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3 de março de 2012

Mijando no Rio Sena (uma análise da crise européia)

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(Esta mulher com pose lânguida e doce lembra-me a Europa, continente melancólico, pessimista, mas sempre idealista e apaixonado pela liberdade. A pintura é de Modigliani. Lembrete: o Óleo do Diabo será atualizado aos sábados.)

A Europa não está em crise. Muito pelo contrário, o Velho Continente vive o seu apogeu político, econômico e social. A mesma coisa vale para os Estados Unidos, mas concentrar-me-ei na Europa neste breve ensaio, para não me estender muito.

Muita gente acreditará que essas afirmações saem da boca de um louco furioso, de um palhaço, de um imbecil.

Mas é o que eu afirmo. E provo.

Crise, quem vive hoje é o continente africano, os países árabes, e muitas regiões ou países da América Latina. Aí encontraremos, em magnitude jurássica, fome, violência, doenças, corrupção e ditadura.

A Europa vive uma crise de obesidade, provocada pelo excesso de bem estar e riqueza.

A vida média de seus cidadãos registrou um salto nos últimos 30 anos, sobrecarregando os sistemas previdenciários, cujos déficits monstruosos representam um dos problemas mais graves nas contas públicas dos estados europeus.Não só as pessoas estão vivendo mais, como a taxa de natalidade caiu, elevando substancialmente o percentual da população economicamente não-ativa.

Naturalmente, alguns países europeus enfrentam problemas financeiros graves. Em Espanha e Grécia, o desemprego atingiu níveis alarmantes.

Não estou dizendo que a situação européia é perfeita. O problema é analisá-la com base num conjunto exíguo de dados, e por um período curto de tempo.

Se olharmos para história da Europa dos últimos sessenta anos, o que veremos? Guerras, miséria, destruição. Para não irmos muito longe, vamos nos limitar aos últimos 20 ou 30 anos.

As grandes e médias cidades européias de hoje tem sistemas de transporte público, saneamento, educação e saúde muito melhores do que possuíam há vinte anos. Há bibliotecas públicas em cada bairro. Portos, aeroportos, estradas, ferrovias, a Europa avançou em todos esses segmentos. Há projetos grandiosos, iniciados há vinte anos, que só foram concluídos há pouco. Penso em Paris, por exemplo. O metrô de Paris, inaugurado no início do século XX, conecta-se aos trens que levam às periferias e aos trens que levam a outras regiões da França e Europa. Todo esse sistema tem sido melhorado década após década, e tenho certeza que é bem superior hoje do que era há quinze anos.

Falam-se em corte dos programas sociais, é verdade, mas são cortes pontuais. A estrutura do bem estar social na Europa se mantém intacta: uma previdência social universalizada. Não é preciso sequer contribuir para se aposentar na Europa. Todos tem direito, o que é o supra-sumo do humanismo, pois parte da premissa de que todo ser humano é, de uma forma ou outra, um trabalhador, mesmo que não integre um sistema formal. Essa universalização da previdência só pode ter sido atingida há poucos anos, visto que começou a ser implementada a partir da década de 60 ou 70.

A "crise" européia, na verdade, reflete duas transformações fundamentais no planeta:

  • Uma reviravolta profunda na divisão internacional do trabalho, com migração de setores inteiros da indústria global para a China. 
  • Uma depressão pós-imperialista muito forte no europeu. Depois da II Guerra, a Europa continuou dominando colonialmente (explicitamente ou não) grande parte do planeta, especialmente a África e partes da Ásia. Esta situação permitiu um conforto financeiro que deu condições para seus governos promoverem um generoso Estado de Bem Estar Social. Aliás, essa é uma verdade dura que os europeus tem dificuldade de enxergar: a vida confortável do europeu foi construída, em grande parte, em detrimento do continente africano, que fornecia matéria-prima e mão-de-obra baratas e comprava produtos europeus. 
Quando a Ásia começa a produzir as mesmas mercadorias e a exportá-las a preço mais competitivo, a Europa faz uma transição difícil, que ainda está em curso: sua economia desloca-se cada vez mais para o setor de alta tecnologia e serviços.  Como alta tecnologia, não me refiro somente a produtos de informática, que aliás também já estão sendo produzidos, em sua maior parte, na China, mas sobretudo a máquinas de alta precisão, medicamentos, produtos químicos.  

É preciso sempre lembrar, todavia, que à medida em que novos pólos industriais se consolidam fora da Europa e EUA, criam-se igualmente gigantescos novos mercados, fortemente interessados numa série de produtos do primeiro mundo. O faturamento da indústria de entretenimento norte-americana na Ásia, hoje, indica que possivelmente em pouco tempo este poderá ser o seu maior mercado. A quantidade de turistas que viaja à Europa também tem crescido exponencialmente.

Ou seja, a economia mundial tende ao equilíbrio, mesmo que aos repuxões. A Europa, na verdade, é uma das regiões que melhor enfrenta essa travessia, visto que possui vastos programas de assistência social, que amortecem os prejuízos humanos inevitáveis. 

Nós, da América Latina, enfrentamos uma violenta transição econômica nos anos 90, sem nenhuma ajuda do Estado. Ao contrário. A Europa baixa os juros na crise, o Brasil aumentava. A crise européia não gera inflação; nós experimentamos processos desumanos de hiperinflação. Os gregos estão desesperados porque o governo determinou uma redução de 20% do salário mínimo e corte no salário do funcionalismo público. Nós vivemos décadas de corrosão do salário mínimo, que chegou ao fundo do poço em meados dos anos 90, quando ficou inferior a 40 dólares. O funcionalismo público brasileiro também experimentou contínua redução de salário (via inflação) durante muito tempo. 

O que a Europa vive hoje são as convulsões de um renascimento como um continente ainda mais unido. A decisão de realizar a união fiscal dos países, por exemplo, aponta para uma unificação muito mais consistente. 

Acho exagero as análises que, referindo-se à Grécia, falam em novo colonialismo. O governo grego é democrático, e suas decisões, difíceis e polêmicas, representaram uma escolha soberana. A Grécia poderia ter optado por sair da zona do euro, mas todas as pesquisas apontavam o desejo do povo grego de continuar participando da união monetária. 

Alguns textos, mais superficiais, falaram em época dourada dos gregos. Isso é bobagem. Só é possível entender a Grécia a partir de sua história moderna, após a II Guerra. A Grécia também viveu séculos de opressão, miséria e falta de esperança. Somente nas últimas décadas o país encontrou uma estabilidade que possibilitou aos gregos gozar de um período de calma prosperidade. Vimos, porém, que o país cometeu erros macroeconômicos terríveis, que deveriam ter sido solucionados há muitos anos.

A Grécia sofreu ainda dois impactos desindustrializantes: com a União Européia, passou a ser mais barato comprar da Alemanha do que das indústrias locais; e a China não fica longe. Não acho, porém, que devemos gastar nossa piedade com a Grécia, visto que nós, brasileiros, temos um percentual de miséria muito maior do que na pátria de Sófocles; e logo ali abaixo tem início o continente africano, cujos países ainda experimentam suplícios que fazem da crise grega uma comichãozinha desagradável. O desemprego é muito alto na Grécia, mas quase ninguém passa fome.

A chamada crise na Europa reflete também o fracasso econômico de suas ex-colônias na África. E a culpa recai mais uma vez sobre a própria Europa, que não investiu de maneira inteligente e sustentável nesses países, preferindo financiar ongs assistencialistas que jamais contribuíram para um desenvolvimento econômico concreto (em termos agrícolas e industriais, por exemplo) do continente negro.

Mas a África está crescendo, o que vai beneficiar a Europa no médio e longo prazo, na medida em que criará novos mercados para os serviços e produtos europeus.

O mais famoso poema de Leopardi, o maior poeta italiano depois de Dante, intitula-se O infinito. É um poema curto e belo como um orgasmo. Fala de uma colina de onde o poeta admira o horizonte, e frui o silêncio profundo que lhe faz pensar no infinito. Em seus ouvidos, porém, lhe chega o som do vento agitando as folhas das árvores; daí ele compara aquele "infinito silenzio a questa voce", e vem-lhe a consciência do eterno, das eras mortas e das presentes e vivas. Termina com uma (raríssima na prosa leopardiana, quase sempre pessimista e melancólica) nota de alegria suave e transcendente: "Assim, nesta imensidão se afoga o meu pensamento: e o naufragar me é doce neste mar".

