou a política monetária; hoje, o Fed, dirigido por um especialista na Grande Depressão, reduziu os juros agressivamente e injetou centenas de bilhões de dólares no sistema financeiro;
- em 1930, as outras maiores economias do mundo, URSS, Japão e Alemanha, eram dirigidas por inimigos dos EUA e do capitalismo; hoje, as maiores economias e os emergentes, no G-20, estão todos no capitalismo e coordenando esforços para superar a crise.
De maneira genérica, é verdade. Mas entrando melhor nos diferentes cotidianos dos países percebe-se que estamos diante de uma mudança grande de modelo. O então capitalismo monopolista liberal de 1929 veio abaixo com a Grande Depressão, gerando uma guinada para o Estado de Bem Estar Social keynesiano adotado por Roosevelt. Foi o paradigma do Estado comunista da URSS que ajudou a impulsionar o capitalismo regulado de John Maynard Keynes. Hoje, novamente vemos uma grande crise do capitalismo monopolista (neo)liberal. O que virá?

- depois da quebra de 1929, os EUA (e o mundo) esperaram mais de três anos para a eleição e posse de Roosevelt, ficando todo esse período sob a liderança de um presidente fraco e inerte, Herbert Hoover; hoje, a espera é de dois meses, o governo Bush está agindo e Obama assume a liderança;
É isso! Enquanto o episódio de crise financeira de 1929 demorou quatro anos para começar a ser mudado, a crise financeira atual tem a possibilidade, veja bem: possibilidade, de acabar em um período curto, justamente porque o Hoover de 29, o atual presidente Bush, está de saída. Estamos diante de um momento incrível, de debate da hegemonia americana. Obama tem nas mãos uma chance histórica de fazer acontecer. Ou de afundar definitivamente. Como fazer previsões diante de um cenário desses?

Pois de tudo, veja como Sardenberg termina seu artigo:

Claro que o ponto fraco desse argumento está na avaliação da crise atual. Estamos no terreno das previsões - e previsões em economia, neste momento, valem tanto quanto ações. Seria a previsão do Fed - de que a recessão cessa em meados de 2009 - excessivamente otimista ou, como diria o presidente Lula, apenas uma conversa de médico para animar um paciente condenado?
Ao escrever esse parágrafo Sardenberg demonstra ter consciência que escrever se baseando em previsões - por mais acuradas que sejam - não quer dizer nada. Então, porque escreveu?

***

O que pensar então?Primeiro, é impossível fazer previsões. Lembrei de algumas extremas no meio dos meus comentários, mas não é preciso forçar muito. A maioria dos analistas econômicos e financeiros faziam previsões super otimistas em 2006 em relação a 2007 (quando surgiu a crise) e no ano passado em relação a 2008 (quando nos encontramos na situação atual). O que aconteceu com as previsões? Fica claro que previsão por previsão não vale nada.

Segundo e último. Estamos diante de um novo 1929? Não. Eram outras circunstâncias, um mundo diferente liderado por cabeças diferentes. Isso é óbvio. Mas a crise atual é quase tão séria quanto. Partiu da especulação (capitalismo) descontrolada (liberal) sobre mercados fortes (monopolistas) para a economia real. A segunda maior varejista de produtos eletrônicos nos EUA, a Circuit City, faliu. As três grandes montadoras estão na beira da falência, Ford, GM e Chrysler. O desemprego já é recorde e não pára de subir e as dívidas das famílias são enormes. Mesmo a dívida do país, a soberana, é monstruosa. Já são quase US$ 13 trilhões. Isso mesmo, treze trilhões de dólares, o equivalente ao PIB americano. Portanto, podemos estar ou não diante de um novo 1929. Mas é impossível saber agora.

28 de novembro de 2008

Arte, política e mercado

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Por João Villaverde

Eu acho que não se pode falar de cultura sem se falar de política. E não se pode falar de política sem se falar das liberdades individuais. Ou sem se falar do clima no qual se cria a cultura. É mais importante, me parece, do que discutir as questões relativas ao processo econômico ou ao processo de censura especificamente. Aquilo que se vive, o cotidiano mesmo. Quer dizer, a cultura entendida como o sentido mais amplo das relações sociais e do processo da criatividade humana num determinado país, numa determinada época.
Leon Hirzman, 1975

O fim da repressão, da censura e da ditadura militar em 1985 aplacou os movimentos políticos e as artes de uma maneira que a sociedade até hoje não se levantou.

Os anos 1990 trouxeram novos ideais, com Collor e Fernando Henrique Cardoso. Agora, o movimento era de inserir o Brasil no mundo moderno. Como? Passando as instituições do Estado para mãos privadas, ou simplesmente abolindo a participação pública nas artes. Sob Collor a Embrafilme, a Funarte e toda participação do Estado nas artes foi desmantelada. Se isso pode ter sido benéfico para a liberdade de expressão desvinculada do financiamento estatal, criou um movimento contrário: agora se está em mãos de fundos de investimentos, nacionais ou estrangeiros, ou de galerias e colecionadores privados.

