(via Idelber Avelar).
Prezados, traduzi um artigo importante para nossos debates sobre mídia X política. Se você souber bem o espanhol, leia diretamente no original. Aproveita e lê este outro, sobre o mesmo tema (que traduzi aqui). Os textos são de um grande intelectual argentino, morto precocemente (62 anos) há poucos meses, que falam da politização da comunicação de massas na América Latina. Esses textos falam de forma muito íntima com o conteúdo do livro Delenda Serra, que pretendo publicar. Tratam da forma insidiosa como a direita vem travando a batalha da comunicação de massas, manipulando consciências, deslegitimando sistematicamente (quando lhe convêm) o processo democrático. Abaixo a minha tradução de um dos artigos:
A política em mãos da oposição midiática
Por Nicolás Casullo
Vivemos um tempo onde o midiático rouba quase todo o real da realidade. A carência de idéias e programas de uma oposição política não constituída definidamente, provoca que esta ausência seja substituída, cooptada, talvez de maneira definitiva, pela lógica da informação de massas (apresentadores, locutor, entrevistador, colunista). Uma lógica muito mais eficaz, e com o selo da época, na trama da sociedade, onde os meios de comunicação, com seu lema de “não fazer política”, praticam uma substancial política diária que confirmaría a imprescindível morte da política, a qual seria deixada para trás como o preguiçoso e o corrupto na vida dos argentinos.
Uma lógica jornalística do slogan, da frase compacta, do título forte, da charmosa “síntese”, do gancho, do impacto de efeito, da descoberta recorrente, do reducionismo do corte publicitário em “três palavras”. Uma lógica da transmissão diária em cadeia de todos os informativos. Uma lógica midiática bandida, cujo ofício totalizando tem sido o de invalidar os feitos centrais, tirar da mídia os sentidos que importariam ver destacados em meio à tempestadade de notícias, subtrair os verdadeiros significados. Cumprir então meticulosamente o repertório conservador, reacionário e antipolítico do status quo permamente, enquanto se almoça com Mirtha Legrand*: um senso comum esparso, sempre alcançado, que o domínio das vedetes do país e os desejos do mercado capitalista necessitam para explicar o mundo. Tudo se compra, tudo se vende. De forma que o único certo é o mercado. A mercadoria informativa expõe um suposto mundo à sua imagem e semelhança, como lógica que rotula e marca tecno-massivamente a cidadania.
Exemplo de um golpe midiático. A Presidenta afirmou na Plaza: “desde uma corporação, quatro pessoas nas quais ninguém votou, que não foram eleitas por ninguém, se reuniam, deliberavam, decidiam e se comunicavam aos argentinos quem podia andar pelas estradas do país ou não”, significando que nenhum setor ou instância civil pode assumir esse poder, salvo o Estado e o governo eleito pelo voto, que pode interromper desta forma a liberdade de trânsito no país em função de alguma grande comoção ou conflito interno. As grandes mídias, impressas, radiofônicas e televisivas, transformaram, todavia, essa frase sobre os representantes do agronegócio em: “quatro pessoas em quem ninguém votou”, como se a Presidenta ignorasse algo que sabe até o mais estúpido dos cidadãos: que efetivamente foram votados, sindicalmente, para governar as tarefas normais de suas associações. Pois bem, sobre essa falácia extrema de mutilação midiática se montou um grande sintagma explicativo das últimas 72 horas para requentar as águas do conflito.
Exemplo 2 de subtração midiática: Durante esses 100 dias, incluindo o pico do duro protesto dos fazendeiros, um acontecimento extraordinário superou o resto das notícias, dos números, cifras, diferenças e vozes. Esse foi o bloqueio de estradas e os tratorazos permanentes que assolaram o país, desabasteceram-no de alimentos, mercadorias e liberdade de trânsito das gentes, até alcançar níveis de caos e “trazer a sociedade ao abismo”. Pois bem, em todo esse tempo não houve nem vários programas, nem os necessários, nem um só programa (nas mídias mais concentradas, de maior alcance) que se tenha dedicado exclusiva e totalmente a analisar, assinalar, refletir e condenar com argumentos, sinais, vozes e comentaristas esta produção reacionária sobre a cena nacional.
Ao contrário, a ação midiática provocou uma imensa platéia social, para a qual esse jogo de ações fortemente nocivo a uma institucionalidade democrática com seu regime de partidos foi absolutamente naturalizado, aceito, e foram velados o seu sentido real, que portava violência, autoritarismo e brutalidade antisocial.
