10 de fevereiro de 2009

A Bolívia moderna




Por João Villaverde

A nova constituição boliviana elucida alguns pontos importantíssimos da nova sociedade moderna. Afinal, o que é uma sociedade moderna? É algo complexo, mas parece consenso que devemos respeitar as diferenças culturais e sociais. O ser humano é diferente – já estamos há cinco mil anos por aqui e isso deve ser compreendido por todos. Quer dizer, se somos capazes de escolher um parceiro e com ele dividir nossas vidas – a ideia do matrimônio do catolicismo, por exemplo – e aceitar suas diferenças, por que não seríamos capazes de agir da mesma maneira com os outros, mesmo aqueles não conhecemos?

Dei uma volta longa, mas volto a nova constituição boliviana. Um ponto em especial, me inspirou nos últimos dias. Ela regulamentou, quer dizer, tornou legal e constitucional um mecanismo já usado há muito tempo em algumas regiões do país. A tarifa indígena. Uma empresa para usar os recursos dos povos originários precisa devolver a estes uma parte, que é cobrada pelos indígenas. Vou explicar melhor, mas antes é preciso entender três coisas.

1)Os povos originários são os indígenas. Eles estavam aqui antes de qualquer europeu, americano ou quem quer que seja. São seres humanos como todos os outros e não devem ser espoliados de suas terras, como ninguém gostaria de ser. 2) As empresas são criações humanas que buscam o lucro. São capitalistas de nascença, e isso é importante ter em mente. Portanto, não há distinção, da perspectiva do índio, do capital da empresa, quer dizer, se ele é nacional ou internacional. A história mostra que por dinheiro, pode ser vizinho ou estrangeiro, todos são capazes de tudo. 3) A Bolívia é um país crucial para entender a América Latina. Como escreveu o cientista político Cesar Benjamin, a história produziu diferenciações importantes. No Brasil, na Venezuela, na Colômbia, no Chile e na Argentina, predominaram povos novos, formados já no mundo moderno pela mistura de grupos humanos originários da própria América, da Europa, da África e até da Ásia, usados como força de trabalho pelo capitalismo europeu. No Peru, no Paraguai e no Equador, predominaram povos herdeiros das civilizações pré-colombianas; mesmo espoliados pela invasão europeia, preservaram línguas, costumes, formas de organização social, crenças e valores. A Bolívia ocupa um lugar especial. Não é apenas o centro geográfico do continente. É também o principal lugar de encontro desses dois grandes contingentes humanos. Por isso, sempre esteve sob ameaça de desagregação. Até recentemente cresciam as tensões separatistas.

A pressão sob a Bolívia e mais especificamente sob o presidente Evo Morales é forte desde sua vitória nas eleições de 2006. No ano passado, uma verdadeira guerra civil foi quase disparada pela tensão instaurada nas regiões ricas, que não aceitam a liderança indígena. Até por isso, a vitória da nova constituição é ainda mais importante simbolicamente.

Aliás, os aspectos mais relevantes da nova constituição são o fortalecimento da economia estatal, da economia comunitária e dos direitos dos povos indígenas originários do país. Estes ganharam, inclusive, o direito de estruturar um órgão judiciário indígena, aos quais serão aplicados princípios, valores culturais, normas e procedimentos próprios. Isso é incrível, não tem paralelo com nada já colocado em prática. Uma incoerência histórica é finalmente consertada: a grande maioria da população, os índios, eram forçados a seguir as leis e os costumes da minoria colonialista. A nova constituição mantém o judiciário “convencional”, mas dá direito aos indígenas valerem seus direitos e valores de maneira legal.

A tarifa indígena, como estava falando, é simples. O repórter Marcos de Moura Souza escreveu matéria no Valor Econômico tempos atrás (“Empresas pagam ‘taxa’ indígena na Bolívia”, Valor, 26/01) dando exemplos práticos do funcionamento das taxas. A maior fabricante de cerveja da Bolívia, a Cervejaria Boliviana Nacional, paga anualmente uma tarifa aos povos indígenas pela utilização das águas do rio Huari – para produzir cerveja de mesmo nome. Nas margens do rio vive uma comunidade indígena. A cervejaria desembolsa uma contribuição anual em dinheiro ao povo indígena, que não passa pelo governo central ou pelos departamentos (estados). Este ano são 400 mil bolivianos para os “caciques” (R$ 132,7 mil), valor reajustado a cada quatro anos.

A matéria lembra inclusive de um episódio dramático que ocorreu antes da instituição das tarifas. “No início da década um derramamento de óleo no Rio Desaguadero praticamente extinguiu os peixes do lago Poopo. Ao redor do lago vivem comunidades indígenas tradicionais que tinham sua alimentação baseada na pesca e que, por um bom período de tempo, se viram às margens de um mar de óleo sem vida”.

