Pronto. Taí outro texto importante de Nicolás Casullo, traduzido daqui. Conheci Casullo pelo blog do Idelber. É um texto um pouco mais difícil que o primeiro (post anterior), porque vem carregado de elipses, ironias e referências locais argentinas. Mesmo assim, traz conceitos extremamente interessantes, originais e percucientes em relação a despolitização do debate ideológico, o qual, discriminado na política, penetra e domina insidiosamente a cultura de massa. A alquimia midiática converte partidos, sindicatos, associações, em grupos de indivíduos não-individualizados, dos quais devemos manter distância se quisermos continuarmos "íntegros", "puros" e "autênticos" como indivíduos. Elogia-se escancaradamente o indivíduo sem partido, sem opções ideológicas, pronto a ser moldado às vésperas de eleições ou em circunstâncias especiais. Uma sociedade a-política que, no entanto, ativa-se em agente política furiosa sempre que a mídia aperta um botão. Lembrei das legiões de jovens despolitizados, que subitamente invadem as ruas para derrubar Collor, protestar contra Renan Calheiros ou votar em Fernando Gabeira. A massa que tentaram levantar contra Lula, mas, por razões que discutimos em outros momentos, não conseguiram.
Leiam o texto. Ainda vamos comentar muito o seu conteúdo. Pensando na morte preococe de Casullo, sinto, pressinto - até um pouco emocionado - a imortalidade das idéias. Lembro inclusive do belíssimo filme Ao sul do meu corpo, do Saraceni, onde o pai descobre que teve um filho e que o mesmo já morreu, aos 22 anos, torturado numa delegacia, durante ditadura. Ao ser interpelado pelo amigo que escondeu dele a informação e que lhe pedia para esquecer uma pessoa que nunca havia conhecido, o pai responde que não, que nunca esqueceria o seu filho, que iria atrás de sua história e porque fora preso, torturado e morto pelo regime militar. E que lutaria, então, durante o resto de sua vida, pelos ideais de seu filho.
Ainda estou enferrujado no ofício de tradutor que, todavia, muito me agrada. Encontrando algum erro, mesmo o mais superficial, por favor me avisem nos comentários.
Comecemos a discutir a direita
Por Nicolás Casullo
Direita. Herança dos assembleístas de 1789 em Paris. Conceito com o qual poucos se identificam hoje. Definição que perdeu os ares ideológicos. Onde começar a buscar a direita? Na oposição ao governo? Por certo. Na luta interna do justicialismo? Sem dúvida. Como a repensar em suas formas atuais? A partir do bloqueio agrícola se volta a discutir agora o tema da direita política e ideológica, frente a “nova nação agrária como reserva moral da pátria”, segundo certas mídias golpistas, que evocam anteriores “reservas morais da pátria”.
Dilema enredado e a examinar, quando a direita não pretende ser, hoje na Argentina, e em outros países, um partido segundo os moldes tradicionais, ou qualquer outro traje que a delate. Tampouco há uma programática que apareça “contra alguém em especial”. Antes é uma espécie de comportamento generalizado, a que se acrescenta a desintegração de “anacronismos” baseados nas vetustas idéias de “conflito” político, de “interesses opostos enfrentados”, de “luta social”. A direita é, desde há tempos, ativa: moderninha. É uma permanente operação cultural para influenciar e transformar a cidadania, como começa a ficar evidente em nosso caso, com apoio de importantes setores urbanos “ao campo”.
A direita no Ocidente constitui um conjunto de forças modernizante desde uma opinião pública midiática expandida diariamente. Configura o reacomodamento de um capitalismo tardio, caminho até outro estado de massas, incluídos amplos segmentos progressistas conservadorizados. Operatória que defende o fim das ideologias, o fim das disputas de classe, o fim das direitas e das esquerdas, precisamente como premissas dissolventes de todo sentido de consciência sobre o que realmente sucede com a história onde se pisa. Não por acaso, cresce desde que o domínio econômico teve que endurecer e dividir o planeta, desde os anos 80, entre perdedores e ganhadores líquidos.
A mídia é hoje a sua grande operadora: o espírito de época encarnado, diria Hegel. Direita como Sociedade Cultural que nos conta o itinerário dos processos. Que oferece os referentes e as figuras, e decide como enquadrar o que se deve ver e o que não se deve ver. A direita, desde esta operação cultural, é a dissolvência de lugares e memórias. É um relato estrábico, como política despolitizadora a golpes de primeiros planos e manchetes de jornal.
