27 de junho de 2008

Tirem as crianças da sala

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Tirem as crianças da sala. Advirtam mães, tias, avós para não se aproximarem. Ursinho peludo, zebrinha listrada, podem voltar ao lugar oferecido pelos Titãs. Os bichos escrotos saíram das valas e demônios e sacis decidiram dar umas bandas por São Paulo, com participação especial em O Fim da Picada, primeiro longa do diretor Christian Saghaard, e do produtor Jorge Guedes (Cinegrama).

O filme conta a história de um cara que viaja no tempo, desde a época do Brasil colonial, até os dias de hoje. Não se assuste com o início, um close de bela vagina, apesar da cicatriz, seguido de uma cena de necrofilia. As coisas melhoram para o heroi depois que ele passa a noite bebendo vinho com o diabo, numa choupana. O dito-cujo leva-o para São Paulo contemporânea, onde ele vaga perdido e deslumbrado com o caos urbano, e a história é cruzada por outros relatos e personagens igualmente escabrosos.

Psicodélico, lunático, satânico, grotesco? Mescla de Zé do Caixão e Glauber Rocha? De uma coisa se pode ter certeza: é um filme corajoso, perturbador e original. A linguagem fragmentada, a atmosfera de pesadelo e loucura, a violência constante, o fator demoníaco, a presença cômica e sinistra do saci - não poderia haver história que retratasse melhor o sofisticado submundo de São Paulo.


Outro post sobre o filme.

26 de junho de 2008

Tempo dos assassinos

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Henry Miller, o escritor americano famoso por sua trilogia Sexus, Nexus e Plexus, além dos romances Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, foi um dos autores que mais marcaram a minha vida. Ler Miller não é somente ler um livro. É uma experiência profundamente orgânica e psicológica, uma verdadeira viagem pelos quatro continentes da alma humana. Ele transforma sua história, seus sofrimentos, em símbolos da derrocada e redenção do homem. O mais legal em Miller é que ele nos ensina que a experiência não é resultado de bebedeiras, drogas, festas. Também não sustenta as teorias jesuíticas sobre o valor do sofrimento para a formação do artista. A experiência é sobretudo um ato de criação, um extravasamento de nossa sabedoria e criatividade. Ninguém é mais sábio que outro por ter conhecido países diferentes. A criatividade não é comprada em Nova York. Por isso, temos grandes artistas como Machado de Assis e Cartola, que nunca saíram do Rio de Janeiro, e se tornaram universais.

O Miller escreveu também um ensaio chamado Tempo dos Assassinos onde analisa a obra de Arthur Rimbaud com sua verve inigualável. Miller conheceu a obra de Rimbaud tarde, quando já morava em Paris, após os 40 anos, e sentiu imensa afinidade com o angustiado poeta francês que abandonou a literatura aos 20 anos para se tornar traficante de armas e escravos na África. Rimbaud, assim como Miller, buscou transformar a literatura numa experiência autêntica, vital. C'est le temp de les assassins, é o verso final de um lindo poema do jovem nascido em Charleville, que uma vez fugiu de casa aos 16 anos para se juntar aos communard, os anarquistas que tomaram o poder em 1871, durante a Comuna de Paris. Rimbaud não suportou a vidinha medíocre e artificial das rodas literárias parisienses.

Há um filme interessante, com Leonardo Di Caprio fazendo papel de Rimbaud, cujo título em português é Eclipse de uma Paixão, que descreve as peripécias do poeta em Paris e Londres.

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Abaixo o poema onde consta a expressão "tempo dos assassinos", no original e na tradução do Ivo Barroso.


Matinée D'Ivresse - Arthur Rimbaud

Ô mon Bien ! Ô mon Beau ! Fanfare atroce où je ne trébuche point ! Chevalet féerique ! Hourra pour l'œuvre inouïe et pour le corps merveilleux, pour la première fois ! Cela commença sous les rires des enfants, cela finira par eux. Ce poison va rester dans toutes nos veines même quand, la fanfare tournant, nous serons rendus à l'ancienne inharmonie. Ô maintenant, nous si dignes de ces tortures ! rassemblons fervemment cette promesse surhumaine faite à notre corps et à notre âme créés : cette promesse, cette démence ! L'élégance, la science, la violence ! On nous a promis d'enterrer dans l'ombre l'arbre du bien et du mal, de déporter les honnêtetés tyranniques, afin que nous amenions notre très pur amour. Cela commença par quelques dégoûts et cela finit, - ne pouvant nous saisir sur-le-champ de cette éternité, - cela finit par une débandade de parfums.