O artigo 304 diz que comunidades indígenas camponesas autônomas poderão “criar e administrar taxas, patentes e contribuições especiais” em suas áreas e “administrar os impostos de sua competência no âmbito de sua jurisdição”. No capítulo sobre “direitos das nações e povos originários camponeses”, a Carta diz que eles terão de ser consultados a respeito da exploração de recursos não renováveis no território que habitam. Estabelece ainda que terão direito à “participação dos benefícios da exploração” desses recursos.

Quando uma empresa se interessa por algum projeto na Bolívia que afete territórios de comunidades indígenas, a primeira coisa que precisa fazer é entrar em acordo com os próprios indígenas. Isso é regra agora. Não adianta a visão colonialista de passar por cima dos índios para ganhar dinheiro. E não adianta o velho discurso de se apoiar na “modernidade” para justificar os projetos. Já vimos que isso nada tem a ver com modernidade, mas com antiguidade. Ser moderno é entender que os seres humanos são diferentes e não há nada de errado com isso.

O engraçado é o argumento dos críticos desse artigo da nova constituição. Dizem que essas tarifas são danosas ao investimento privado. Aliás, a grande crítica feita aos termos da nova constituição é quanto as condições do investimento privado internacional.

Isso era esperado.

O artigo 366 da constituição boliviana, prevê que "todas as empresas estrangeiras que realizam atividades na cadeia produtiva hidrocarburífera em nome e representação do Estado estarão submetidas à soberania do Estado, a dependência das leis e das autoridades do Estado. Não se reconhecerá em nenhum caso tribunal, nem jurisdição estrangeira e não poderá invocar alguma situação excepcional, de arbitragem internacional, nem recorrer a reclamações diplomáticas". Isso não é uma afronta ao capital estrangeiro. Ninguém é forçado a investir na Bolívia. Ninguém é obrigado a investir em qualquer país. Mas se for, deve-se submeter as regras que determinado país considera melhor para si. Simples.

Porque se acham que a Bolívia perde ao não incentivar os investimentos privados, as pessoas tem de mudar sua concepção de mundo. Se massacrar povos “atrasados”, poluir rios, levantar fábricas nas planícies, criar classe sociais (aqueles que trabalham e aqueles que pagam) e tudo o mais, se isso é “trazer a modernidade”, então a Bolívia foi muito bem modernizada desde o início. Estamos vendo o que está acontecendo com o capital estrangeiro em tempos de crise. Não era bom? Então porque não param de sair do Brasil e de todos os emergentes desde que a crise explodiu? Depender dos outros é muito fácil quando os outros estão malucos pelo lucro fácil.

Agora se é a vez dos povos originários – que são a maioria além de tudo! – ocuparem o poder – democraticamente, é bom lembrar – e trazerem um pouco de igualdade para a Bolívia, então é importante parar para pensar. Porque impor uma visão de mundo sobre um povo parece excesso de altruísmo ou abuso de má-fé.


Link da foto.

5 comentarios

Anônimo disse...

Ótimo artigo - tenho lido sobre o q vem acotecendo na Bolívia, no ótimo http://fazendomedia.com

José Carlos Lima disse...

Moderno é o Estado forte, dando proteção aos mais fracos e explorados

Arcaico é o neoliberalismo que resultou na crise mundial

Pena que FHC tenha doado o Sistema Telebrás a Dantas e a Vale aos seus apaniguados.

Que falta nos faz a Vale agora neste momento em que o moderno é o Estado interventor e dono do sistema bancário.

Miguel do Rosário disse...

Grande João, tava com saudades! Belíssimo artigo sobre a Bolívia.

Não estou usando mais a tag Artigo. Acaba juntando, na parte de Artigos Relacionados, tags diferentes, atrapalhando. Se for uma Resenha, bem específica como resenha, tudo bem, pode colocar resenha. Se for uma crônica bem específica, pode botar crônica. Mas quando for artigo, deixa só Política ou Economia, etc. Abraço.

carlos disse...

caro villaverde,

precisamos divulgar tais informações sobre a bolívia e do restante dos países da américa latina para o brasil se integrar ao continente, a exemplo do que o governo lula vem fazendo.

parabéns pela análise dos acontecimentos atuais daquele bravo país andino.

abçs

João Villaverde disse...

Obrigado pelos elogios, Carlos, Miguel e Pik Lai.
A visão arcaica de que a Bolívia precisa seguir os padrões externos está caindo, junto com uma série de mitos dos últimos anos. Isso é muito importante. Estamos vivendo uma época rica, em vários sentidos e campos de estudos, para mudanças e discussões.
A única coisa que não pode ocorrer - e que surge como última alternativa para o pensamento hegemônico - é desqualificar ideias alternativas, como essa colocada em prática na Bolívia, antes de analisar se são de fato boas ou ruins.
Abraços

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