Minha opinião sobre a crise européia lembra esse poema. Eu a vejo como o ruído do vento agitando as folhas, e o comparo ao silêncio profundo das eras mortas, com seus massacres, seus atos de clamorosa injustiça, suas belas e cruéis revoluções, séculos e séculos de fome, miséria, desesperança, guerras. Meditando nesse quadro assombroso de sofrimento, a maior parte dele já superado, sinto uma doçura imensa quando me sento à beira do Sena, na pontinha da Ile de la Cité, numa tarde tão gélida que não há ninguém por perto.

Acompanhado por um pacote com seis long-necks Leffen, pelas quais paguei menos de sessenta centavos de euro cada, contemplo as ondinhas brilhantes de suas águas. De vez em quando, levanto-me, confiro se nenhum barco está passando, e mijo solene e elegantemente no rio, chorando e rindo ao mesmo tempo ao pensar na ironia fraterna de Voltaire, na escatologia cômica de Rabelais, na emoção quase piegas de Jules Michelet ao analisar a Revolução Francesa - e na inacreditável inocência e simplicidade de espírito com as quais o pobretão Rousseau mudou o mundo.


(Pontinha da Ile de La Cité, o coração histórico de Paris)

(Ile de la Cité)

*

Sempre caro mi fu quest'ermo colle,
e questa siepe, che da tanta parte
dell'ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
spazi di là da quela, e sovrumani
silenzi, e profondissima quiete
io nel pienser mi fingo; ove per poco
il cor non si spaura. E come il vento
odo stormir tra queste plante, io quello
infinito silenzio a questa voce
vo comparando: e mi sovvien l'eterno
e le morte stagioni, e la presente
e viva, e il suon di lei. Cosí tra questa
immensità s'annega il pienser mio:
e il naufragar m'é dolce in questo mare.

Giacomo Leopardi

*

Sempre me foi caro esse monte solitário
e estas árvores, que de vários pontos
escondem o horizonte.
Sentado e contemplando os intermináveis
espaços desde lá até as árvores, e os sobrehumanos
silêncios, e sua profunda calma,
eu mergulho em fantasia; e por pouco
o coração não pára. E ouvindo o vento
bramir entre as plantas, eu
comparo o infinito silêncio a esta voz (do vento)
e me sobrevêm o eterno
e as mortas estações e a presente
e viva, e o som delas. Assim, em meio a esta
imensidade se afunda meu pensamento:
e naufragar é doce neste mar.

(Tradução: Miguel do Rosário)

7 de outubro de 2011

Desindustrialização, onde?

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Continuo monitorando os índices da indústria brasileira. A acusação de que o Brasil estaria se desindustrializando me preocupou muito, porque, se fosse verdade, então seria um problema sério, que me obrigaria inclusive a rever minha simpatia pelo governo do PT.

Outro dia mesmo li no jornal uma notícia de que a produção industrial havia caído em agosto ou setembro. Essas matérias informam muito pouco, e sempre distorcidamente, porque nunca nos proporcionam uma visão mais abrangente. Até os fatores sazonais são omitidos do leitor. Há meses em que a produção industrial declina, todos os anos, outros em que sobe, por isso é importante sempre você ter em mente um prazo mais longo, para enxergar mais claramente.

Então eu voltei ao IBGE, onde já temos dados históricos consolidados, com atualização até agosto de 2011, para a produção industrial brasileira. Preparei uma tabela cujos dados completos podem ser vistos aqui.

Eis que me deparo com um quadro curioso, mas não surpreendente. Ele é muito bem vindo neste momento, em que os tucanos parecem decididos a fazer um trabalho melhor de "comunicação", tentando provar aos brasileiros como o governo FHC foi bom. Pois bem, ofereço-lhes - aos tucanos - uma estatística que vai ajudá-los a esclarecer melhor o povo.

Em janeiro de 1995, o índice mensal da produção industrial brasileira de bens de capital ficou em 111,56. A base deste índice, que é igual a 100, é a média de todo ano 2000. Pois bem, repetindo, em janeiro de 1995, este índice estava em 111,56. Passam-se oito anos de governo, e em dezembro de 2002, o índice despencou para 84,47!

Vocês se lembram da imprensa fazendo estardalhaço com esses números à época? Pois deveria ter feito, porque o setor de bens de capital é sempre o mais importante de um país. É a base da indústria. É o setor que produz as máquinas. Tipo: uma fábrica que produz máquinas que serão usadas na indústria de alimentos, ou tecidos, ou automóveis. Quando um governo quer investir na industrialização, ele começa sempre investindo no setor de bens de capital.

Deve-se olhar portanto sempre a evolução do setor de bens de capital para se ter uma ideia clara da situação da indústria brasileira. Problemas pontuais, como os enfrentados pelos setores têxtil e calçadista, sempre vão acontecer, sobretudo enquanto houver anomalias cambiais no mundo, como é o caso da China. É muito difícil para uma indústria brasileira produzir uma roupa a um custo mais baixo que uma chinesa. No longo prazo, porém, com uma economia internacional regulada com inteligência, e corrigidas as anomalias cambiais, esses desequilíbrios vão se resolvendo. Por enquanto, a solução é fazer o que o governo já começou a fazer, embora talvez com excessivo atraso, que é identificar os setores mais prejudicados pela concorrência desleal estrangeira e adotar políticas específicas de fomento.

Fala-se muito do câmbio forte como um fator que estimula a desindustrialização. No entanto, as economias mais industrializadas do mundo há décadas possuem os câmbios mais fortes: Japão, EUA, Inglaterra, Alemanha.

O papo de desindustrialização, aventado inclusive por alguns sindicalistas do ABC paulista, é muitas vezes uma demanda apenas corporativa. Um lobby, melhor dizendo. E o governo muitas vezes se sensibiliza. Há momentos, todavia, em que é preciso deixar que a livre concorrência faça a sua parte. Não se pode culpar o câmbio ou a política industrial do governo em casos em que há simplesmente a incompetência do proprietário de uma fábrica. Não se trata de defender o capitalismo cruel, mas de respeitar um mínimo e necessário darwinismo econômico. Até porque o governo tem recursos limitados, e seria injusto aplicar verba numa empresa falida por incompetência em vez de construir um hospital.

O que o governo pode e deve fazer é gerir uma boa política social, proporcionando aos trabalhadores prejudicados pelo fechamento de uma fábrica um seguro-desemprego com valor digno e cursos de recapacitação, em todo o período que estiver sem trabalho. O absurdo fundamental de um Estado moderno é permitir que uma família não tenha renda. Isso prejudica o próprio capitalismo, porque essas pessoas também não vão consumir nada. Por isso as principais economias capitalistas do planeta são as que possuem os maiores programas sociais. Os EUA, a fortaleza global do capitalismo, tem um programa de Fome Zero desde o final da segunda guerra, com distribuição de tickets de alimentação para dezenas de milhões de americanos.

Voltando aos índices industriais, repare que estes cresceram de 88,41 em dezembro de 2001, para 209,45 em agosto de 2011. Ou seja, enquanto na gestão tucana o setor de bens de capital sofreu um acentuado declínio, nos quase dez anos de governo petista, o mesmo setor mais que duplicou no Brasil (cresceu 140% para ser preciso)! E pode-se constatar facilmente que avançaria ainda mais não fosse o recuo em 2009, provocado pela profunda crise financeira que abalou o mundo.

Nos outros setores da indústria, temos números parecidos: estagnação durante o governo FHC, e forte expansão na era Lula. E o que é melhor: a indústria continua crescendo este ano, com destaque para o setor de bens de capital, que é, como eu já disse, a menina dos olhos quando se trata de industrialização.






PS: Esse post foi publicado no blog do Nassif, e alguns comentaristas contestaram-no dizendo que esse aumento na produção de bens de capital teria se dado apenas por crescimento de encomendas de empresas como Vale. Bem, a Vale é a maior empresa privada do país, e se ela está encomendando máquinas, isso é ótimo. É óbvio que a industrialização brasileira é liderada por suas principais empresas. A Vale decidiu, após muita pressão do governo, e talvez mais ainda em função do interesse de suas concorrentes em montar siderurgias por aqui, investir na transformação do ferro em aço. Enfim, a pior coisa que pode acontecer é a gente transformar um assunto desse em papo de botequim, como sempre acontece quando as pessoas se limitam a fazer observações tais como: lá em Pindamonganba, fecharam 3 fábricas no ano passado! A atividade industrial hoje é muito dinâmica e concorrida, em vista do alto nível de especialização em que se encontra o capitalismo mundial. É normal, infelizmente, o fechamento de fábricas. O que deve nos preocupar, porém, é o nível geral da indústria no Brasil, e sobretudo, reitero, com o setor de bens de capital, que é a base da indústria.