Rire des enfants, discrétion des esclaves, austérité des vierges, horreur des figures et des objets d'ici, sacrés soyez-vous par le souvenir de cette veille. Cela commençait par toute la rustrerie, voici que cela finit par des anges de flammes et de glace.

Petite veille d'ivresse, sainte ! quand ce ne serait que pour le masque dont tu nous as gratifiés. Nous t'affirmons, méthode ! Nous n'oublions pas que tu as glorifié hier chacun de nos âges. Nous avons foi au poison. Nous savons donner notre vie tout entière tous les jours.

Voici le temps des ASSASSINS.


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Manhã de Embriaguez - Arthur Rimbaud (traduzido por Ivo Barroso)

Oh meu Bem, oh meu Belo! Fanfarra atroz em que não mais tropeço! cavalete feérico! Hurra pela a obra inaudita e pelo corpo maravilhoso, pela primeira vez! Tudo começou com risos de crianças, com eles vai terminar. Este veneno permanecerá em nossas veias mesmo quando acabar a fanfarra e voltarmos à nossa antiga inarmonia. Ó, agora que somos tão dignos dessas torturas! recolhamos fervorosamente esta promessa sobreumana feita ao nosso corpo e à nossa alma criados: esta promessa, esta demência! A aparência, a ciência, a violência! Prometeram-nos enterrar na sombra a árvore do bem e do mal, desterrar as honestidades tirânicas, para que pudéssemos realizar o nosso amor mais puro. Começou com certas repugnâncias e terminou, - não nos sendo possível apreender de imediato esta eternidade, - terminou com uma debandada de perfumes.

Risos de crianças, discrição dos escravos, austeridade das virgens, horror das faces e objetos daqui, sagrados sede vós pela lembrança desta vigília. O que havia começado com toda a grosseria, eis que vai acabar em anjos de chama e gelo.
Curta vigília de embriaguez, sagrada! ainda que não seja pela máscara com que nos gratificaste. Nós te confirmamos, método! Não nos esquecemos que ontem glorificaste cada uma de nossas idades. Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias.

Eis o tempo dos Assassinos.


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Mas o que eu queria falar mesmo era sobre a exposição do Daniel Senise, no Museu de Arte Moderna do Rio. Senise enveredou por uma linha racionalista que me desgosta muito. Acho triste, inclusive, que esta frieza venha sendo valorizada como uma qualidade. Arte não é cálculo. Há alguns trabalhos na exposição que fogem a esta linha e são os mais bonitos, na minha opinião.

A judaria do tenente

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Fiquei, como o Brasil inteiro, estarrecido com o crime cometido por militares no morro da Providência, que prenderam três jovens e entregaram-nos a traficantes da Mineira para que fossem trucidados, e queria dizer o que penso sobre o episódio.

Em primeiro lugar, sou contra o uso de exército nos morros cariocas. A Força Nacional, que é militar, tudo bem, ela é preparada exatamente para esse tipo de coisa. Mas o exército não é.

Também não gostei do sentido dessa obra na Providência, patrocinada politicamente pelo senador Marcelo Crivella, contra quem tenho, confesso, bastante aversão. Suas primeiras tiradas durante a campanha à prefeitura do Rio, dizendo que o Gabeira era candidato que defendia "homem com homem" e "maconha", mostraram quem ele é.

O fato dele pertencer à base aliada não muda nada. Hoje em dia, até o diabo quer ser aliado de Lula. E Lula, como presidente da República, não é insano de renegar apoio político, ainda mais de um senador, visto que o Senado é o calcanhar de aquiles de seu governo.

No entanto, por mais que eu tenha aversão à Crivella e ao uso do exército nas favelas cariocas, acho um absurdo a politização barata de um crime hediondo. A culpa não é de Crivella nem do Exército. O tenente e os militares que o obedeceram cometeram um terrível crime contra a humanidade. Desculpe o termo chulo: foi uma inacreditável sacanagem.

