A balada do menino sem bandeira
Por Miguel do Rosário
Para o dileto amigo N.R.
Norberto caminhava
rápido pelo viaduto, na direção da esplanada. Decidira ir a pé
por causa do trânsito. Os carros eram um bando
de formigas bloqueadas por uma linha de veneno. Sentiu alívio.
Curioso.
Todos aqueles motoristas aflitos, querendo chegar logo em seu destino
e eu tomado por um inefável bem estar por não estar entre eles. No
mesmo momento, qual vingança divina contra seu pecado, sentiu uma
dor aguda no joelho direito. Foi obrigado a reduzir o passo, e por
fim parou junto à murada do viaduto.
Então reparou que o
congestionamento era maior do que o normal. E havia também mais
gente. Jovens, legiões deles. É uma passeata, concluiu, enquanto
examinava o celular. Recebera uma mensagem. A reunião fora adiada em
meia hora. O outro, presidente de uma fundação, também enfrentava problemas para chegar. Puxou um maço
do bolso e acendeu um cigarro.
A dor no joelho sempre
o arremessava violentamente ao passado, ao tempo da colheita de café.
Um garoto de onze anos trabalhando catorze horas por dia. Foi lá que
ferrara o joelho. Voltava pra casa uma noite tão exausto que
desmaiou na descida de um barranco e se feriu.
Mais jovens chegavam,
portando pequenos cartazes. Alguns vinham cantando. Norberto sentiu
as lágrimas enchendo-lhe os olhos, mas logo sorriu, irônico. Não
chorava de emoção pela vitalidade democrática que assistia, os
jovens marchando sem medo em prol de um país melhor. Chorava por si
mesmo, imaginando tolamente que a passeata era um protesto contra o
que ele mesmo havia sofrido.
Respirou fundo o ar
puro e seco do Planalto Central e experimentou voltar a andar. A dor
diminuíra. Caminhando devagar chegaria a tempo, sem sofrer
desnecessariamente. Chega de sofrimento, quase gritou em silêncio, e
riu sozinho. Entrou por um atalho, desceu por uma escada e chegou à
esplanada.
Agora estava ao lado
dos manifestantes. Andava lentamente, tentando não mancar, olhando
os cartazes. Mais quinze ou vinte minutos e chegava a seu destino.
Mais quinze e vinte... anos e chegaria... Onde,
exatamente? Não seria o mesmo objetivo de todos aqueles meninos e
meninas? Chegar em algum lugar seguro e confortável?
Lembrou, irritado, da
discussão na véspera, num restaurante. Aquele cara bêbado cagando
teorias e "verdades". Talvez tivesse alguma razão, mas a
perdeu totalmente porque se expressava de um jeito histérico.
Vá se foder!
Um grupo de garotos que
seguia à sua frente se voltou assustado. Ele balançou as mãos,
sorrindo humildemente. Tinha falado sozinho.
A multidão engrossou.
As cantorias aumentaram. Norberto tentou prestar atenção na letra
de uma delas. Ih, fodeu, o povo apareceu!
O ar também parecia
ter engrossado. Um oxigênio mais denso e mais perigoso. Antes do sol
nascer, subia na boléia do caminhão para colher café na fazenda, mas voltava a tempo de
escutar o bêbado vomitando teorias num restaurante do Rio de
Janeiro. O povo gritava mais alto, ele não entendia o que o bêbado
dizia. Movia a perna direita, a constante fisgada de dor fazia
explodir lembranças da fazenda onde trabalhava, o sol forte
castigando-lhe a cabeça. Movia a perna esquerda, o jantar da
véspera, o bêbado arrogante cospindo teses.
Distraiu-se olhando um
grupo de garotas realmente bonitas que marchavam um pouco mais à
frente. Um helicóptero cruzou o grupo, provocando uma longa onda de
vaias e gritos.
Vá se foder!
Desta vez, havia só
pensado. Só que não sabia para quem se dirigia. Não pensava mais
no bêbado. Nem no helicóptero, nem na fazenda. Apenas tinha vontade
de mandar alguém se foder.
Então começou a
chorar. Tão forte que um grupo logo o abordou, preocupado. Uma moça
segurou seu braço, maternalmente.
- Estou bem, estou bem.
Seguiu andando ao lado
do grupo, que instintivamente o adotara. A moça lhe dera o braço.
Ele sentiu-se perdido, como se não tivesse idade nem para colher
café. Ou talvez já tivesse, mas agora se recusava a sair de casa.
Estava frio, muito frio, e ele tinha fome.
Os jovens gritavam à
sua porta, pedindo que saísse, que era hora de trabalhar. Ele queria
continuar dormindo, apesar do estômago vazio. Mas os gritos não
paravam. Quando ele sai de casa, percebe que os jovens na verdade
gritam a seu favor. Eles querem que ele volte pra casa. Uma garota se
aproxima e lhe oferece um sanduíche. Outro, uma xícara de café com
leite.
O helicóptero retorna,
mas desta vez a massa reage com indiferença. Norberto pede licença
à garota que o leva pelo braço e se despede. Havia chegado ao local
de encontro. Ainda cogita entregar um cartão de visita à ela, mas
acha melhor não. Ela devia ter menos de dezesseis.
Enquanto se encaminha
ao Ministério, ouve a cantoria se agigantar na avenida principal da
esplanada. No caminho, pouco antes de chegar à portaria, vê um
menino tomando conta de uma banquinha de salgados e doces. Um menino
da sua idade quando colhia café no norte de Minas. Aproxima-se, pega
um amendoim e entrega-lha uma nota de vinte reais.
- Pode ficar com o
troco.
O garoto lhe responde
com um sorriso cúmplice. Eles se reconhecem. São a mesma pessoa.