Então eu retornei outra vez ao IBGE e achei a tabela abaixo (dados completos aqui), com a evolução dos diferentes segmentos do setor de bens de capital nos últimos anos.


Por ela, pode-se ver que um setor de bens de capital que vem sofrendo queda nos últimos anos é o do aparelhos de comunicação (celulares, etc). É lamentável, mas visto que o Brasil sempre produziu quantidades insignificantes destes equipamentos, não é nada que provoque nenhuma mudança drástica em nossa economia ou nas taxas de emprego. O mais grave mesmo é a queda no setor de materiais elétricos, que vinha apresentando um crescimento substancial até o fim de 2008; no longo prazo, porém, este setor também vem crescendo, já que o índice passou de 96 em dezembro de 2002 para 150 em agosto deste ano.

Eu não quero tapar o sol com a peneira. Tenho consciência que deve ter fábrica fechando em algumas partes do Brasil. A concorrência global é feroz. Estou questionando (questionando, não negando) a tese da desindustrialização, que ainda não vi refletida em nenhuma estatística. A pior coisa que pode acontecer com um país é sofrer um processo de desindustrialização, mas isso é diferente de haver mudanças, até mesmo estruturais, na realidade industrial de um país, com declínio de um setor e aumento em outros. Isso faz parte do capitalismo e reflete esse darwinismo econômico que é inevitável e cujos efeitos sociais devem ser tratados atentamente pelo Estado em questão, através de uma política trabalhista voltada a amortecer seus danos.

4 de outubro de 2011

Exportações brasileiras de manufaturados crescem 18%

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estão no ar as informações sobre a balança comercial de setembro.

Eu poderia escolher o viés negativo, e dizer que a participação dos manufaturados no total exportado pelo Brasil em Jan/Set de 2011 caiu, como de fato caiu, de 39,5% para 36%. No entanto, essa informação, dada assim, sem mais explicações, incita à confusão que já vimos, sobre a primarização da economia brasileira. Para identificar se a informação distorce ou não, basta perguntar ao leitor, após ler uma matéria no jornal, se as exportações brasileiras de manufaturados estão crescendo. Se ele disser que não com voz chorosa, triste por ver seu país se desindustrializando, então confirmaremos que foi enganado. É como já disse antes. O país pode até estar se desindustrializando, mas seria muito bom que alguém apresentasse algum dado consistente que mostrasse isso. As exportações brasileiras de manufaturados cresceram 18% em Jan/Set 2011, atingindo 68 bilhões de dólares; e as de semi-manufaturados subiram 35%, rendendo 27 bilhões de dólares.

A queda na participação dos industrializados no total exportado acontece não porque a exportação de manufaturados tenha caído, mas porque as vendas de básicos explodiram.





Clique nas tabelas para ampliar.

Na segunda tabela, vemos que América Latina é o segundo principal mercado consumidor de produtos brasileiros. Em primeiro vem a Ásia, mas esta importa somente ferro e soja.


Observe bem os gráficos acima, e entenda bem o que está acontecendo no Brasil. Você pode não se interessar por economia, mas a economia certamente vai afetar a sua vida. De janeiro a setembro, entraram 190 bilhões de dólares em exportações, valor que constitui um recorde histórico. Diferentemente de outros momentos históricos, porém, nossa exportação é variada em itens e em destinos. Exportamos muitos produtos e para o mundo inteiro, o que hoje em dia é um grande trunfo nosso. Fôssemos mais dependentes dos EUA ou da União Européia, estaríamos lascados.

24 de julho de 2011

Exportações brasileiras até junho de 2011

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Publico aqui uma estatística importante, porque muito pouco conhecida. Segundo dados colhidos no sistema Alice, banco de dados online do Ministério do Desenvolvimento, o Brasil exportou um total de 231 bilhões de dólares nos últimos 12 meses, até junho último.

Um dos principais blocos econômicos comprador de produtos brasileiros foi a América Latina e Caribe, que importou 53,2 bilhões de dólares em 2010/11. Este valor foi maior do que o total exportado para União Européia ($49 bilhões), China ($ 39 bilhões) e EUA ($22 bi).

O mais impressionante, no entanto, não é isso, e sim o valor médio que nossos hermanos pagaram por nossos produtos: 1.248 dólares a tonelada. Contra 468 dólares a tonelada pagos pela Europa e 202 dólares pela China.

A razão disso é que a maior parte de nossas exportações de produtos industrializados, que tem valor agregado mais alto, destinam-se à América Latina.

Clique nas tabelas para vê-las sem cortes.


A tabela abaixo mostra que tipos de produtos são exportados para a América Latina. Repare que, entre os 10 mais importantes, todos (com exceção do petróleo) são manufaturados, como autopeças, maquinários, aparelhos elétricos, aço, plásticos e papel. Também exportamos aviões, produtos químicos e instrumentos óticos.


A conclusão é que a América Latina e Caribe tornou-se o bloco estratégico para escoar e ampliar a nossa exportação de produtos industrializados.

20 de julho de 2011

Sobre a desindustrialização

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Um leitor-amigo entrou em contato comigo para acusar o projeto de governo Lula/Dilma como sendo uma regressão à economia primário-exportadora. Eu respondi que iria buscar dados para respondê-lo e fazer uma análise baseada não em informações tendenciosas colhidas fragmentariamente na grande mídia, mas em fatos concretos.

Adiantei-lhe, porém, que a acusação de economia "primário-exportadora" costuma se fazer a países cuja economia ancoram-se na exportação de produtos primários. Embora a exportação deste tipo de produto seja muito importante para o Brasil, a nossa economia tem crescido baseada principalmente no consumo doméstico.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem dados completos sobre a produção industrial no país. Preparei uma tabela para a gente analisar, com dados de fevereiro de 2002 a fevereiro de 2011. Clique nela para ampliar:


A tabela acima é apenas um resumo com os 20 subsetores industriais que mais cresceram. A tabela com todos os subsetores industriais do país, também devidamente editada, encontra-se neste link.

O IBGE divide a produção industrial brasileira em 73 subsetores. Deste total, apenas 13 apresentaram queda de 2002 até hoje, e mesmo assim, quedas suaves. Destes 13 subsetores, apenas um é realmente relevante à produção industrial brasileira: o setor de calçados, cuja produção caiu 20% de 2002 até hoje, certamente em função da concorrência dos produtos chineses.

De resto, o IBGE mostra um crescimento firme de quase todos os setores industriais importantes, com destaque para a indústria ligada ao setor de transportes: aviões, caminhões, ônibus, carros, motos, tratores e  navios.  Também registrou-se um crescimento relevante na produção de eletrodomésticos.

Tivemos um crescimento apenas medíocre de um subsetor fundamental, o de material eletrônico e aparelhos de comunicação: apenas 17% de 2002 até 2011. Entretanto, sabemos que estes produtos hoje são produzidos quase que exclusivamente na Ásia, que nós jamais os fabricamos em escala significativa.

Note que houve um crescimento de 60% num subsetor extremamente importante, porque serve de base para crescimentos maiores no futuro: o de máquinas e equipamentos para fins industriais e comerciais.

Até o momento, portanto, ainda não vi nenhuma "desindustrialização", ou regressão do Brasil a uma economia primário-exportadora.

Talvez eu esteja cometendo algum erro de interpretação. Peço aos que defendem a tese contrária, portanto, que me tragam informações e dados mais consistentes do que tem feito até o momento, porque senão serei obrigado a acreditar em... mim mesmo.

Por outro lado, não se pode negar que o declínio do dólar atrapalha fortemente o desejo da indústria brasileira de aumentar suas vendas externas. Mas o problema cambial é comum ao mundo inteiro, com exceção da China. Todos os países latino-americanos registraram forte valorização cambial. Nos EUA, o dólar, mesmo tendo caído, ainda é muito mais forte que a moeda chinesa e uma vez e meia o real: também é um problema lá. O Euro, uma das moedas mais fortes do mundo hoje, igualmente provoca estragos na indústria européia.

Ainda não ouvi ninguém trazer uma solução concreta que não seja a loucura de fixar novamente o câmbio.