Li há alguns dias um texto da Eliane Catanhede (colunista da Folha), infeliz como sempre, que o crime teria sido ainda mais grave porque seriam jovens trabalhadores, não ligados ao tráfico. Nada a ver. Não há nenhuma hierarquia moral aí. Se eles fossem traficantes, a sacanagem seria a mesma, ou ainda pior.

O que os militares fizeram revelou frieza e crueldade em tal escala que me apavora vê-las em qualquer ser humano e mais ainda em membros do exército brasileiro, cujo salários são pagos pela população para protegê-la. Foi uma judaria, uma traição à civilização.

A politização da morte desses jovens é tão podre quanto a que fizeram com o acidente da TAM. O crime foi hediondo e talvez usar o exército para dar proteção às obras na favela tenha sido uma péssima idéia. Mas obviamente Crivella não planejou isso. Nem o exército. E as obras, em si, são bem vindas. O César Maia disse que faria a mesma obra com R$ 3 milhões. Ora, porque não faz então? Por que não faz em outras favelas? A idéia de levar desenvolvimento urbano e social para as favelas é extraordinária. É a única forma de convencer as crianças e adolescentes dessas comunidades de que o Estado não existe apenas para reprimir, mas para ajudar também.

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Hoje fui ver um filme magnífico, O Segredo do Grão, que conta a história de membros de uma comunidade árabe numa cidade portuária francesa. O protagonista é um homem de 61 anos que, depois de ser demitido, resolve usar sua indenização para abrir um barco-restaurante.


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Qual o interesse da mídia em repetir interminavelmente que o tal advogado Roberto Teixeira é "compadre" de Lula? Não sabia que "compadre" era um parentesco tão importante assim. Até onde eu sei, poucas pessoas lembram-se de quem são seus "compadres" de batismo e vice-versa. E por acaso agora alguém é responsável pelos atos de seus "compadres"? Essa é boa. O incrível nesta novela sobre a Varig, é que não há nenhuma acusação clara. Tudo parte de denúncias, contraditórias e tendenciosas, da ex-diretora da ANAC, Denise Abreu, de que Dilma Roussef teria "pressionado" a agência para resolver logo o caso da Varig. Ora, agora pressão é crime? Se o governo é eleito pelo povo, ele tem o poder e o dever, previstos na Constituição, de pressionar quem ele bem entender. Pressão não é crime. Se a Denise Abreu acusasse o governo de ter prevaricado ou interferido diretamente em algum processo, poderíamos encontrar um problema. Qual o problema em pressionar? É o mínimo que se espera do governo. Essas agências não podem se tornar clusters isolados dos interesses nacionais.

O lacerdismo boçal de Clovis Rossi

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Prezado Clovis Rossi, tu te tornaste um velho chato ranheta insuportável. Seus textículos me irritam mesmo quando falas mal de tucanos. Ontem (25/06), por exemplo. Você contribuiu para esse preconceito anti-democrático e colonial contra a política. Você ataca o cinismo dos políticos, usando como exemplo o abraço de Alckmin em Serra. Diz que, se não fossem cínicos, dariam facadas uns nos outros!!!!! Aí você explica, como bom cretino que és, que não fala de facadas reais, mas verbais. Óóóó. És tão correto! Explica as coisas tão direitinho.

Agora lutas contra o cinismo no mundo? Engraçado isso. Muito engraçado. Aí a teu lado, na redação, encontrarás exemplos muito melhores do que o hipócrita abraço tucano. Eles são politicos e acho extremamente medíocre, infantil e boçal da tua parte afirmar que eles, para serem sinceros, deveriam esfaquear-se em público.

Teu lacerdismo desceu alguns degraus. Cansado de bater no Lula, agora resolveste bater no Serra. Mas não tem jeito. É o mesmo preconceito arrogante contra a política e os políticos, como se os jornalistas fossem uma raça superior.

Termino citando pela milésima vez o texto com o qual Espinoza abre o seu tratado político. Trata-se de uma espinafrada anti-moralista nos filósofos, e vale para intelectuais e jornalistas.


"Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assim agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza huamana que em parte alguma existe, e atacando através de seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí por consequência, quase todos, em vez de uma Ética, hajam escrito artigos satíricos, e não tinham sobre Política nenhuma idéia que pudesse ser posta em prática, devendo a política, tal como a concebem, ser tomada por Quimera, Utopia de uma idade de ouro sem instituições humanas e seus defeitos inevitáveis.

Por isso, entre todas as ciências que tem aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos".

24 de junho de 2008

Da série Desmascarando a Folha de SP

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A Folha me deu uma assinatura grátis de 30 dias. Digo isso porque eu, que já gostei da Folha, acho que o seu nível decaiu brutalmente nos últimos anos. Tornou-se um periódicuzinho safado, birrento, enganoso. Hoje (24/06/2008) peguei o danado com a boca na botija. Tem uma matéria na página B6, intitulada "Exportação [brasileira] para os EUA cai a 15% do total", que vai para os anais do golpismo banguela.

O número é simples de entender. Antigamente, os EUA compravam quase tudo que o Brasil produzia. Hoje, o leque de compradores de produtos brasileiros é muito mais variado. Temos China, Oriente Médio, África, Mercosul, comprando grandes quantidades e valores do Brasil. Trata-se de um dado positivo em todos os sentidos. O Brasil está menos dependente de um mercado só. Diante da recente (e atual) crise financeira norte-americana, o fato torna-se ainda mais relevante. Os EUA compram hoje cerca 15% das exportações brasileiras, contra 21% em 2003 (diz a Folha). Não significa que as exportações brasileiras para os EUA tenham diminuído. Ao contrário. Em 2002, último ano fernandista, o Brasil exportou US$ 15,81 bilhões para os EUA. Em 2007, esse número saltou para US$ 25,64 bilhoes. Aumento de 62%.

Mas não é isso que a Folha diz. Usando a velha e espertinha tática de ir atrás de declarações que provem teses pré-fabricadas (no caso, de que a nossa política internacional seria "terceiro mundista", "ideológica" e "anti-americana", e isso apesar da Condolezza Rice ter dançando olodum em Salvador), o jornal cita um tal Mario Marconini, da Federação do Comércio de SP, que afirma que o Brasil "está perdendo espaço no mercado americano para concorrentes como a China e Índia". Outro entrevistado, Roberto Gianetti da Fonseca, vai na mesma linha e sai com essa pérola negra: "Diversificar é bom, mas é preciso aumentar a participação dos EUA". É como dizer: picanha fresca é muito bom, mas não podemos esquecer a velha e boa salsicha.

"Ora, direis, ouvir estrelas! Perdeste o senso! ", divagava Bilac. Pois é. Fui atrás dos números e verifiquei que o Brasil não está perdendo espaço coisíssinha nenhuma. A participação brasileira nas importações americanas aumentou sensivelmente nos últimos anos, saindo de um patamar em torno de 1,1%, para mais de 1,4%. E não se iluda com a modéstia desses números. Estamos falando de um país que importa anualmente quase 2 trilhões de dólares. Esses decimais correspondem a dezenas de bilhões de verdinhas.

De fato, China ampliou seu espaço no mercado americano, de 11% em 2002 para 16% em 2007. E daí? O gigante dos olhinhos puxados elevou suas exportações para o mundo inteiro. A mão-de-obra na China custa um décimo que a mão-de-obra no Brasil. É um governo totalitário, que não presta contas para nenhum parlamento e para nenhuma imprensa. Acho sempre engraçado quando a mídia brasileira procura denegrir o Brasil comparando-o com a China. Não troco o nosso crescimento modesto de 5% ao ano pelo crescimento de 10% da China, assim como não troco o aumento das exportações chinesas pelo aumento das nossas. Quanto à Índia, o Marconini falou bobagem. A participação das exportações indianas no mercado americano continua menor que a brasileira: fechou 2007 em 1,23%. Também aumentou bastante de uns 10 anos para cá. Até 2001, era inferior a 1% mas nada indica que esteja tomando o espaço brasileiro. Até onde sei, a India se destaca na exportação de softwares e, portanto, não é concorrente do Brasil.