Sob FHC foram criadas as leis de incentivos fiscais concedidos pelo Estado para que empresas privadas ou públicas invistam em artes. No campo audiovisual e no teatro, o jogo ficou reduzido ao financiamento de empresas (basicamente instituições financeiras), aproveitando o abatimento de impostos previstos pelo Estado para a distribuição em larga escala. Nas artes plásticas esses agentes funcionam como compradores, enquanto a produção é financiada por colecionadores (por vezes, as mesmas instituições financeiras) ou por galerias. A centralização do acesso – tanto do produtor quanto da sociedade em geral – ficou ainda mais concentrada, num modelo mais elitista que o vigente anteriormente.

E estamos falando de um país que privilegia a camada de renda mais alta da sociedade há 508 anos.

Historicamente, as artes plásticas sempre foram um feudo da burguesia “esclarecida” (leia-se endinheirada), que tinha acesso à cultura dos países ricos, podendo importar valores e obras para cá. Os primeiros movimentos nacionais nesse campo foram os modernistas das primeiras décadas do século XX, seguidas do movimento concretista dos anos 50. Mas a primeira arte genuinamente nacional no campo das artes plásticas foi o movimento cultural dos anos 60 e 70, que gerou a defesa da cultura nacional, das características do povo e das disputas políticas internas. Foi esse movimento que foi esquecido tão logo a abertura política começou a ser desenhada, ainda no fim dos anos 70.

É preciso ter em mente o processo histórico para poder discutir os novos artistas e entender o porquê da arte ser como ela é.

Não há uma criação estética relevante no país. Mesmo se atendo ao aspecto simplista das aparências, os artistas de hoje se parecem muito com os jovens americanos: tênis All-Star, calças justas ou bermudas largas, camisetas pretas justas ou coloridas com inscrições em inglês, óculos escuros e bonés. Isso não é uma crítica, mas uma constatação.

O país dos pescadores, dos índios, dos negros, da favela, dos 40 milhões que dependem dos R$ 95 mensais (quantia máxima dos benefícios do Bolsa Família) repassados pelo Estado para comer, do frevo, do samba, etc., é ignorado, como de costume.

Há duas semanas, na quarta-feira 19, conversei com o artista plástico Rodolpho Parigi, de 31 anos. O Rodolpho pertence a novíssima geração de artistas plásticos do mainstream brasileiro. Estudou na FAAP, uma das mais caras faculdades da América Latina. Contou que, no primeiro ano (2003) eram 30 alunos na sala. Quando se formou, no ano passado, sobraram ele e mais quatro. Mas não era uma questão de grana. Rodolpho era o único bolsista entre os que entraram no mesmo ano. Era uma questão de paixão pelo trabalho, pelas artes.

Aliás, um parêntesis. Isso é absolutamente normal nos cursos da FAAP. Muito caros, a concorrência é pequena. Acaba atraindo, em sua maior parte, o inúteis endinheirados que não tem preocupação alguma com o futuro. A renda tá garantida. Escolhem o campo das artes pelo deslumbramento, não pela emoção. Abandonam tão logo percebem que a coisa, antes de pragmática é radical. Viver de arte no Brasil não é fácil. Mesmo para os mais ligados ao poder. Fecha parêntesis.

Rodolpho surgiu em 2006, quando iniciou sua série de trabalhos "apropri_ação", pintando sempre em cor preta, paredes brancas. Começou a ser contratado por colecionadores e galerias para fazer o trabalho. E a mudança de patamar veio no fim do ano, quando Bernardo Paz - famoso colecionador, casado com Adriana Varejão - adquiriu duas obras suas.

"A partir daí foi uma mudança total. Passei a ser contactado por diferentes galerias, colecionadores, comecei a ter horários, coerência de discurso, assistentes...". Rodolpho entrou para o mercado. Seus trabalhos, hoje, tem o preço mínimo de R$ 20 mil. Desses, 50% ficam com a galeria. Ele agora se prepara para sua primeira exposição individual, em fevereiro do próximo ano.

Durante a conversa ele disse estar lendo um livro sobre cores e política. Ele ficou impressionado com a idéia de que escolhemos a cor de nossas roupas a partir de nossos ideais sociais e políticos. Aproveitei a deixa para perguntar sobre seu trabalho, se ele é político ou não.

"Não, não é. Minhas influências são todas sexuais. Aliás, adoro o fato de meu trabalho ser extremamente comercial. Mas não posso ser um vendido, perder minha postura de artista por causa do mercado. Ao mesmo tempo, o mercado existe. Tenho de levar isso em consideração". O dilema fica claro.

E o país segue, sem que haja uma tendência de crítica ou contestação política diante do mundo em que vivemos. A popularização das artes é necessária, mas antes é preciso resolver os problemas imeadiatos. Afinal, é muito descolamento social fazer um desenho bonito enquanto os serviços públicos definham há séculos.