17 de julho de 2011

Dívida pública não é bicho-papão

Duas matérias sobre os gastos do governo com a dívida pública publicadas na Carta Maior revelam uma abordagem populista, superficial e despolitizante. Assim como eu critico textos da grande mídia, permitam-me também dar meus pitacos sobre o que dizem os meios alternativos. Gosto muito da Carta Maior, mas nessa questão da dívida, eles pisaram na bola.

Vamos às matérias da Carta Maior.

A primeira é esta:


Ler a matéria na íntegra.

O absurdo começa pelo título. O repórter calcula o percentual, aprovado pelo Congresso, que o governo federal deverá destinar ao pagamento da dívida pública em 2012, e que sequer passou pelo crivo da presidente (que irá fazer, aliás, um recorde de vetos), divide pela população brasileira, e daí tasca essa manchete terrorista. O que pensará uma senhora aposentada que ganha salário mínimo? Que haverá uma derrama no ano que vem? Que um agente do governo vai bater em sua porta pedindo quinhentão? Com perdão do termo, isso é sensacionalismo do mais barato! A carga tributária vai aumentar em 2012? Não. Então ninguém vai pagar R$ 510. Quer dizer, o Eike vai pagar R$ 400 milhões em impostos, outros um pouco menos, mas nada diferente do que aconteceu este ano.

Além do mais, tem um erro básico no título. O governo não vem pagando somente juros da dívida, mas a própria dívida. Desde 2003, que a orientação do governo federal tem sido a de reduzir a dívida pública. Tanto é que pagou a dívida externa. A dívida pública líquida total vem declinando substancialmente nos últimos anos, conforme se pode ver neste gráfico:


Não fosse a grave crise financeira internacional que atingiu o mundo em 2008, estaríamos agora com uma dívida líquida abaixo de 37% do PIB. De qualquer forma, após alguns meses em que o governo foi obrigado a aumentar o endividamento, este voltou a cair e hoje (final de maio) está em 39,77% do PIB.  Ao final de 2002, a dívida pública líquida correspondia a 62,85% do PIB!

Todos os governos do mundo possuem pesadas dívidas públicas, que devem pagar em dia para manter a credibilidade junto ao mercado financeiro. A Venezuela de Hugo Chávez ou a França de Sarkozy pagam em dia a seus credores. Quando um país enfrenta uma crise fiscal grave e não pode mais pagar os juros de sua dívida, os resultados são catastróficos para a sua economia, porque ele será obrigado a pagar juros muito mais altos quando tiver (e sempre terá) que captar recursos no exterior.

A determinação de Lula e seu governo sempre foi pagar os juros da dívida pública, inclusive mais que o governo anterior, visto que não apenas pagou os juros, mas reduziu o próprio montante da dívida. Isso não impediu o governo de ampliar os gastos sociais. Uma coisa não exclui a outra, se houver vontade política. Na própria Carta Maior, reportagem do mesmo jornalista lembra que os gastos sociais por habitante dobraram nos últimos 15 anos. Dilma não vai mudar uma fórmula que deu certo.

Quanto aos juros da dívida propriamente ditos, quanto mais alta for a taxa Selic, maiores serão os recursos necessários para pagá-los. Contudo, o percentual da dívida atrelado à taxa Selic também caiu muito. O perfil da dívida pública melhorou. No início de 2004, a maior parte da dívida (73%) era atrelada a fatores instáveis, como câmbio e taxa selic. Hoje a parte principal da dívida são títulos com juros pré-fixados, com taxas abaixo da taxa selic.




A outra matéria da Carta Maior que merece críticas pela superficialidade é esta:


Ler na íntegra.

Dessa vez o título está certo, mas é enganoso mesmo assim, porque ele soma tudo que o Brasil pagou desde 1998! Ora, se eu somar tudo que eu gastei em cerveja desde 1998, acho que vai dar um resultado parecido! De resto, a matéria é repleta de comparações disparatadas, que seriam interessantes, se não conduzissem a uma abordagem reacionária, anti-estatista, e por isso despolitizante e contrária à linha editorial do próprio site. Esse é o ponto principal onde eu queria chegar: achando que faz uma crítica à esquerda, a Carta Maior na verdade estimula o conservadorismo anti-Estado.