Um bom exemplo disso poderia ser Eduardo Buzzi, representante da Federação Agrária, que reúne, em seu discurso, todos os signos da desintegração do ideológico. Da fragmentação do que antecede uma história, e também do que a projetaria para diante. Se situa em uma zona propícia de um discurso pós-político, magmático. Em um não lugar, que em realidade é “o lugar” propício. Tudo se torna equivalente, dizível, posicionante. Ex militante do PC, membro da CTA, ele trouxe, contudo, com sua voz, a argamassa política chave em sua aliança com Miguens Y Lambias, para situar a oligarquia agrária no pico de suas aspirações, como nunca nos últimos 50 anos, de se tornarem um conglomerado de poder.
Por sua vez – paralelamente aos panelaços antipopulares do Bairro Norte, pedindo a queda do governo – Buzzi chegou a solicitar nada menos que a re-estatização da YPF, ajoelhou-se devoto frente à virgem campestre da nova “pátria agrária”, e demandou, junto às estradas bloqueadas, que imitássemos o que fez Evo Morales na Bolívia, o líder indígena combatido pela agrária Santa Cruz de La Sierra, sócia ideológica de nosso campo em revolta, repetindo slogans “por um outro ordenamento” que respeite os lucros.
Um vaudeville sob uma lógica ideológica que precisamente costuma alcançar o que se propõe: transmitir “uma realidade nacional” em capítulos, indiferenciada, incorporada numa experiência circense onde “tudo é possível de se dar”. Onde nada é definido nem reconhecível, nem dá conta de nenhum sentido maior. Um esquema de situações a compor e recompor sob uma matriz teleteatral, cujo objetivo é construir protagonistas esporádicos (como presenças “legalizadas pela câmera”) de corte contrainstitucional e antiinstitucional. Pulverizar desde a telinha – entre comédia e comício – toda possibilidade de “qualidade institucional”, de representação institucional dada, a partir de interesses afetados na aliança com suas primas, as mídias de massa.
O mundo em estado de direita
Há três décadas, e sob o forte impulso com que se expandiu a estratégia da revolução conservadora, o francês Pierre Dommergues fez o seguinte questionamento: “Os neoconservadores se propõem uma revoluçaõ cultural que destrone o atual regime de partidos e deixe para trás os referentes sociais da esquerda democrática. A luta se dará no campo cultural e dos mass media, para um tempo de reordenamento de mercado, onde desapareçam as variáveis de esquerda e direita como paradigmas de orientação social, após limitar às demandas democráticas e aos Estados, o corte social. É oferecido, em substituição, um conservadorismo liberal e um modernismo liberal, que além de suas divergências coincidam na vontade de impor uma nova repartição da riqueza, disciplinar a mão-de-obra, desqualificar toda política que resista a esse disciplinamento e estabelecer uma nova forma de consenso. É uma ampla operação de re-estruturação cultural da governabilidade, para levar a sociedade em seu conjunto para a direita, através de um Partido da Ordem Democrática. É uma nova sociedade da informação, para um novo tempo moral”.
Sem dúvida, estamos discutindo a esmagadora vitória desta profunda estratégia cultural, que há três décadas foi estudada para entender não apenas o que seria esta sociedade conservadora, mas também, sobretudo, como essa batalha no plano das interpretações – a partir da direita política dos EUA e por todo planeta – significava tornar invisível o próprio processo resimbolizador para uma nova idade do sistema.
A revolução conservadora significou a permanente constituição de um novo sentido comum, a partir de uma inédita capacidade tecnoinformativa para gerar estados de massas. Um fenômeno crescente e à vista de todos, que em 1989 levou o socialista Norberto Nobbio afirmar: “Na medida que as decisões resultam cada vez mais de ordem técnico midiáticas e cada vez menos políticas, não é contraditório pedir cada vez mais democracia, em uma socidade mais e mais tecnificada e privatizada em suas enunciações?”