A matéria é tendenciosa e induz a um conclusão errônea sobre a economia brasileira. Eu me pergunto: qual o interesse da Folha? Por que ela está o tempo todo tentando fazer seus leitores verem as coisas piores do que reamente são? Nesse caso, nem se trata de sensacionalismo. Qual a vantagem em distorcer a realidade do comércio exterior brasileiro? Por acaso, o objetivo é prejudicar o Lula? Dar subsídio para a um boçal ou ingênuo acusar, com base nessa matéria furada, o governo de ser "terceiro mundista"?

Evidentemente, as exportações brasileiras para os EUA poderiam ter crescido 200%, nos últimos 5 anos, em vez de 62%. O Incrível Hulk também podia ser menos stressado. O Brasil NÃO perdeu participação no mercado americano. Esta caiu levemente nos últimos dois anos, mas cresceu vigorosamente em relação ao ínicio da década atual e final dos anos 90 (ver gráfico).

Desejar que um país em crise (os EUA), com um déficit comercial monstruoso, com uma moeda derretendo, aumente sua participação nas exportações brasileiras, é uma estupidez tão inconcebível e grotesca que merecia constar como exemplo num ensaio intitulado "a revolução dos retardados".

O dinheiro americano vale mais que o dinheiro europeu, asiático, africano, argentino? Transformar a diversificação das exportações brasileiras num fato negativo não é apenas mau jornalismo. É o mais tosco anti-patriotismo, a mais incompreenssível burrice, a mais imperdoável safadeza.

23 de junho de 2008

Outros silêncios: anti-terapias

"Tomai-me a mim, tomai-me a mim. Sou apenas um entrelaçamento de loucura e dor", versos do Antigo Testamento, lidos no livro de Maurice Blanchot sobre Kafka.


Não desisti. O bloqueio continua, mas o ser permanece vivo. Em coma, talvez. Mas vivo. Por baixo da pele fria e da expressão impassível, o sangue circula. O coração bate, silenciosamente. Algo importante morreu. Está sempre morrendo. Infância, adolescência, juventude, madurez, passam boiando tristemente. Os olhos baços, melancólicos, ocultam turbulências sinistras, ódios múltiplos e o eterno, insuportável desespero. À morte sucedem mortes. Não há renascimento. A vida é o consumo da energia que se desprende da dor.


Renego justificativas e renuncio à beleza. Negocio diretamente com os deuses hipócritas do pesar. Os invejosos da felicidade alheia, que me prendem à esta rocha, a esse romantismo decadente. Espesso. Esquizo. Inofensivo ao resto do mundo e letal à pátria-mãe. Eu.


Permaneçam os loucos. Os sofredores. A eles me junto, sem orgulho ou modéstia. Os palhaços, os funcionários, os platônicos, os covardes sociais. Brindemos à morte, ao amor, nos botequins jesuíticos, nas ágoras suburbanas, nas plataformas da dissidência.

11 de junho de 2008

Férias

Vocês certamente já perceberam. O blog tirou férias. Volto em breve.

4 de junho de 2008

Seleção de poemas

Segue uma seleção de poemas, a maior parte deles publicados em meu antigo blog, o Hell Bar. Aos poucos, vou republicando-os aqui, para constar no catálogo. Alguns tem áudio, com o autor (eu) recitando-os.


A poesia não paga o aluguel do meu apartamento (com áudio)
O carnaval vencerá a crise
Tristezas
sherazade
A poesia se come crua
Os romances que nunca serão escritos (com áudio)
Sonetos criminosos (com áudio)
crises políticas
Terrorismo
Versos da guerra
Antes que chegue a primavera (com áudio)
Duas poesias
Mais um poema boêmio
Quando o vazio da noite escorrega da minha boca
A dor de ver o sol chupando manga
Degenero ao sol da minha crise
Por que os poetas não gostam de política?
Mais um poema vadio
O lobo do homem
Elefantes, moleques e travestis
Poema anti-intelectual
Angústia pós-maldita
Anti-românticos suicidas
Hora marcada
O cão e o nariz
Romance botequinal
Triste dia de sol
Dejetos de um luxo carioca à sombra de satânicas flores azuis
Incendio
Rua do Rezende
Mistérios sem cafeína
Inveja anônima (com áudio)
Olivetti 1
Olivetti 2