Reitero que respeito e admiro profundamente o trabalho da agência Carta Maior. Em relação ao tratamento que o site dá a questão da dívida pública, no entanto, não é de hoje que noto um viés populista, tentando impressionar o leitor leigo com os valores colossais que o governo gasta.

É preciso entender, porém, que à medida em que o Brasil cresce, esses valores serão cada vez maiores, assim como será a arrecadação fiscal em termos absolutos. O importante é reduzir a relação da dívida com o PIB ao menor percentual possível. Ou seja, é saudável ter uma dívida relativa menor, e a política econômica do governo federal tem caminhado neste sentido, com o que a arrecadação fiscal poderá ser mais amplamente usada para destinos mais nobres, como saúde e educação.

Fontes usadas para elaboração desta matéria:
Relatório da Divida Pública Federal - Mai/11
Indicadores Econômicos Consolidados do Banco Central
Ipea Data - Índices Macroeconômicos

13 comentarios

jozahfa disse...

Estamos em um momento interessante, colega, que os problemas todos se misturam, como dizia o Raul. É uma boa hora para olharmos para as coisas e discernirmos o joio do trigo, que eu acho uma boa metáfora. É fácil manipular a informação, né? Quer dizer, omite-se o dado de que a renda per-capita aumenta e utiliza-se do valor absoluto dos juros (que como você mostra, na verdade é relativo) que se agrega aos tributos, para dizer que o custo de vida vai aumentar.
Sendo intencional ou não, e por causa mesmo disso, temos que estar atentos à circulação das informações e testar sua veracidade.
Em outras palavras, é preciso saber onde está a verdade.
Na diferença entre esquerdistas e direitistas acho que ela está cada dia menos.

jozahfa disse...

corrigindo: 'dos juros que se agregam aos tributos'.

Anônimo disse...

Em 2009 a divida publica dos EUA eram quase 13 trilhoes, não si qto está agora

http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u647645.shtml

Castor Filho disse...

Prezado Miguel
Não é a primeira vez, nem será a última, que algum dos "illuminati" da esquerda tenta fazer o que fez o articulista - manipular dados - para defender posições em Política Econômica. Exatamente o que fazem as/os miriansleitões da "imprensa" de mercado. Essa metodologia desserve/desacredita completamente e nos iguala a referida imprensa. Alguns dos correspondentes da redecastorphoto já tinham comentado algo parecido em resposta a artigos e "newsletters" da CM por nós distribuídos.
Você foi o primeiro blogueiro que li que sistematizou/relativizou a análise via Dívida/PIB. É isso aí; trabalhar com valores absolutos SEMPRE induz a erro, na maioria das vezes, grosseiro.
Parabéns
Castor

bLOgDoRiLdO disse...

Duro é ver jornalistas renomados repetirem a cantilena como se verdade fosse, não sei se por astúcia ou ignorância, mas o fazem com gosto e aparentando indignação. Alguns se dizem de esquerda. Sei!...

Marcelo de Matos disse...