Não estamos, portanto, frente a uma conspiração imperialista. Nem frente a um plano da CIA. Assistimos sim a uma idade civilizatória de êxito tecno-cultural dos poderes – das direitas – sobre os desejos de uma histórica esquerda que havia predominado como consciência majoritária de massas para a idade “do progresso social e dos povos” enre 1945 e 1980. Discutir a direita em nosso país é, portanto, debater, em princípio, nem um partido nem uma figura. É investigar uma cultura que se foi desenvolvendo, supostamente, “fora da política”: no aspecto indistinguível das posições. Uma cultura comum e bruta, que rapidamente se ativam politicamente quando as circunstâncias dos domínios sociais crêem necessário. Pode ser com uma nova lei contra imigrantes na União Européia. Ou com súbito desaparecimento de suspeitos de terrorismo em qualquer parte dos EUA. Ou com os milhões de sem trabalho, sem papéis, sem escolaridade, que registram como abstratos “cidadãos votantes” e resistem às falsas mesas de “consenso”. Sujeitos que precisariam de uma “salvação moral” a cargo das classes altas que os resgatem de serem abatidos como gado. Cultura de direita, que hospeda políticas de direita.
A genética do mercado
Começar a explorar a direita não é, em princípio, fixar demasiada atenção em Carrió, Macri, Reutemann, López Murphy ou Scioli. Trata-se, preferentemente, de visitar, antes, as maternidades da criatura: nosso diálogo cotidiano e familiar com o mundo de seus obstetras. Ativar o audiovisual hegemônico e de maior audiência. Que nos conta essa criatura? Vejamos.
A história: será sempre, sobretudo, a descoberta individual. O caso. Os antípodas das massas como história. A pobreza: uma latente ameaça delitiva, uma paisagem de miséria inalterável como tipologia do “mau” na cidade. A cultura distancia o espectador. A fome: algo que já não teria ideologia nem biografia social, um ícone solto num frasco para qualquer retórica política.
O policial: o que deveria incorporar-se idealmente, como ortopedia, ao núcleo familiar protegido. Um policial sempre a meu lado. O Estado regulador, interventor, cobrador: um espaço ineficiente (ilegitimado), que “gasta o meu dinheiro”, e corrupto (por ser político). A política: um descrédito em mãos de preguiçoso que podia tanto existir como não existir. A nota policial: o amedrontamento e o protesto por segurança passa a ser o verdadeiro estado social da velha política a cancelar. O que escapa da “Lei e Concórdia” do mercado. O comunitário: uma utopia solitária entre eu, o negócio e “meu bolso” (tenha 100 pesos ou mil hectares de terra). O nacional: um espaço a-histórico, sempre no limite do caos e que só cria vítimas. Com habitantes nunca representados por ninguém, somente pelo foco da câmera, e onde a única notícia é que a política já falhou, para sempre, antes de começar. A nova comunidade pós-solidária é agora uma sociedade com uma arquitetura de serviços que “devem me servir” com a eficiência modelo de um seleto agente privado. Já não sou parte de uma memória do público, dos hospitais sociais e universidades políticas hoje em crise, mas me transformei num cliente exigente do outro lado do balcão. A liberdade: uma simples passagem de “livre consumidor” para um “votante livre” sem identidade, elogiado por não ter partido, moldado diferentemente a cada eleição, a ponto de comprar algo “genuinamente”entrando nas vitrines do quarto escuro. A gente: um “eu” sublimado, absolvido enquanto construção narrativa. Uma unidade pessoal “autêntica”, que representa muitos, enquanto esses muitos não se constituam em outro tipo de “eu” (como sujeito político identificado), e permaneçam como infinita classe média de “empregados” do capitalismo, em uma competitiva e ansiada igualdade de explorados. O sindical, o popular, os desocupados: uma realidade indiscernível de homens-grupo. Algo do qual devo manter distância da minha vida, e que o Estado “não deve atender”. Seres organizados para algo que nunca se sabe. Imagem mítica nas telinhas, com paus e cajados. Não brancos, perigosos em grupo, dirigidos por vagos, destacados, chefes de barricadas ou líderes pagos. Um outro cultural e existencial que, como nunca, na Argentina da plenitude informativa e formativa, alcançou quase o apogeu de uma luta cultural de classes do gorila sobre o peronista, como um racismo não dissimulado sobre o popular, sindical e piquetero: universo da negatividade política, do voto subnormal, o voto “comprado”.
Sobre este tabuleiro midiático hegemônico, a nova direita, hoje como semente de uma república agroconservadora, joga sempre localmente. O trabalho do sentido comum, de ver o mundo, já lhe vem dado. E desde aí aspira agora a converter-se numa coalização social histórica, desde seus núcleos de neorrentistas, novos arrendatários e bisonhos investidores-especuladores que ampliam sem dúvida o campo cultural de sua cidadania.
Tradução: Miguel do Rosário
Leia este outro artigo de Casullo traduzido por mim.
16 de fevereiro de 2009
Outro artigo importante de Nicolás Casullo
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