O belo e o escalafobético

(Escrevi o artigo abaixo em 2005. Publico aqui, porque estou reunindo todos meus escritos nesse blog, onde eles podem ser catalogados automaticamente. É um texto sobre arte contemporânea. Hoje eu o considero pomposo e, provavelmente, devo discordar de mim mesmo em um ponto ou outro. Mas foi um texto que me custou muita leitura e esforço e, por isso, tenho um carinho especial por ele).



Escrever sobre arte é como escrever sobre Deus. Quanto mais pesquisamos o assunto, mais profundamente sentimos seu mistério. E talvez a arte deva mesmo seu sentido ao que existe de misterioso, de infinito, de inatingível em nossa cultura e em nossa história. Mas enfim, qual o critério para se afirmar que tal obra é bela e outra não? Para Kant, que inaugurou a filosofia estética moderna, o belo na arte é o que nos proporciona prazer. Não o prazer vulgar das sensações físicas, como o deleite de se beber um vinho famoso. Tampouco o prazer de realizar ou ver realizada uma ação moralmente boa. A sensação estética causa uma espécie distinta de prazer, mais espiritual, mais profunda, que agita nosso entendimento e nossa imaginação. Durante a contemplação da obra, estas duas faculdades do conhecimento brincam, jogam e dançam. Utilizando a metáfora preferida de Kandinsky, a arte não seria útil nem agradável, mas teria o poder de tocar um piano existente em nosso espírito, fazendo-o emitir uma melodia suave ou brutal, amorosa ou sombria, gerando um prazer incomparável. A pior violência inflingida pelo capitalismo aos trabalhadores, dizia Marx, é a falta de dinheiro, tempo e educação necessários para se maravilhar e se transformar diante de um quadro de Leonardo ou uma sinfonia de Beethoven.

Entretanto, fala-se em crise da arte. De fato, diante da imensa gama de instalações escalafobéticas, experimentações multimídia e bizarrices conceituais, que desde algum tempo invadiram nossos museus e galerias, lastreadas no discurso de que a arte tradicional estaria ultrapassada, o público se depara, enfastiado, com obras que não lhe despertam nenhum prazer, não estimulam a imaginação e nem atiçam a inteligência. Entre um bocejo e outro, lê explicações acadêmicas, em linguagem metafísica, sobre a suposta qualidade revolucionária daqueles trabalhos. Enfim, o espectador vai para casa certo de que é um ignorante incorrigível e decidido a não pisar novamente numa galeria de arte. E os aspirantes a críticos de arte resolvem seguir - antes tarde do que nunca - uma carreira menos intangível.

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Antes de continuar, cumpre ressalvar duas exceções relevantes da arte conceitual brasileira, por sinal seus pioneiros no país: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os inesquecíveis parangolés seguramente estarão para sempre inscritos nos anais de nossa história de arte. Mas, conforme muito bem argumenta o crítico Rodrigo Naves, em artigo recente, houve uma super-valorização destes dois artistas em detrimento de figuras mais expressivas de nossa modesta porém singela história de arte. Curadores internacionais, sobretudo americanos e europeus, interessados em divulgar as obras conceituais de seus próprios países, pescaram no terceiro mundo os representantes do mesmo estilo. Fazendo isso, acabaram perturbando a evolução singular de nossas artes, com uma desvalorização injusta de grandes nomes como Iberê Camargo, Oswaldo Goeldi e Flávio Shiró. Desvalorização, naturalmente, não entre os amantes das artes, mas nos circuitos oficiais de divulgação cultural, que passaram a cortejar seguidores de Oiticica nem sempre - ou quase nunca - à altura do mestre.