Miguel. Percebi que você é um blogueiro que mata a cobra e mostra o pau, no bom sentido, claro: exibindo gráficos, fontes de consulta, etc. Sou novato aqui porque o título do blog espanta um pouco, até mesmo a pessoas irreverentes e verbalmente desatravancadas como eu. Bacharel em Direito, não entendo nada de economia, como de outras matérias. Fico encucado, porém, com algumas questões: os juros, o câmbio, a chamada “desindustrialização”, o fantasma da China e a abertura comercial do país. Os juros altos e o real valorizado seriam responsáveis pela desindustrialização, e são os alvos prediletos das críticas da mídia/blogosfera. Até aí tudo bem, mas, esses veículos dão a entender que a culpa é do governo. Aí eu não concordo. O Estado brasileiro tem instituições como a Febraban e a Fiesp que extrapolam os governos, porque permanentes, enquanto esses são transitórios. A essas instituições compete implementar a política financeira e industrial. Se elas estão satisfeitas com o quadro atual, ao governo, dentro da legalidade, sobra pouca margem de ação. Fala-se em desindustrialização quando nem industrialização houve ainda. Setores como o de fertilizantes (em um país exportador de commodities), defensivos agrícolas e medicamentos, são dominados por multinacionais. Aponta-se a China como responsável pela nossa desindustrialização. De fato, a China é um gigante industrial, mas, se ela não existisse, o problema seria o mesmo. Quando vou comprar meias encontro produtos made in Indonésia e Paquistão, na C&A, e made in Colômbia, na Zara. Em qualquer cantão do planeta é possível produzir meias a baixo custo, desde que haja matéria prima, mão de obra barata, impostos baixos ou sonegação fiscal. Outro dia, depois de comprar um tênis Adidas, constatei que ele tinha sido fabricado no Vietnã. O problema seria a abertura do mercado, mas, se o fecharmos, nossa indústria poderá tornar-se jurássica. Em livro publicado em 1969, Clóvis Melo (Os ciclos econômicos do Brasil) diz: “Necessitamos de um nacionalismo econômico sadio, racional, desenvolvimentista. Nem o escancaramento das portas, como o fez Roberto Campos, nem a “muralha chinesa” que traçou Arthur Bernardes em torno de nosso país.” Naquele tempo falava-se muito em nacionalismo, palavra que, em tempos “globais”, tornou-se palavrão. Enfim, Roberto Campos já tinha tirado a tramela; aí veio Collor e arrombou a porta. Ou nem tanto? Qual é a real abertura de nossa economia? Segundo li recentemente, VW e Fiat controlam o preço dos automóveis no país, garantindo vultosos lucros para as montadoras aqui instaladas, apesar das importações de veículos. Embora a Índia seja grande produtora de medicamentos, seus produtos quase não são encontrados em nossas farmácias. Será que os laboratórios conseguem dificultar a entrada de produtos indianos? Qual é o verdadeiro calibre de nossa abertura comercial?

Miguel do Rosário disse...

Marcelo, obrigado pelas observações extremamente perspicazes acerca dos dilemas de nossa política econômica. Eu tenho a impressão que a globalização está pondo em prática (ou aprofundando) uma lei econômica básica, que é a especialização, ou a divisão internacional do trabalho. As grandes forças econômicas estão se acomodando, mas terríveis lutas acontecem, às vezes silenciosamente, entre as economias dos países. Qual o papel da economia brasileira neste cenário? Que lutas valerão a pena ser lutadas? Que lutas teremos de, necessariamente, abandonar, até para focar em outras que possamos ganhar?

Não podemos ganhar todas as lutas. Acho difícil o Brasil competir com a China em vários setores. Temos, de qualquer forma, um grande mercado doméstico e somos a mais importante liderança da América do Sul.

A saída, a meu ver, é apostar numa integração cada vez maior com a América do Sul, para ganharmos escala em termos de produção e consumo. E investir pesado em tecnologia, porque esse é o futuro.

Enfim, depois a gente conversa mais.

Abraço.

Anônimo disse...

Há um ditado que diz dívida não se paga se administra

spin disse...

Não vejo a hora de os blogueiros poderem existir como empreendores, há muitos que necessitam que isto aconteça, o PIg, que não quer saber de concorrência, vai detestar
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-micro-empreendedor-indvidual-e-os-blogs

Adriano Matos disse...

O mais grave para o mundo todo é que todos países têm dívidas, mesmo os de primeiro mundo, e os credores são invariavelmente instituições financeiras de risco.

Risco dos outros, pois ao menor abalo, o Estado - o devedor -, vêm socorrê-las.

Anônimo disse...

Acho que você tem títulos da dívida pública e esta com medo de levar um calote, isso sim.

Miguel do Rosário disse...

Oh anonimo, quem dera!

Apelido disponível: Sala Fério disse...

A sacanagem da mídia é essa mesma: tentar criar ilusões de fatos negativos onde não existem, criar pânico e medo do 'caos', maximizar falhas e atribuí-las aos agentes errados. Se apontadores de jogo de bicho não repassarem os valores coletados para os banqueiros, poderemos ver uma manchete assim: "Desvio de recursos financeiros atinge maior parte das capitais brasileiras" ...

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