5 de agosto de 2013

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ressaca moral

 na manhã esverdeada, ele contemplava as donzelas mortas. fantasmas de uma amizade turbulenta, agitada por sonhos destruídos mas ainda ricos em radiotividade. as dívidas não-pagas de amor. os filmes vistos dez vezes. as noites de insônia e sofrimento, uma agulha penetrando sob as unhas de conversas mal digeridas, discussões vazias, qual pesadelos violentíssimos sendo tragados rapidamente, junto ao vinho, junto às savanas secas e famintas do planalto central.

 as discussões de bar entre amigos são a coisa mais linda da vida, e as mais duras. as brincadeiras e as divergências. os erros, os exageros, os cancelamentos de eventos internacionais, as revoluções, os governadores, nada disso, de madrugada, vale um pensamento de amor. mas resistimos, entre desculpas e ressacas, e acreditamos no perdão do pós-guerra, no café, na democracia e no cinema. eu te amo, meu irmão.

Um conto de protesto

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A balada do menino sem bandeira


 


Por Miguel do Rosário

Para o dileto amigo N.R.

Norberto caminhava rápido pelo viaduto, na direção da esplanada. Decidira ir a pé por causa do trânsito. Os carros eram um bando de formigas bloqueadas por uma linha de veneno. Sentiu alívio.

Curioso. Todos aqueles motoristas aflitos, querendo chegar logo em seu destino e eu tomado por um inefável bem estar por não estar entre eles. No mesmo momento, qual vingança divina contra seu pecado, sentiu uma dor aguda no joelho direito. Foi obrigado a reduzir o passo, e por fim parou junto à murada do viaduto.

Então reparou que o congestionamento era maior do que o normal. E havia também mais gente. Jovens, legiões deles. É uma passeata, concluiu, enquanto examinava o celular. Recebera uma mensagem. A reunião fora adiada em meia hora. O outro, presidente de uma fundação, também enfrentava problemas para chegar. Puxou um maço do bolso e acendeu um cigarro.

A dor no joelho sempre o arremessava violentamente ao passado, ao tempo da colheita de café. Um garoto de onze anos trabalhando catorze horas por dia. Foi lá que ferrara o joelho. Voltava pra casa uma noite tão exausto que desmaiou na descida de um barranco e se feriu.

Mais jovens chegavam, portando pequenos cartazes. Alguns vinham cantando. Norberto sentiu as lágrimas enchendo-lhe os olhos, mas logo sorriu, irônico. Não chorava de emoção pela vitalidade democrática que assistia, os jovens marchando sem medo em prol de um país melhor. Chorava por si mesmo, imaginando tolamente que a passeata era um protesto contra o que ele mesmo havia sofrido.

Respirou fundo o ar puro e seco do Planalto Central e experimentou voltar a andar. A dor diminuíra. Caminhando devagar chegaria a tempo, sem sofrer desnecessariamente. Chega de sofrimento, quase gritou em silêncio, e riu sozinho. Entrou por um atalho, desceu por uma escada e chegou à esplanada.

Agora estava ao lado dos manifestantes. Andava lentamente, tentando não mancar, olhando os cartazes. Mais quinze ou vinte minutos e chegava a seu destino. Mais quinze e vinte... anos e chegaria... Onde, exatamente? Não seria o mesmo objetivo de todos aqueles meninos e meninas? Chegar em algum lugar seguro e confortável?

Lembrou, irritado, da discussão na véspera, num restaurante. Aquele cara bêbado cagando teorias e "verdades". Talvez tivesse alguma razão, mas a perdeu totalmente porque se expressava de um jeito histérico.

Vá se foder!

Um grupo de garotos que seguia à sua frente se voltou assustado. Ele balançou as mãos, sorrindo humildemente. Tinha falado sozinho.

A multidão engrossou. As cantorias aumentaram. Norberto tentou prestar atenção na letra de uma delas. Ih, fodeu, o povo apareceu! 

O ar também parecia ter engrossado. Um oxigênio mais denso e mais perigoso. Antes do sol nascer, subia na boléia do caminhão para colher café na fazenda, mas voltava a tempo de escutar o bêbado vomitando teorias num restaurante do Rio de Janeiro. O povo gritava mais alto, ele não entendia o que o bêbado dizia. Movia a perna direita, a constante fisgada de dor fazia explodir lembranças da fazenda onde trabalhava, o sol forte castigando-lhe a cabeça. Movia a perna esquerda, o jantar da véspera, o bêbado arrogante cospindo teses.

Distraiu-se olhando um grupo de garotas realmente bonitas que marchavam um pouco mais à frente. Um helicóptero cruzou o grupo, provocando uma longa onda de vaias e gritos.

Vá se foder!

Desta vez, havia só pensado. Só que não sabia para quem se dirigia. Não pensava mais no bêbado. Nem no helicóptero, nem na fazenda. Apenas tinha vontade de mandar alguém se foder.

Então começou a chorar. Tão forte que um grupo logo o abordou, preocupado. Uma moça segurou seu braço, maternalmente.

- Estou bem, estou bem.

Seguiu andando ao lado do grupo, que instintivamente o adotara. A moça lhe dera o braço. Ele sentiu-se perdido, como se não tivesse idade nem para colher café. Ou talvez já tivesse, mas agora se recusava a sair de casa. Estava frio, muito frio, e ele tinha fome.

Os jovens gritavam à sua porta, pedindo que saísse, que era hora de trabalhar. Ele queria continuar dormindo, apesar do estômago vazio. Mas os gritos não paravam. Quando ele sai de casa, percebe que os jovens na verdade gritam a seu favor. Eles querem que ele volte pra casa. Uma garota se aproxima e lhe oferece um sanduíche. Outro, uma xícara de café com leite.

O helicóptero retorna, mas desta vez a massa reage com indiferença. Norberto pede licença à garota que o leva pelo braço e se despede. Havia chegado ao local de encontro. Ainda cogita entregar um cartão de visita à ela, mas acha melhor não. Ela devia ter menos de dezesseis.

Enquanto se encaminha ao Ministério, ouve a cantoria se agigantar na avenida principal da esplanada. No caminho, pouco antes de chegar à portaria, vê um menino tomando conta de uma banquinha de salgados e doces. Um menino da sua idade quando colhia café no norte de Minas. Aproxima-se, pega um amendoim e entrega-lha uma nota de vinte reais.

- Pode ficar com o troco.


O garoto lhe responde com um sorriso cúmplice. Eles se reconhecem. São a mesma pessoa.