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Nos últimos anos, as grandes exposições internacionais vêm encorajando um determinado tipo de arte extremamente duvidosa, apresentando como obra um bando de peladões em fila, além de outras dezenas de obras-evento que, embora inegavelmente exóticas, esgotaram seu efeito estético sobre o público. Urinóis e rodas de bicicleta não causam mais nenhum espanto. A ousadia de Duchamp (1908 – 1968) foi importante para libertar a arte de todas as amarras, mas agora esta mesma liberdade deve ser usada com responsabilidade, técnica e objetivo estético. A perplexidade das pessoas diante de formas vazias de expressão é confundida com estranhamento por críticos dóceis, ideólogos fervorosos das teses fragmentadas e fragmentantes do pós-modernismo. Mas no fundo grande parte destas obras causam somente náusea e tédio. Então, os artistas conceituais, desesperados com o enfado crescente do público, apelam para as soluções mais patéticas, como o caso daquele que se mutilou diante dos visitantes de uma exposição. O estranhamento provocado por uma obra não é dissociado da sensação de prazer que sentimos diante do enigmático. As figuras humanas distorcidas de Francis Bacon (1909 – 1992) continuam a nos causar uma espécie de repulsa, mas não deixam de acender nossa imaginação e entendimento, fazendo-nos refletir sobre a condição humana e despertando um intenso prazer estético. Mesmo as pinturas de Basquiat (1960 – 1988), que nos assustam num primeiro momento, acabam por fazer vibrar nossas cordas íntimas, deixando em festa o espírito que consegue captar, no meio daquelas formas extravantantes, a poesia intensa e trágica deste nova-iorquino rebelde. Uma instalação escalafobética, como aquelas de Bispo do Rosário é genial porque consegue causar forte prazer estético no espectador.

A discussão sobre a validade de uma obra de arte nos remete novamente à tese kantiana, que aponta outro fator determinante na identificação do belo na arte: a universalidade. A beleza na obra não é uma questão de gosto individual do espectador. Quer dizer, uma pintura de Delacroix não é bela porque tu ou eles determinaram, mas sim porque todos gostamos dela, sentimos prazer com ela. Esta universalidade é obrigatória, pois sem ela simplesmente não existiria arte; e significa que a beleza artística é guardiã de arcanos poderosos que afetam a todos os membros de nossa civilização. Afetam de maneira estética, quer dizer, através do prazer estético, que tem o poder de atingir tanto nossa consciência mais superficial como as camadas mais ocultas de nosso inconsciente.

Esta comunicabilidade universal, fator necessário da boa arte, nos conduz aos pioneiros da arte moderna, que realizaram ao final do século XIX uma verdadeira revolução estética, ao resgatar a poesia épica dos grandes mestres renascentistas e ao mesmo tempo conquistar um público mais amplo, através da expressão, sob uma linguagem atualizada, das angústias e anseios de liberdade dos novos tempos. E, de fato, após uma primeira fase de perplexidade e mesmo hostilidade (Cézanne foi chamado de louco, tarado, que pintava sob o efeito de delirius tremendus), os modernos conseguiram multiplicar de maneira extraordinária o público amantes das artes. Não fosse esta preocupação de tocar ao coração das pessoas, de um Degas, Gauguin e Van Gogh, talvez a arte moderna não se difundisse de maneira tão avassaladora pelos quatro cantos do mundo, rompendo todo elitismo e atingindo, com sua mensagem carregada de humanismo, todas as classes sociais.

Vale lembrar um artigo de Baudelaire, publicado num jornal parisiense, por ocasião da morte de Delacroix, em que ele relata que um dia viu o grande pintor romântico a passear no Louvre, em companhia de sua velha criada, explicando-lhe os mistérios da escultura assíria. Filho de um ministro da revolução francesa, Delacroix cultivou em toda a sua vida esta paixão pelo homem e seu destino, esta esperança ardente na possibilidade de libertação através do conhecimento e da arte. Da mesma forma, algumas décadas depois, Picasso irá resgatar este mesmo humanismo irredutível, sob uma forma mais objetiva e racional, interferindo conscientemente no curso da história. Não custa recordar de Guernica, pintada em 1937, que foi uma resposta calculada e contundente ao massacre de civis por aviadores alemães, que a pedido de Franco bombardearam a pequena cidade espanhola insurgente.

