(Henri Cartier-Bresson)
Revezo entre ateísmo e catolicismo. Misturo os dois, se é que isso é possível. Enfim, quando preciso, rezo. Ontem eu orava por minha bicicleta, que eu deixara acorrentada a um poste de rua, na praça Tiradentes, no sábado à noite. Deus atendeu-me as preces e lá estava ela, intacta, poderosa, minha. Montei no cavalo e lá fui pedalando, sob um sol escaldante e um calor de 40 graus. Num cruzamento, escuto os berros de um motorista de ônibus, dirigindo-se a um interlocutor fora do meu campo de visão. Apurei o ouvido e consegui identificar parte do que ele dizia:
- Ô Guarda, sacanagem o que a Rede Globo tá fazendo com vocês, héin? Obrigando a perseguir trabalhador.
Ele se referia, claro, à perseguição aos vendedores ambulantes, patrocinada pelas organizações Globo, rádio, jornal e tv. Pois, é, meus queridos, o povo é mais esperto do que a gente pensa.
*
Outro dia, estava eu num centro cultural do Catete, onde vou de vez quando ler jornais e revistas. Tem uma turminha que sempre está lá, pelas mesmas razões. Há um mesão, em torno do qual todos sentam. Eu lia a Folha de São Paulo, quando aparece um amigo meu, senta-se a meu lado e começamos a conversar sobre alguns assuntos de interesse em comum. Um homem ao nosso lado ouve nosso papo e entra na conversa. Esse homem é um chileno que sempre está por lá. Nesse dia, ele vestia uma camisa onde se lia, nas costas, Fora Israel! Viva a Palestina!, com a bandeira da Palestina na frente. Ele nos mostrou um livro que, segundo ele, trazia documentos inéditos comprovando que Israel é um Estado terrorista há cinquenta anos. Ele continuou falando conosco, até que um senhor sentou-se do outro lado da mesa e, percebendo sobre o que falávamos, resolveu intervir:
- Não é nada disso! Esse cara aí fica fazendo propaganda!
E nos mostrou o braço direito. Havia um número lá. Era, notoriamente, a marca de passagem por um campo de concentração nazista. O velho prosseguiu invectivando o chileno:
- Vocês são uns terroristas! Usam crianças como escudo! Covardes! E vem aqui fazer propaganda, trazer livros!
Ele se dirigia ao chileno como se este fosse palestino. Quando o chileno rebateu dizendo que não era palestino, e sim chileno, o velho ficou surpreso. E começou a desmerecê-lo por ser chileno.
- Chileno! Chileno! E vem aqui no Brasil defender palestino!
Ele mesclava suas invectivas a protestos contra o Papa, que recentemente havia cancelado a excomunhão de um bispo que negara o holocausto. Afirmava que era polonês, e que sua família vivia há mil anos na Polônia. Mas era judeu, estava no sangue, dizia, como que se desculpando por ser obrigado a defender Israel.
A discussão entre o judeu e o chileno era feita aos gritos, mas curiosamente não havia rancor no ar. Apenas exaltação. Outros na mesa riam discretamente. Os seguranças do centro se aproximaram e pediram silêncio. Alguém pediu que eles fossem discutir lá fora. Até que eu e outro cara convencemos o chileno a ficar quieto, a não cair na provocação do judeu.
- Pô cara, ele tem 84 anos, esteve em Achwitz. Respeita o homem! Tu parece maluco!
Esse chileno tem 70 anos, mas parece ter uns 40. É bem moreno e forte, com voz e olhos de um garoto do movimento estudantil dos anos 60. Eu o conheço de outras conversas no mesmo local. Ele é dono de um hostel (pensão especializada em turistas estrangeiros) no Catete.
A cena foi bem hilária, apesar dos temas trágicos abordados. Uns garotos com roupa de colégio, que também estavam sentados à mesa, ficaram muito impressionados com o velho judeu e perguntaram se ele não queria dar uma entrevista. O judeu apontou para o chileno e disse:
- Entrevista ele! Ele que gosta de falar!
Depois o velho mudou de lugar, sentou-se no final da mesa, mas podíamos ouvi-lo gritar, dirigindo-se aos garotos que queriam lhe entrevistar:
- Esse chileno aí! Vem aí pro Brasil e fica fazendo propaganda da Palestina! Não sabe nada!
As coisas foram se aquietando. Voltei a ler o jornal. Na outra parte da mesa, ouvi o velho judeu se despedindo dos garotos:
- O Brasil é o melhor país do mundo! Viva o Brasil!
Não me pergunte a troco de que ele disse isso. O chileno continuava resmungando baixinho e um outro cara, que sempre frequenta o local, começou a argumentar que o sionismo era a força hegemônica no mundo. Eu contra-argumentei. Estou ciente, disse a ele, da força do capital judeu no mundo, mas não creio que seja a força hegemônica. A discussão rendeu. Falamos de revolução francesa, criação do Estado de Israel, ONU, etc. Não chegamos a nenhuma conclusão porque meu interlocutor não quis prosseguir o debate. Disse que eu era muito jovem e paramos de conversar. Eu continuei conversando com o chileno. Enfim me despedi e fui embora.
Lição da história: nenhuma.
*
Mais um artigo interessante sobre o caso Battisti (via O Biscoito Fino e a Massa). O negócio rendeu, héin? E agora a decisão fica na mão do STF de Gilmar Mendes, que, obviamente, está contra o governo e contra a extradição. Que delícia! Não entendo porque Mendes ainda não declarou a inconstitucionalidade do governo Lula e não assumiu o poder.
Gostei. Boa semana !
Abraços Yvy
Viva o Brasil!, Miguel! Viva o Brasil porque somente aqui isto que vc relatou pode acontecer.
Entrei por causa da mocinha do Bresson, e fiquei pelo post. Gostei. Eu volto.
Postar um comentário