O comércio exterior

Na verdade, há uma confusão provocada pela forte alta das exportações brasileiras de produtos primários. A exportação de industrializados também cresceu de maneira bastante firme nos últimos 10 anos, embora não no mesmo ritmo explosivo das vendas externas de matérias-primas. Resultado: mesmo tendo crescido, as exportações de industrializados perderam participação percentual na receita total exportada. Olhando sob uma perspectiva mais longa, a participação de produtos básicos na exportação brasileira, que chegava a quase 90% na década de 60, vem caindo substancialmente nos últimos cinquenta anos, e o aumento verificado a partir o início dos anos 2000 não reflete, necessariamente, o fim dessa tendência, mas possivelmente apenas um ajuste à um aumento muito forte da demanda mundial por essas mercadorias, o que se refletiu num mega-incremento da quantidade exportada das principais commodities nacionais, combinado a uma acentuada alta nos preços das mesmas. O importante, reitero, é verificar que tem havido, nos últimos dez anos, um crescimento muito grande, em termos absolutos, concretos, das exportações de manufaturados.



Há várias maneiras de se averigar uma possível deterioração da qualidade das exportações. Uma delas são os "termos de troca", que é a relação entre o valor das importações e exportações de um país durante um ano. Nos últimos 12 meses, o índice de termo de troca registrou alta.


Nos últimos anos, aliás, os termos de troca tem apresentado um resultado bem positivo. Ou seja, o valor das exportações tem aumentado a uma proporção maior do que o aumento no valor dos produtos importados.  Se alguém quer denunciar um processo de "primarização" da economia, portanto, não vai conseguir fazê-lo através de uma análise dos termos de troca, que indicam, ao contrário, uma sofisticação de nossa pauta exportadora.



Mas os termos de troca também refletem os preços maiores das commodities, então não podemos nos restringir a isso para avaliar a qualidade da exportação.

Os números do nosso comércio exterior mostram que houve, entretanto, um baque nas vendas de manufaturados, provocado pela forte crise financeira que se espalhou por todo mundo. Até então, as exportações de manufaturados vinham crescendo de maneira consistente. Em 2008, bateram um recorde histórico de 92,6 bilhões de dólare, caindo porém para 67,34 bilhões em 2009. Em 2010, assistem a uma vigorosa recuperação, alcançando 79,5 bilhões de dólares. Nos últimos 12 meses até maio de 2011, já subiram para 84,3 bilhões de dólares, alta de 16% sobre o período anterior.



Os números nos permitem dizer, portanto, que as exportações brasileiras de manufaturados se recuperam da crise financeira internacional, que ainda se faz presente sobretudo no mundo desenvolvido, mas não é justo afirmar que a economia brasileira está num processo de "primarização".


A produção industrial brasileira (não confundir com exportação) cresce, de qualquer forma, com exceção das fábricas de calçados, a um ritmo mais ou menos independente das oscilações do mercado externo. Seu principal destino não é a exportação, mas consumo pujante das famílias brasileiras.

Repare que a indústria de bens de capital, que produz os máquinarios industriais e, por isso, é considerada um termômetro do setor, cresceu  20,4% em 2010, ou seja, bem acima do crescimento médio da economia brasileira (o PIB cresceu 7% no ano passado). Por esse aspecto, portanto, também não se vê nada que indique um processo de "desindustrialização".

 Concluindo, entendo que a indústria brasileira enfrenta enormes desafios. A concorrência asiática tem sido predadora, terrível, às vezes covarde e praticando um verdadeiro dumping cambial. A situação da indústria nacional, por isso mesmo, não é nenhuma maravilha. A combinação de uma carga tributária alta, falta de mão-de-obra especializada, infra-estrutura precária, câmbio desfavorável, burocracia estatal excessiva, juros absurdamente altos, além da concorrência chinesa, não perfazem um cenário fácil para nenhum empresário. Para culminar, o mundo viveu uma de suas piores crises econômicas a partir de 2008, com reflexos até hoje, o que causou forte recuo no comércio global de produtos industrializados. Mesmo com todos esses problemas, porém, os números indicam que a indústria nacional tem se modernizado e crescido. Não cresce a um ritmo chinês, mas não se pode exigir do setor industrial aumentos de produção a uma velocidade só possível na realidade do agronegócio ou do extrativismo. Uma coisa é comprar um pedaço de terra, plantar e colher a soja no ano seguinte. Ou cavar um buraco e extrair minério em questão de meses. A instalação de uma nova indústria requer às vezes mais de dez anos, como é o caso das gigantes refinarias que o Brasil vem construindo. Havendo uma enorme massa cujo poder aquisitivo vem crescendo rapidamente, abundância de crédito e perspectivas de estabilidade econômica no longo prazo, a consolidação da indústria nacional é só uma questão de tempo.

*

Por fim, encontrei uma outra tabela (abaixo, clique nela para ampliar), mais simplificada, mostrando o crescimento ou queda dos diversos setores da indústria nos últimos três anos. Note-se queda na indústria têxtil e de calçados, por causa provavelmente da concorrência chinesa. Trata-se de uma indústria extremamente importante, em tamanho e geração de emprego, e que deveria merecer alguma atenção do governo. Mas competir com a China é cruel. E desde que não podemos fechar nossas fronteiras para a China, pois isso significaria impor um protecionismo que não é o que defendemos na OMC, a única solução é investir pesado no aumento da produtividade das indústrias nacionais. Seja como for, a indústria têxtil hoje em dia não é mais vanguarda.

Repare que 2009 foi um ano ruim para todos os setores, em função da crise financeira internacional. Mas em 2010 assistimos uma forte recuperação. O segmento de máquinas e equipamentos cresceu 24% em 2010. O segmento de máquinas para escritório e equipamentos para informática, depois de cair em 2008 e 2009, apresentou crescimento de 13% em 2010 e 15% em janeiro de 2011. Não sei o que isso significa em termos de relevância em relação ao PIB, só sei que é bom. Crescer é bom de qualquer jeito. O segmento de "equipamentos médicos/hospitalares, ópticos e outros" cresceu 21% em 2010. Enfim, os setores mais avançados da indústria apresentaram uma recuperação vigorosa no ano passado. Até o momento, portanto, a tese da "desindustrialização" não está colando comigo. Quer dizer, sei que há setores sofrendo, particularmente aqueles ligados à exportação, por causa do câmbio hiper-valorizado. Eu também, no período 2003 a 2008, enquanto o Brasil crescia extraordinariamente, passei por um processo de rápido empobrecimento. Isso acontece. Uns sobem outros descem. Para analisar a economia de um país, no entanto, é preciso considerar o quadro inteiro. No geral, a indústria brasileira continua crescendo. Isso não significa que as coisas estão maravilhosas. Se formos procurar problemas, vamos encontrar, com certeza, e se formos averiguar a fundo veremos que setores sofreram por causa da incúria e negligência governamental e quais perderam por incompetência deles mesmos.


Discutindo o trem-bala

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Como vocês já devem ter percebido, o trem-bala se tornou a nova jabulani na guerra ideológica entre direita e esquerda. A direita, como era de se esperar, não quer o trem-bala. Diz que não há dinheiro, que não é viável, que o projeto orçava antes em 23 bilhões e agora está em mais de 30 bilhões. Que é um delírio faraônico lulodilimista. Pensando bem, não é uma guerra. É mais um cerco, com o governo isolado na fortaleza. A militância de esquerda assiste a tudo em cima do muro, meio perplexa. A ultra-esquerda, naturalmente, aliou-se à direita: ambos vociferam contra o projeto do governo de criar o primeiro trajeto de trem de alta velocidade no país. Outro dia um militonto me disse que era um projeto para fazer trem para os "ricos"...

O Elio Gaspari, por exemplo, encampou uma campanha bastante agressiva contra o trem-bala.

O interessante é que ninguém, nem a grande mídia, nem o Gaspari, nem os militontos, parecem preocupados em pesquisar mais a fundo antes de se posicionarem. Ter uma opinião sobre o trem-bala, assim como em relação a muitos assuntos, semelha a um gosto estético: acham bonito ou feio. O que, a meu ver, só piora a visão que eu tenho dessas pessoas, porque se dependesse apenas de uma questão estética, eu acho que é uma evidência gritante que se trata de um projeto interessante. Que país não gostaria de ver suas duas maiores metrópoles ligadas por trens de alta velocidade?