Falando em humanismo, vale citar este movimento formidável, o expressionismo alemão, fundado por jovens inspirados na revolução cromática de Van Gogh e no existencialismo sombrio e desesperado de Munch. A Alemanha do início do século XX - unificada sob a mão-de-ferro de Bismarck e realizada enfim sua própria revolução burguesa - emergia como uma grande potência econômica e cultural. As obras de Kant, Hegel e Marx incendiavam os círculos intelectuais, gerando correntes variadas de pensamento e instilando na sociedade a ânsia por reformas que minorassem a miséria de grande parte da população. Os expressionistas refletiam esta inquietação. O advento da Primeira Guerra Mundial, que põe a nu os conflitos de classe, irá intensificar ainda mais a verve revolucionária de pintores como Kirchnner, Otto Dix e Max Beckman. Alguns anos depois, serão banidos e execrados pelos nazistas, que irão lhes atribuir a excêntrica qualificação de arte degenerada. Há uma curiosa anedota contada por aquele que foi um de nossos maiores críticos de arte, Mario Pedrosa, em que ele relata uma conversa com Georgio Morandi, em Bolonha. O grande pintor de naturezas mortas lembra que, em 1942, no auge da glória do III Reich, Hitler e Mussolini inauguraram pessoalmente uma exposição fascista em Roma, apoiada e divulgada pela mídia oficial e incensada pelos críticos. Morandi decide, junto com um amigo, ir à capital conhecer os novos artistas que tanto agradavam Il Ducce. Ao ver as pinturas retratando mancebos de raça pura saudando seus líderes, matronas heróicas e exércitos em armas, faz uma observação visionária a seu companheiro: “Com esta pintura, acho que vamos perder a guerra”.

Voltando a nossas plagas tropicais, vale a pena sair dos círculos convencionais e andar um pouco pela periferia cultural de nossas grandes cidades, para notar que amadurece nas sombras uma nova geração de artistas plásticos, vacinados contra este vanguardismo importado e conscientes de seu papel num país como o Brasil, dilacerado por agudas mazelas sociais. Isso não significa que sacrificam sua arte em prol de um panfletarismo vulgar. Muito pelo contrário. Os artistas que os neo-liberais anos 90 relegaram aos subterrâneos desenvolveram uma linguagem vigorosa, original e ferozmente moderna. Alguns se apoderaram inclusive de técnicas contemporâneas, como colagens e reciclagem de objetos cotidianos, sem esquecer a tradição e a lição dos grandes mestres do passado.

Existem diferenças fundamentais entre os falsos e os legítimos artistas, que podem ser avaliadas pela técnica apurada, resultado de longos e exaustivos exercícios, pela força expressiva, sofisticada sem ser hermética e, sobretudo, por esta beleza misteriosa e profunda que só as grandes obras possuem. Beleza esta que nos paralisa e nos transforma, interferindo em maior ou menor grau em nossa cultura. O urinol de Duchamp pode ter sido muito importante para a história da arte, mas não quero crer que valeu mais que o David de Michelângelo.

Pode-se admitir que não existe, necessariamente, relação entre arte e a luta de classes, mas ninguém pode negar que as obras realmente belas são históricas e marcam as épocas. Se são históricas, estão inseridas, de maneira participante, neste magma eternamente em transformação a que chamamos vida. Participando da vida, muitas vezes decisivamente, as obras são também políticas, visto que influenciam no rumo histórico trilhado pelo homem. Finalizando, os argumentos expostos até aqui têm um objetivo claro: é chegado o momento de pararmos de falar em fim da arte. O patrimônio artístico é peça fundamental no desenvolvimento cultural e político de um povo, e em sua projeção para o resto do mundo. É tempo de inagurarmos uma nova crítica, mais poética e mais apaixonada, sem deixar de ser esclarecida e ponderada. Menos acadêmica e técnica, mas respeitando a tradição bibliográfica. Enfim, a arte pode ser misteriosa, mas o prazer estético, que sentimos em sua apreciação, é real e palpável e, através dele, pode-se avaliar com alguma objetividade o valor da obra. Com uma crítica corajosa, moderna e afirmativa, talvez consigamos mudar as políticas públicas, que relegam ao limbo e à pobreza os melhores talentos. E contribuir para que haja uma renovação saudável dos critérios de seleção vigentes em nossos espaços culturais.