Tanto um como outro exemplo de manipulação midiática (entre outros) que embrulham nada menos que a palavra presidencial e a grande ação anticidadã destes três meses, revelam claramente o estado mental e de consciência de grande parte dos argentinos, em quanto a saber sobre o que está sucedendo no país, o que está em jogo nestes conflitos e o que representam os diversos atores em cena.
Pode-se dizer, então, como perspectiva de compreensão da crise nacional, que a possibilidade de avanço hoje, de um governo democrático institucional (que se autoidentifique com amplos setores populares sofrendo distintos graus de injustiça e postergarção de seus direitos sociais) passa também, de maneira cada vez mais aguda, pela tarefa de desmontar diariamente a ordem narrativa das coisas (para que haja chance de modificar tais coisas).
Uma contenda que, sem dúvida, não remete a nenhuma Secretaria de Cultura nem a um Ministério pensado exclusivamente para a tecnoindústria, mas que remete à pura política atuando culturalmente, em estado de constante atualização de suas concepções de massas, até as massas e com as massas. Tendo em conta que a disputa nevrálgica de nossa democracia – em um mundo como o atual baixo a dinâmica transcultural da direita – é quebrar constantemente as disposições interpretativas dominantes. Brigar por uma nova ordem de imaginários em cada conjuntura. Expropriar dimensões simbólicas de massas educadas e formadas pelos próprios DNA do sistema de alienação em sua idade visual expandida. Compenetrar-se do clássico, e para alguns superado, tema das ideologias e das classes sociais, tal qual ensinam os livros marxistas tão vendidos na Avenida Corrientes anos atrás.
Na Argentina desses dias, evidencia-se que o debate pelos significados é uma luta comunicacional de massas onde se joga a sorte e o destino de cada política. Algo similar sucede no resto da América Latina. A época democrática popular e todas as esquerdas necessitam um novo ensaismo de análise e de massas cotidiano, que amalgame a herança de sociólogos, de jornalistas, de netos de Jauretche, de intelectuais e quadros políticos que digam e disputem palmo a palmo consciências cidadãs golpeadas e desorientadas da última década. Desenredar as palavras do astuto pastiche midiático de cada dia. Tratar de levá-las a um lugar onde se lhes refresque o sentido.
A “objetividade midiática”
Os meios de comunicação impõem o seu bestial “diagrama institucional”, baixo uma forma de mercado que hoje reina soberana. Implantam a sua matriz de acordo com a programação emissora, seu valor do que seria uma democracia, a virtude de um votante apolítico que em realidade não deve nem sequer saber quem eleger, quando eleger - porque deveria votar “livre” de compromissos partidários. Nesta mesma dimensão midiática e formativa do espírito (como diriam os idealistas alemães do século XIX) se organiza uma mensagem de repetição com muito poucas variações: os governadores e e prefeitos que estruturam a política são todos “reféns ou sequazes do talão de cheques”, as concentrações populares são “mercenários a cinquanta ou cem pesos por cabeça”, o Estado de nossa democrcia “uma máquina que está metendo a mão em seus bolsos, senhor ouvinte, todos os dias”, a adesão de Hebe de Bonafini a Cristina Fernández “cinco paus postos sobre a mesa”, e a Presidenta “uma secretaria de Kirchner”.
Assiste-se diariamente a desmembração ideológica do democrático desde a absoluta irresponsabilidade dos donos da mensagem, um tipo de aguarrás midiático dissolvente de todo valor, e de onde não parte nenhuma proposta alternativa nem referência nem o menor assombro diante de qualquer coisa: estágio societário plausível de ser simbolizado com a pergunta com que Marcelo Bonelli inicia a sua entrevista com Elisa Carrió, na semana passada: “E doutora, o governo continua roubando?” Ou o comentário de um jornalista de Radio Mitre, à tarde, Marcelo Moreno, que logo após uma entrevista minha a um programa, onde escutou minhas reflexões críticas sobre o agronegócio, e cortar a comunicação, fechou a reportagem dizendo: “quando escuto esse tipo de intelectuais tenho vontade de vomitar”.
É indubitável que no campo da contenda política pelo significado dos acontecimentos, e suas consequências, é onde o governo vem perdendo terreno em mãos de um poder que desgasta, desvaloriza, deslegitima, sem dar conta de suas emissões e sem que ninguém lhe peça a conta política de suas responsabilidadades e interesses nos marcos do conflito. Esse é o dado mais importante do processo democrático argentino: se o governo não assumir este desafio com a desenvoltura de todos os seus recursos humanos, o seu projeto democrático revelará ausência da consistência persuasiva que a época exige.
Original: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-106419-2008-06-21.html
* Apresentadora de TV, tem um programa chamado Almoçando com Mirtha Legrand. É um tipo de Hebe Camargo e Ana Maria Braga, talvez um pouco mais elegante.