Resolvi pesquisar o tema. Comecei pelo google, e digitei simplesmente "train", ou trem, em inglês, e acabei na página da wikipédia sobre trens de alta velocidade. Em primeiro lugar, estudei o que já existe no mundo, e confirmei algumas coisas que já sabia e descobri outras:

  • A Europa é inteiramente cortada por trens de alta velocidade.
  • As grandes metrópoles asiáticas, sobretudo na China e Japão, já possuem trens de alta velocidade; estão construindo mais e mais. 
  • Os Estados Unidos, que cometeram o terrível erro de deixarem de lado o transporte ferroviário nas últimas décadas, tem um projeto de investirem em grandes corredores transnacionais de trens de alta velocidade. É um projeto muito caro ao governo Obama.
Dêem uma olhada no projeto de Obama para os corredores de  trens de alta velocidade nos EUA:


Aí fui estudar o projeto do trem-bala brasileiro, tão cruelmente bombardeado pela maioria da imprensa. Aliás, porque será que não estou surpreso com isso? Neste post, reproduzo algumas tabelas que peguei no relatório que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) preparou. Vamos olhar o item preço, para responder aos que acusaram o trem-bala de ser um luxo para ricos.

O trem-bala terá dois preços: classe executiva e classe econômica. O preço de uma viagem de Rio a São Paulo na classe econômica, em horário de pico, custará R$ 200, e fora do pico, R$ 150. Uma passagem aérea, em horário de pico e fora de pico, custa em média R$ 400 e R$ 180. O tempo total de uma viagem de trem-bala do Rio a São Paulo, incluindo o tempo de embarque, é de 1 hora de 42 minutos. De avião, o tempo total é de 1 hora e 50 minutos. O trem-bala, portanto, chega para popularizar e democratizar o transporte público nas duas áreas metropolitanas mais povoadas do país. 


Tenho notado que a preocupação dos críticos, à esquerda ou direita, tem focado nos custos do trem-bala. Bem, para isso, temos de analisar as receitas. Segundo o estudo da ANTT, a receita do trem-bala deverá vir num crescente de 2014 a 2044. Neste último ano, a estimativa é de uma receita anual de R$ 8 bilhões (tabela 8-10).



O custo estimado para a construção do trem-bala está em torno de R$ 30 bilhões. Mas eu prefiro fazer uma estimativa bem conservadora e apostar que o custo final poderá chegar perto de R$ 50 bilhões.

Considerando as receitas estimadas, o trem-bala deverá ser pago em cerca de 30 anos. Isso é muito para um empreendimento que pode durar até séculos ou mesmo milhares de anos? Não tem gente que ganha salário mínimo comprando casa com prazo de 30 até 40 anos? Por que não podemos fazer um trem-bala que poderá transportar dezenas de milhões de pessoas? Em 2044, estima-se que o TAV movimentará 99 milhões de passageiros/ano!

Em outros termos, trata-se de um projeto autossustentável. E olha que esses cálculos não embutem o mais importante: a contribuição que dará ao aumento da produtividade no eixo Rio-São Paulo, a economia de tempo e dinheiro das pessoas, a redução no uso de combustíveis poluentes. Sem falar na colossal geração de empregos acarretada no processo de construção, e depois na manutenção e operacionalidade. Mesmo que o projeto fosse totalmente inviável economicamente, eu acho que valeria a apenas pela transferência de tecnologia num dos segmentos mais estratégicos para um país: o transporte público de massa.

Deve-se considerar, ainda, os ganhos proporcionados à indústria do turismo e o estímulo ao comércio entre Rio e São Paulo. O custo do frete vai cair muito.

Em relação à oposição da ultra-esquerda ao trem-bala, prefiro abster-me de comentários para não ser indelicado. Poderia lembrar que a China comunista está fazendo trem-balas a torto e a direito, com planos de conectar todo o grande estado chinês com ferrovias de alta velocidade; mas não digo porque acho que não gostam da China; pelo que sei, não gostam de nada. Japão e Coréia do Sul também possuem trens-balas ligando suas principais cidades.

Em relação à direita, trata-se mais uma vez do complexo de vira-lata, que faz nossa direita beber uma sopa esquizofrênica de ideias anticapitalistas e a-históricas. Têm um preconceito doentio contra qualquer investimento do Estado na economia, ignorando que os países ricos apenas alcançaram o estágio onde se encontram agora porque seus governos não hesitaram em investir em infra-estrutura, incluindo aí trens. E parecem cegos para as oportunidades de desenvolvimento econômico e, portanto, de lucro para eles mesmos. Tornaram-se uma raça de sadomasoquistas que se rejubilam na miséria e no subdesenvolvimento.

Ao longo de sua história, os Estados Unidos, através do governo, investiram em trens, rodovias, portos e aeroportos. Nas últimas décadas, porém, deixaram as ferrovias de lado, em função do pesado lobby da indústria do petróleo. Um erro terrível pelo qual pagam muito caro hoje. Como já disse, um dos projetos de Obama, já em andamento, é justamente voltar a investir em ferrovias, desta vez em trens de alta velocidade, com o objetivo de libertar o país de energias fósseis importadas e promover o desenvolvimento.

Concluindo: no atual estágio do desenvolvimento do transporte público no mundo, possuir um trem de alta velocidade conectando Rio e São Paulo, as duas maiores cidades do país, é um imperativo histórico!

PS: Um leitor amigo, Sergio Grigoletto, lembrou-me de acrescentar dados sobre o fluxo de passageiros no transporte aéreo. Abaixo, pode-se ver como o TAV (trem de alta velocidade) irá desafogar a ponte aérea e rodoviária, hoje sobrecarregada, entre Rio e São Paulo. Repare que a estimativa da ANTT é que o TAV se transforme, já em 2014, no principal elo de ligação entre as duas metrópoles, absorvendo 53% da demanda de passageiros. Eu acrescentaria que, para além de 2014, a tendência é de aumento do fluxo de pessoas, em virtude do aumento populacional e do crescimento econômico, de maneira que o transporte aéreo entre as duas cidades atingirá em breve - sem o TAV - uma situação de total congestionamento.


Mapa dos trens na Europa:


17 de julho de 2011

BNDES sob ataque

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E lá vai o BNDES pro pelourinho novamente. Repito: acho ótimo. A última coisa que eu faria é sentir pena de uma instituição que movimenta centenas de bilhões de reais. Que apanhe como gente grande, talvez assim aprenda a se defender. Neste domingo, Globo e Folha publicaram artigos bastante críticos à instituição. Nosso amigo Paulo Henrique Amorim, do Conversa Afiada, repercutiu alegremente as duas matérias, o que também considero muito saudável.

Entretanto, não vou partilhar tão facilmente da opinião de um ultra neo-liberal como o Claudio Hadadd, o economista que a Folha entrevistou. E tenho ressalvas importantes à reportagem do Globo. Ambas são positivas por suscitar o debate em torno daquele que, como já disse em outro post, é um dos pilares mais importantes da economia brasileira, com peso relevante em toda América Latina. O BNDES é um dos maiores (talvez até o maior) bancos públicos de investimento do ocidente. A sua própria existência é contrária aos princípios neoliberais, a menos que se restringisse, como sugeriu Haddad, a financiar projetos de infra-estrutura (o que, na verdade, ele já faz, e muito bem).

Ambas as matérias, todavia, pecam pela omissão de dois números fundamentais para contextualizar a participação do BNDES na economia brasileira. O primeiro é o crescimento do número de empresas beneficiadas, sobretudo micro e pequenas, pelos financiamentos do BNDES. Este número trinca o raciocínio segundo o qual ele beneficiaria apenas o andar de cima. Ironia suprema: este aumento se dá sobretudo a partir da gestão de Luciano Coutinho, o mesmo que agora é acusado de privilegiar os tubarões.

Não vou sequer mencionar FHC porque é covardia: naqueles tempos, o pequeno não existia. Nem o Carlos Lessa, hoje verdugo da gestão de Coutinho, se notabilizou neste ponto, tão fundamental. Presidente do banco em 2003 e 2004, Lessa conseguiu elevar o número de pequenos contemplados em 2003 para 27 mil empresas (em 2002, foram 18,9 mil); no ano seguinte, porém, viu esse número cair para 20 mil.

A coisa só começa a mudar mesmo com a entrada de Coutinho, em 2007. A partir daquele ano tem início uma grande transformação, com forte aumento, ano a ano, das concessões de crédito. Em 2010, já eram 417 mil micro e pequenas empresas contempladas.



O segundo número que Globo e Folha omitem é a evolução do lucro do BNDES nos últimos anos. A matéria do Globo, neste sentido, é realmente manipuladora, pois ao invés de trazer dados consolidados, inventa um prejuízo por parte do BNDESPar com base no valor das ações em poder do banco ao final da semana passada. Muito conveniente, porque a desvalorização momentânea das ações da Petrobrás mostraria um resultado negativo. Mas isso pode mudar de um dia para outro. O importante, numa matéria como esta, era informar ao leitor acerca dos valores consolidados. O BNDES vem batendo recordes de lucro, e as operações do BNDESPar tem respondido por cerca de metade desses valores. Ou seja, as ações caem e sobem ao longo do ano, mas o importante é analisar os resultados concretos e não retratos incompletos (possivelmente tendenciosos e equivocados) de momento. Seria honesto, para dizer o mínimo, que o Globo, numa matéria como essa, ao menos informasse seus leitores sobre isso, para que estes não pensassem que a instituição está dando prejuízo ao contribuinte, o que não é verdade.


É bastante irônico que os neoliberais de repente tenham se esquecido do fator "lucro". Está certo que o objetivo central do BNDES não é ter lucro, mas o fato de tê-lo não é ruim, evidentemente. Desde que o banco mostre que tem aumentado os repasses a micro e pequenas empresas e esteja financiando mais projetos de infra-estrutura, então é ótimo que haja lucro, até para que o banco possa se dar ao luxo de financiar projetos de cunho mais social que dão menos lucro. Como o BNDES é público, o lucro vem para o nosso bolso, seja reforçando o caixa do Tesouro, seja financiando projetos de cultura (o que se reflete na educação), o que o banco vem fazendo a uma escala impensável antes da era Coutinho.

Reitero pela enésima vez que é importante que a sociedade fique atenta às ações do BNDES, e mantenha um olhar crítico. Sob Coutinho, o banco tornou-se mais ousado e mais presente na economia nacional. Ganhando mais visibilidade, é natural que seja mais criticado. As ações do BNDESPar refletem, a meu ver, uma política industrial mais intervencionista por parte do governo, e isso necessariamente contraria (e beneficia) muitos interesses poderosos. Por trás da blindagem econômica que protegeu o Brasil da terrível crise financeira que atingiu o mundo em 2008 e 2009, estava o crédito do BNDES, que ajudou empresas nacionais a enfrentarem seus momentos mais difíceis. Não esqueçamos que o BNDES não dá dinheiro de graça para ninguém. Ele empresta a juro mais baixo que a taxa Selic, mas ainda assim com juros, e a empresa tem de pagar em dia. Muitos países não teriam passado pelo que passaram se tivessem um banco como esse. E acho melhor emprestar dinheiro para empresas que geram emprego do que dar trilhões a juro zero para salvar instituições financeiras incompetentes, como fizeram EUA e Europa recentemente, e o governo FHC com seu Proer (que corresponderia hoje, em valores atualizados, e cerca de R$ 50 bilhões).

Naturalmente, se o BNDES dá crédito, tem gente que lucra muito, outros que lucram menos. Consta que as empresas de mídia, que sempre tiveram acesso privilegiado ao caixa da instituição, não tiveram tantas facilidades como gostariam nos últimos anos.

Contemplemos, portanto, o quadro inteiro, levando também em consideração os números que eu lhes trouxe. Quando o BNDES apenas financiava os barões da mídia e demais amigos de Antonio Carlos Magalhães, nunca houve matérias na grande imprensa criticando a atuação do banco. Hoje ele financia 610 mil empresas e pessoas físicas no país e virou um de seus alvos preferidos.

Dívida pública não é bicho-papão

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Duas matérias sobre os gastos do governo com a dívida pública publicadas na Carta Maior revelam uma abordagem populista, superficial e despolitizante. Assim como eu critico textos da grande mídia, permitam-me também dar meus pitacos sobre o que dizem os meios alternativos. Gosto muito da Carta Maior, mas nessa questão da dívida, eles pisaram na bola.

Vamos às matérias da Carta Maior.

A primeira é esta:


Ler a matéria na íntegra.

O absurdo começa pelo título. O repórter calcula o percentual, aprovado pelo Congresso, que o governo federal deverá destinar ao pagamento da dívida pública em 2012, e que sequer passou pelo crivo da presidente (que irá fazer, aliás, um recorde de vetos), divide pela população brasileira, e daí tasca essa manchete terrorista. O que pensará uma senhora aposentada que ganha salário mínimo? Que haverá uma derrama no ano que vem? Que um agente do governo vai bater em sua porta pedindo quinhentão? Com perdão do termo, isso é sensacionalismo do mais barato! A carga tributária vai aumentar em 2012? Não. Então ninguém vai pagar R$ 510. Quer dizer, o Eike vai pagar R$ 400 milhões em impostos, outros um pouco menos, mas nada diferente do que aconteceu este ano.

Além do mais, tem um erro básico no título. O governo não vem pagando somente juros da dívida, mas a própria dívida. Desde 2003, que a orientação do governo federal tem sido a de reduzir a dívida pública. Tanto é que pagou a dívida externa. A dívida pública líquida total vem declinando substancialmente nos últimos anos, conforme se pode ver neste gráfico:


Não fosse a grave crise financeira internacional que atingiu o mundo em 2008, estaríamos agora com uma dívida líquida abaixo de 37% do PIB. De qualquer forma, após alguns meses em que o governo foi obrigado a aumentar o endividamento, este voltou a cair e hoje (final de maio) está em 39,77% do PIB.  Ao final de 2002, a dívida pública líquida correspondia a 62,85% do PIB!

Todos os governos do mundo possuem pesadas dívidas públicas, que devem pagar em dia para manter a credibilidade junto ao mercado financeiro. A Venezuela de Hugo Chávez ou a França de Sarkozy pagam em dia a seus credores. Quando um país enfrenta uma crise fiscal grave e não pode mais pagar os juros de sua dívida, os resultados são catastróficos para a sua economia, porque ele será obrigado a pagar juros muito mais altos quando tiver (e sempre terá) que captar recursos no exterior.

A determinação de Lula e seu governo sempre foi pagar os juros da dívida pública, inclusive mais que o governo anterior, visto que não apenas pagou os juros, mas reduziu o próprio montante da dívida. Isso não impediu o governo de ampliar os gastos sociais. Uma coisa não exclui a outra, se houver vontade política. Na própria Carta Maior, reportagem do mesmo jornalista lembra que os gastos sociais por habitante dobraram nos últimos 15 anos. Dilma não vai mudar uma fórmula que deu certo.

Quanto aos juros da dívida propriamente ditos, quanto mais alta for a taxa Selic, maiores serão os recursos necessários para pagá-los. Contudo, o percentual da dívida atrelado à taxa Selic também caiu muito. O perfil da dívida pública melhorou. No início de 2004, a maior parte da dívida (73%) era atrelada a fatores instáveis, como câmbio e taxa selic. Hoje a parte principal da dívida são títulos com juros pré-fixados, com taxas abaixo da taxa selic.




A outra matéria da Carta Maior que merece críticas pela superficialidade é esta:


Ler na íntegra.

Dessa vez o título está certo, mas é enganoso mesmo assim, porque ele soma tudo que o Brasil pagou desde 1998! Ora, se eu somar tudo que eu gastei em cerveja desde 1998, acho que vai dar um resultado parecido! De resto, a matéria é repleta de comparações disparatadas, que seriam interessantes, se não conduzissem a uma abordagem reacionária, anti-estatista, e por isso despolitizante e contrária à linha editorial do próprio site. Esse é o ponto principal onde eu queria chegar: achando que faz uma crítica à esquerda, a Carta Maior na verdade estimula o conservadorismo anti-Estado.

Reitero que respeito e admiro profundamente o trabalho da agência Carta Maior. Em relação ao tratamento que o site dá a questão da dívida pública, no entanto, não é de hoje que noto um viés populista, tentando impressionar o leitor leigo com os valores colossais que o governo gasta.

É preciso entender, porém, que à medida em que o Brasil cresce, esses valores serão cada vez maiores, assim como será a arrecadação fiscal em termos absolutos. O importante é reduzir a relação da dívida com o PIB ao menor percentual possível. Ou seja, é saudável ter uma dívida relativa menor, e a política econômica do governo federal tem caminhado neste sentido, com o que a arrecadação fiscal poderá ser mais amplamente usada para destinos mais nobres, como saúde e educação.