14 de fevereiro de 2009
Um problema comum a todos
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Caro Miguel, a tradução que você fez foi mais do que suficiente para nos mostrar a real dimensão deste problema. Há poucos dias li notícias sobre seca que se abateu na Argentina e, conseqüentemente, sua repercussão nas lavouras. Se não fosse ateu poderia até dizer que se tratava de um justo castigo divino. Mas, infelizmente, o castigo se restringirá mesmo aos pequenos produtores, ao governo e ao povão, pois os donos do agronegócio se refugiarão nas benesses fiscais. Fico pensando até quando seremos reféns dessa elite oligárquica que se instalou na América do Sul bem como das quadrilhas midiáticas que representam seus interesses. A única certeza que tenho é que será longa e árdua, a jornada para remover esta praga que se instalou em nossa sociedade ao longo de todo o seu processo civilizatório.
Um abraço
Luiz Moura
http://img3.imageshack.us/my.php?image=2010jf2.png
Plim Plim é o som da arma sendo carregada...
Muito bom Miguel ! Abraços Yvy
Valeu, Miguel. É uma iniciativa importante, essa de traduzir textos. A reflexão sobre a mídia na Argentina está muito, muito mais avançada que no Brasil, e esse tipo de trabalho que você fez realmente é um serviço público. Abraços.
De nada, Idelber! Já fiz uma revisão da tradução, corrigi uma coisa ou outra, tentando fazer menos feio. Amanhã eu traduzo o outro texto e publico aqui. Abraço.
Olhem esse video aqui gente
http://www.youtube.com/watch?v=96AYU5nHWjc
E consertei o link para o seu post no qual conheci Casullo:
http://www.idelberavelar.com/archives/2008/10/morreu_nicolas_casullo.php
Excepcional texto, apesar do estilo meio barroco maneirista. O Ideber disse que o debate sobre a mídia está mais avançada na Argentina, e deu para perceber mesmo. Aqui no Brasil, precisa-se avançar mais. Ir além de apenas apontar sua ligação com a oposição Demo-Tucana. E também aprofundar mais na análise das estratégias midiáticas, que são sutis, e não ficam apenas nas distorções das notícias propriamente ditas. A apologia do apolítico, muito bem detectada pelo professor, talvez seja a mais eficaz, e inclusive dispensa o uso de mentiras. Não falta político prevaricando com dinheiro público para se vender a idéia de que a política é uma coisa "suja". O jornalista Nirlando Beirão da Carta Capital disse a respeito do deputado do castelo, que "A gente trata os políticos no Brasil, como se fossem uma espécie nascida por geração espontânea, uma fauna esdrúxula que não tivesse nada a ver com o habitat social em que viceja". Isso porque ele lembrou ter visto muitos castelos parecidos na Barra da Tijuca e em Alphaville. Ao descontextualizar a corrupção, a mídia reduz a ética na política a uma questão de fórum íntimo. Não se preocupa em debater os mecanismos de fiscalização e de punição que podem inibir o ato ilícito. Ou o sujeito é um político ético ou é "como todos os outros". E quem tem o monopólio da construção da imagem ética? Ou de qualquer imagem pública? Aí o político vira refém da mídia, e a política também. Lembro de uma capa da Veja que estampava os senadores Demóstenes Torrs, Pedro Simon, Gabeira e Jeferson Perez, com os dizeres: "Temos políticos honestos no Brasil". A revista criou os três mosqueteiros da ética da política brasileira, com direito ao Gabeira como D'Artagnan. Por isso que eu acho a reeleição do Lula, sobrevivendo ao mensalão, que no fundo é um bordão midiático, um corte epistemológico na política brasileira. E a mídia e a oposição não se conformam até hoje
Miguel,
Sobre a crise dos jornalões, assunto hoje na Folha e no Estadão, com a decisão do cartel da mídia americana de cobrar por todos os seus sites de notícia, comento aqui:
http://abundacanalha.blogspot.com/2009/02/os-jornais-e-seus-tiros-no-pe.html
Falou, Jurandir. Linkei seu RSS no meu blog.
Juliano. O estilo talvez tenha sido prejudicado pela tradução, caso você não tenha lido o original. Mas é foda, não? É incrível os paralelos e as semelhanças da estrutura midiático-política de todos os países latino-americanos.
Idelber, o que falta no Brasil é uma abordagem mais conceitual e acadêmica do problema. Mas no âmbito boêmio e incandescente de nossa crazy blogosfera, existem toneladas de textos sobre o assunto. Já publiquei o outro artigo do Casullo, que foi mais difícil traduzir.
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