Fontes usadas para elaboração desta matéria:
Relatório da Divida Pública Federal - Mai/11
Indicadores Econômicos Consolidados do Banco Central
Ipea Data - Índices Macroeconômicos

13 de julho de 2011

Pão de Açúcar desiste de fusão. Ótimo.

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Se a fusão gorou, ótimo. Eu vinha reiterando minha preocupação com um varejo na mão de poucos. Em post recente, pedia a intervenção do Cade e achava que não era saudável a participação do BNDES no negócio. Depois eu desenvolvi o seguinte raciocínio: se a fusão for inevitável, e for um bom negócio para o BNDES, podemos transformar isso numa oportunidade para abrir os mercados externos aos produtos brasileiros industrializados. Fiz questão de frisar isso: que o BNDES deveria explicar e mostrar compromissos assinados, de que sua participação garantiria inclusão maior de produtos brasileiros nas prateleiras do que viria a ser a primeira ou segunda rede varejista do mundo. A primeira hoje é o Walmart, que prioriza produtos norte-americanos e veta qualquer produto brasileiro. Walmart e Carrefour tem presença no mundo inteiro. Ambos vem se expandindo rapidamente na Ásia. Como um dos problemas mais graves da indústria nacional tem sido justamente o bloqueio imposto pelas grandes redes de varejo aos artigos brasileiros, achei que seria interessante o BNDES ter participação acionária no Carrefour. Mas só se a fusão fosse inevitável... E, claro, se não houvesse briga entre os sócios, como houve, o que provavelmente foi a razão principal para o BNDES pular fora do negócio (além da campanha "pública" contra a operação).

Eu também li o artigo do Carlos Lessa, mas acho que ele foi usado mais para virar manchete bombástica em blogs do que para dar subsídio real à questão. Ele não aprofunda nenhum ponto sobre o mercado varejista internacional. Ao contrário, Lessa elogia operações similares do BNDESPar, o braço do BNDES que capta dinheiro no mercado para comprar participação em grandes empresas nacionais. Elogia o banco por investir dinheiro em firmas que produzem e exportam matérias-primas. O próprio Lessa, quando presidente do BNDES, fez o banco adquirir US$ 1,5 bi em ações da Vale (o que valeu muitos elogios meus; ainda acho que ele mandou bem. O valor hoje corresponderia a quase US$ 2 bi, quase o mesmo que o BNDESPar queria investir no Pão de Açúcar). Mas não acho que a instituição deva investir apenas em companhias privadas que operam com produtos primários. Se o BNDES está querendo diversificar seus investimentos para um leque maior de empresas, então seria interessante que uma dessas fosse uma grande rede de varejo, pelas razões que já levantei, a saber, criar uma brecha na muralha que o mundo desenvolvido (sobretudo Europa) malandramente construiu para proteger seus preciosos mercados.

Mas se o Pão de Açúcar não quer se fundir (quer dizer, se não conseguiu), melhor assim. A concentração não é saudável. O Brasil, todavia, precisa encontrar alternativas para escoar melhor seus produtos industrializados. É ingenuidade achar que as coisas estão boas para nós neste terreno. O Brasil tem conseguido, ao menos, exportar industrializados para a América Latina. Não basta; é preciso entrar nos EUA, na Europa e, sobretudo, na Ásia.

Além do mais, eu acho que uma das maneiras do Estado reduzir a carga tributária sem reduzir a arrecadação é justamente tornando-se sócio do setor privado nacional, de maneira a financiar os gastos públicos, que deverão necessariamente crescer à medida em que os brasileiros exigirem melhores serviços de saúde, educação, e uma melhor infra-estrutura na área dos transportes, saneamento, comunicação, etc.

Esta tem sido a receita do crescimento econômico asiático. O Estado tem participação em tudo. Isso não implica em dar dinheiro público aos empresários, mas em tirar dinheiro dos empresários para dar ao público; em troca, os acionistas ganham um sócio poderoso, que pode ajudá-los a ganhar mercados no exterior. Na Cingapura, a carga tributária é baixíssima porque o Estado paga suas contas através do faturamento que aufere com a participação acionária nas empresas do país.

Estas são apenas conjecturas de um blogueiro cada vez mais presunçoso, e que agora se arvora entendido em grandes estratégias de desenvolvimento econômico. Eu achava que o BNDES tinha a ver com estratégias um pouco mais sofisticadas do que emprestar dinheiro para a Petrobrás - que tem milhares de acionistas na bolsa de Nova York - furar poço...

PS: Já corre a todo vapor a notícia de que a Walmart quer comprar o Carrefour. Será uma sinistra concentração do mercado varejista, e o Brasil, que teria presença numa possível fusão entre Pão de Açúcar e  a rede francesa, agora ficará  a ver navios. Navios com bandeirinha dos EUA.

7 de julho de 2011

Ainda sobre a fusão do Pão de Açúcar e Carrefour

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Finalmente, dados. Um comentarista mandou-me link para um relatório do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-econômicos) que traz números atualizados até 2009 sobre a realidade do varejo no Brasil, com detalhes sobre o estado de São Paulo e capital. Com isso podemos tatear um pouco melhor nessa questão nebulosa que é a fusão do Pão de Açúcar com o Carrefour.

Mantenho minha opinião, de que a concentração do varejo é negativa para a economia nacional; em relação ao papel do BNDES, imagino que pode ser positivo para a rentabilidade da instituição e, portanto, para o contribuinte, mas somente o lucro não justificaria uma operação deste tipo: deveria haver, como houve no caso do apoio do banco à criação de uma gigante brasileira no setor de frigoríficos, um esclarecimento melhor sobre as vantagens para o país.

A tabela abaixo mostra o balanço do emprego no setor supermercadista no município de São Paulo, por tamanho do estabelecimento:


Repare que os pequenos foram responsáveis pela grande maioria em termos de geração de emprego. Do saldo total de 11,89 mil empregos gerados em 2009, oito mil vieram de estabelecimentos com até 4 empregados. Disso podemos inferir que o pequeno varejo efetivamente cresceu em 2009, e provavelmente também em 2010. Isso reforça nossa teoria de que, ao mesmo tempo em que há um processo contínuo de concentração no segmento dos super-grandes, os pequenos varejos florescem em todo país, impulsionados pela melhora do poder aquisitivo das classes mais pobres. Isso não é uma contradição. As grandes redes instalam-se, prioritariamente, nas áreas urbanas mais desenvolvidas. As regiões mais pobres, justamente aquelas onde se verificam os maiores índices de crescimento econômico (até porque a base a partir da qual se dá esse crescimento é extremamente baixa), são atendidas geralmente por pequenas mercearias ou supermercados de pequeno ou médio porte. Nas áreas mais ricas, por outro lado, costuma-se encontrar um número grande de mercados, concorrendo ferozmente entre si, num processo que, no capitalismo liberal que vivemos, leva a movimentos de fusão. Trata-se de uma tendência avassaladora do capitalismo moderno.

O grande varejo brasileiro está sendo disputado, basicamente, por super-empresas européias e americanas.  De um lado do ringue temos o Carrefour, gigante européia; do outro, a Walmart, americana. As duas maiores do mundo.  A fusão Pão de Açúcar e Carrefour beneficiaria, naturalmente, o Carrefour, mas a Walmart não se tornará uma coitadinha perdedora por causa disso, pela razão simples de que a Walmart é a número 1 no ranking global, faturou 420 bilhões de dólares no ano-fiscal 2011, e certamente seus estrategistas estão acompanhando atentamente o desenrolar deste imbróglio.

Agora confira a tabela com dados de abrangência nacional, com o ranking e participação das 15 maiores empresas do ramo supermercadista:


Onde está Cia Brasileira de Distribuição, no topo da lista, leia-se Grupo Pão de Açúcar, que abocanhou 15% do faturamento do setor. Ele é seguido de muito perto pelo Carrefour, que tem outros 15% do mercado, de maneira que a fusão geraria um gigante com uma parcela de 30% do varejo brasileiro. A Walmart, número um nos EUA, tem 10% do mercado norte-americano. Na França, o Carrefour tem 40% do mercado.

Interessante é que esses gigantes varejistas tem um histórico de suporte governamental para ingressar em outros países, conforme se pode ver pelas notícias que informam sobre o lobby da Walmart junto a Casa Branca para ganhar o mercado indiano.

Confira um trecho do relatório do Dieese:

O setor supermercadista brasileiro obteve resultados expressivos em 2009, faturando R$ 177 bilhões o que representa um aumento nominal de 11,7% em relação a 2008. Descontando-se a inflação, o crescimento real foi de 6,5%, segundo a Associação Brasileira dos Supermercados (Abras). Uma das características do segmento é o elevado grau de concentração no faturamento. Os dados por empresa revelaram que somente a participação no mercado das três maiores redes chegou a atingir 40% do faturamento total do setor no ano passado (R$ 71,6 bilhões). O grau de concentração aumenta para 52% quando é agregada a participação das 15 maiores redes no faturamento total (Tabela 1). Em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), a participação do setor manteve-se em torno de 5,5%, nos últimos dois anos. Como houve um intenso processo de fusão vivido pelo segmento supermercadista, nota-se uma grande mudança acionária, e hoje a origem do capital é majoritariamente estrangeiro.

O documento do Dieese nos lembra ainda que o setor supermercadista é o maior empregador de jovens do país, em função da quantidade enorme de oferta de vagas em serviços que não exigem experiência prévia.

Conclusão

Diante de tantos números e informações às vezes contraditórias, qual a posição que devemos tomar diante nesta polêmica? Confesso que ainda estou em dúvida, mas à guisa de conclusão, teço os seguintes comentários:

O varejo brasileiro está no centro de uma guerra econômica entre as duas maiores redes varejistas do planeta: a francesa Carrefour, de um lado, e a americana Walmart, de outro. As duas dominam, juntamente com o Pão de Açúcar, 40% do varejo nacional.

Por outro lado, as pequenas vem também ganhando espaço, e devem prosseguir crescendo, em função da geografia brasileira, urbana e rural. Até a precariedade do transporte público, somada às enormes extensões territoriais em que se espalha a população brasileira, ajudam a promover o comércio local. Mesmo pagando um pouco mais caro, vale a pena comprar na vendinha do bairro, em função da economia de tempo e dinheiro necessários para o deslocamento até um grande supermercado.

Quanto à participação do BNDES na operação, inclino-me novamente a considerá-la positiva, pois seria um pezinho do Estado brasileiro (e dos interesses nacionais) na primeira ou segunda maior rede varejista do mundo, ajudando a transferir informações e tecnologias de um setor, que erroneamente não é considerado estratégico, mas que é estratégico sim, sobretudo considerando a necessidade de ampliarmos a presença de produtos brasileiros industrializados nas prateleiras do varejo internacional. Não é possível continuarmos vendendo apenas matéria-prima.

O governo, desta vez, não está sequer emprestando dinheiro a uma empresa privada, e sim tornando-se sócio-acionista, aumentando assim o patrimônio do Estado. O instrumento usado é o BNDESPar, braço do BNDES criado justamente para realizar esse tipo de operação. São 4,5 bilhões de reais do BNDESPar, que já investiu quase R$ 50 bilhões desde 2007 em operações semelhantes, gerando fortes lucros para a instituição. Ao mesmo tempo, sempre é bom lembrar, para se entender o contexto político em que se dão esses investimentos da instituição em grandes empresas, o BNDES está ampliando fortemente o crédito para micro, pequenas e médias empresas (varejistas incluídos, portanto).

Em suma, a concentração no varejo é negativa, mas se ela é inevitável, é interessante que o Estado tenha participação nela, sobretudo se levarmos em conta fatores globais, ou seja, se entendermos que pode ser útil que o Estado brasileiro influencie a política comercial do maior player varejista do mundo. Os mitos neoliberais de que o Estado é incompetente já foram enterrados. A China cresce de 15% a 20% ao ano porque o Estado chinês ajuda e participa de qualquer iniciativa econômica, doméstica ou no exterior, seja diretamente, fazendo o planejamento, seja indiretamente, com participação acionária. Na última crise financeira global, os governos tiveram que limpar a sujeira feita por grandes grupos privados, com prejuízo de trilhões de dólares para os cofres públicos. Na nova ordem econômica global, portanto, talvez estejamos diante de princípios diferentes daqueles que caracterizaram a fase neoliberal. Os governos, escaldados com os terríveis prejuízos de que foram vítimas no passado recente, justamente por se recusarem a participar ou regulamentar as atividades econômicas privadas, vêem-se agora, premidos pelas próprias circunstâncias, ou seja, pela necessidade de conferir maior segurança a seus investimentos, vêem-se agora forçados a estar mais presentes nas estratégias econômicas das grandes empresas nacionais, com a função de fiscalizar e garantir que estas instituições (que por seu porte tem grande função social) ajam com mais responsabilidade, prudência e que norteiem seus investimentos visando o interesse público.

O governo poderia, por exemplo, simplesmente emprestar dinheiro para o Abílio Diniz, assim como fez com a Globo durante a era FHC, quando a emissora recebeu vários empréstimos e aportes financeiros do BNDES.  Só em 2002, último ano do governo FHC, o BNDES injetou R$ 1 bilhão na Globocabo, maior empresa de tv a cabo no país, mesmo após a empresa ter apresentado contas fortemente negativas nos anos anteriores. E sem contar que o banco havia comprado ações da Globopar antes; aliás, durante décadas a Globo sempre recebeu generosos empréstimos do BNDES; e numa época em que o BNDES não emprestava dinheiro para os pequenos, e, cúmulo dos cúmulos, apresentava uma performance financeira medíocre, praticamente deficitária. Nos últimos anos, ao contrário, as operações do BNDES (com destaque para aquelas do BNDESPar) tem feito a instituição bater recordes todos os anos em termos de lucro líquido.

O que vemos desde o início da era Lula é o contrário desse movimento entreguista e anti-estatal, é o BNDES ampliando a presença do Estado na economia, dentro dos limites de uma democracia capitalista moderna, através da estratégia (normal para qualquer banco de investimento) de se tornar acionista dos principais empreendimentos privados nacionais, fazendo o Estado também lucrar com o crescimento econômico. É a única maneira, aliás, de abrir espaço para a redução dos impostos. Como o Estado poderá aumentar seu orçamento e prestar melhores serviços sem enfiar mais fundo o garfo no prato dos contribuintes? A única maneira é se tornando sócio da economia privada, o que lhe permitirá usar os lucros para bancar os gastos públicos crescentes de um país emergente. O BNDES, repito, não está emprestando dinheiro para o Abílio Diniz, mas se tornando sócio daquela que poderá vir a ser a maior rede varejista no mundo.

Reitero que não pretendo ser o dono da verdade, sobretudo em assunto tão espinhoso e repleto de pontos obscuros. Meu ponto-de-vista aqui é puramente empírico e diletante, e até mesmo arriscado, pois baseia-se numa confiança algo temerária de que Luciano Coutinho, o presidente do BNDES, é um cara ético, que deseja o melhor para a instituição. Entretanto, mesmo supondo que o negócio seja bom para o Brasil (pode ser muito ruim também, mas digamos, em teoria, que seja bom), compreendo que se trata ao mesmo tempo de uma disputa econômica privada, de dimensões globais, onde se joga sujo, se joga pesado, onde jornalistas, governos e entidades são assediados diuturnamente pelas partes interessadas. Paralelamente à guerra econômica, há uma guerra midiática. Quem se espantaria se viesse à tôna que a mídia se mobilizou contra o ingresso do BNDES na operação para defender os interesses da Walmart, a grande rival do Carrefour?  Nesse ponto, alguém poderia alegar, com muita propriedade, que o governo não deveria se meter numa briga privada. Ao que outro poderia rebater, igualmente com certa razão, que isso é balela, que o governo intervém mesmo parado, e que deve sim tomar posição tendo em vista o interesse público.

Segundo a turma do Abílio Diniz, a fusão evitaria a completa desnacionalização do setor varejista nacional, visto que o Pão de Açúcar estava comprometido (antes de se apaixonar pelo Carrefour) a entregar ao Casino, até o final de 2012, a totalidade de suas ações. Com a fusão, haveria continuidade da presença de capital nacional (incluindo o BNDES) na composição acionária de um grupo varejista responsável por 30% do mercado brasileiro.

Mas nem levo em conta os argumentos do Diniz, que tem obviamente interesse pessoal nesta fusão. O controle do varejo nacional ficará, de uma forma ou outra, nas mãos dos franceses, com os americanos em sua cola. O que me interessa é saber que o BNDES terá um percentualzinho da nova empresa, o que lhe permitirá influenciar o primeiro ou segundo maior grupo varejista do mundo a ampliar a presença de produtos brasileiros industrializados em suas prateleiras.

PS: Mais dados, que achei num post do Tijolaço.