1 de fevereiro de 2009

Eduardo Paes, tire as mãos de cima dos ambulantes!




Há duzentos anos que as autoridades cariocas praticam a mais truculenta e desumana e burra repressão ao comércio ambulante. Ironicamente, o Rio é uma das cidades onde o comércio ambulante, o popular camelô, é uma das instituições mais tradicionais e mais arraigadas. O carioca gosta do camelô. Compra no camelô. E todo carioca vê no camelô uma espécie de "seguro-desemprego". Ou seja, em caso de dificuldades, sempre há a possibilidade de montar uma barraquinha na rua e vender refrigerante, salgadinho, quinquilharias eletrônicas, roupas, livros, tudo.

O camelô, por outro lado, por razões ideológicas que ainda estou tentando compreender, sofre uma perseguição implacável das elites, encasteladas em seus super-apartamentos da zona sul, perseguição esta que tem como porta-voz o house-organ O Globo. Qualquer prefeito, portanto, se deseja conquistar a simpatia da família Marinho e seus leitores do Leblon, basta mandar sentar o cacete nos ambulantes. Será ovacionado pelos aposentados fascistas que mandam cartinhas pros jornais. Por não mais precisarem correr atrás do pão, esses missivistas desnaturados esnobam de quem precisa.

É natural, é necessário, que haja ordenamento. Mas o prefeito precisa ter um mínimo de sensibilidade social e política para entender que o camelô, antes de tudo, é um ser humano com uma história de vida - geralmente dura e triste. Não é sonho de ninguém ser camelô. É uma necessidade. A prefeitura deve ordenar, mas sem truculência, sem roubar a mercadoria de ninguém. E sem fazer "emboscadas". A tática de emboscada, de chegar abruptamente num lugar e sair correndo atrás dos camelôs, produzindo uma verdadeira caça humana, é inadmissível. Em primeiro lugar, a prefeitura deve divulgar, por um bom tempo, o que pretende fazer, antes de sair às ruas caçando camelôs como quem caça mosquito da dengue. Deve abrir linhas de crédito, entrevistar, analisar caso a caso, delimitar áreas que possam ser utilizadas.

A cidade já vive uma situação social à beira de uma explosão. Em vez de ajudar, o prefeito não pode lançar mais lenha no fogo. Há poucos dias, uma equipe da guarda municipal foi até uma avenida situada aos pés do Complexo da Maré, uma rede de favelas conhecida internacionalmente por ser a "sede" operacional dos serviços de Fernandinho Beira-Mar, além de umas das regiões mais violentas do Rio. Ora, foi um Deus nos acuda. Camelôs, entre eles muitas senhoras de idade, correndo pela avenida, em direção à favela, barracos sendo empurrados aos trancos, todos tentando fugir da truculência da guarda municipal. Eu pensei: os traficantes, os bandidinhos da favela vão sentir, mais uma vez, que escolheram o caminho certo. É melhor infringir a lei e ganhar uma grana forte do que fazê-lo para ganhar a merreca obtida pelo comércio ambulante. Sim, porque o comércio ambulante é uma atividade de baixa remuneração. Em geral, o camelô obtém somente o necessário para sua sobrevivência, embora existam muitos, mais talentosos e esforçados, que conseguem faturar uma grana razoável.

Meu ponto-de-vista é que a guarda municipal, ao reprimir de forma truculenta, sem aviso prévio, sem campanhas de esclarecimento, pratica um crime contra a humanidade e uma estupidez política escandalosa, pregando no Estado a pecha de inimigo do povo. Quem pagará a conta serão os policiais mortos por conta do ódio gratuitamente gerado. E nós que pagamos o enterro dos policiais e a diária nos presídios dos criminosos. Entendo que há casos em a repressão é necessária. Mas ela deve ser feita sem truculência e, no caso de recolhimento da mercadoria, a mesma deve ser integralmente devolvida a seu dono, não importando se os produtos têm ou não nota fiscal. São produtos que pertencem ao camelô. Quem pode, eventualmente, confiscar o produto por não possuir nota, é o fiscal, um funcionário especializado, que estudou e fez concurso para essa função, e não a Guarda Municipal. O produto só pode ser apreendido depois de um processo legal e transparente. Se não há estrutura para isso, então não recolham os produtos, ou devolvam-nos rapidamente, para não prejudicar a vida já difícil do camelô, que tem filhos e precisa alimentá-los. Alguém dirá: não importa! A lei tem que ser cumprida! Não é assim, neném. Existe um nome horrível para quem pensa assim: leguleio, aquele que, segundo o Aurélio, interpreta à letra e servilmente a lei, sem atender ao espírito e intenção do legislador. Ou seja, a lei foi feita com um espírito nobre, de justiça social. Ninguém escreveu lei pra guardinha municipal espancar camelô.

Há muitos anos, no Catete, existem sebos de rua. São sebos maravilhosos, que vendem clássicos da literatura a preços módicos. Frequento esses sebos desde que me entendo por gente. Tenho, inclusive, até usado estes sebos para abastecer minha livraria virtual, o Gonzum Livros. Não ficam diariamente por lá, apenas no domingo. Pois é, outro dia, estava eu por aquelas bandas, na companhia de um casal amigo de São Paulo, e disse a eles que lhes mostraria os melhores sebos de rua do Rio, onde era possível adquirir bons livros, de capa dura, por R$ 1,00. Para minha surpresa, não havia mais sebo nenhum. O choque de ordem proibiu tudo. Eles foram os primeiros a sumir do mapa porque sua mercadoria, pesada, não pode ser recolhida rapidamente. Acabar com os sebos mais populares, que constituíam já uma tradição no Catete e Largo do Machado, é outra grosseria incompreensível. Deviam patrociná-los, não combatê-los!

As areias da praia do Flamengo, onde havia, de cem em cem metros, barraquinhas de bebidas, agora estão desertas. Ao redor destas barraquinhas, que também disponibilizavam, gratuitamente, cadeiras de praia para os clientes, reuniam-se pessoas. Alguns trabalhavam ali há mais de vinte anos. O choque de ordem do novo prefeito do Rio, Eduardo Paes, recolheu a mercadoria de todo mundo e proibiu qualquer atividade na área.

O que as autoridades deveriam fazer é entrevistar os camelôs, cadastrar todos, abrir linhas de crédito, concederem autorizações e licenças, enfim, usar essa gente empreendedora, trabalhadora, em prol da geração de empregos e do desenvolvimento econômico da cidade. O que não pode é lhes puxar o tapete, empurrando-os para o desespero, que por sua vez conduz à criminalidade. Se fossem ajudados pela prefeitura, todos os camelôs se tornariam parceiros, teriam mais lucro e poderiam ser inclusive incorporados ao sistema formal de trabalho, pagando impostos.

Os locais onde os camelôs atuam sempre são mais seguros, porque os próprios cuidam de afastar delinquentes, que por razões óbvias atrapalham os negócios. Os camelôs são adversários naturais do assalto a transeuntes.

Nas eleições do ano passado, Eduardo Paes enfrentou o deputado federal Fernando Gabeira. Gabeira talvez não fosse um mau prefeito, mas estava aliado à direita e daria palanque para a direita retomar as rédeas do país em 2010. Lembro de uma crônica do Mauro Santayanna em que ele conta a conversa com um pequeno comerciante de uma cidadezinha mineira, que, apesar de não gostar de um candidato X, votou nele porque ele fazia parte da aliança que apoiava Juscelino Kubitschek e ele, como cidadão brasileiro, pensava no país e no mundo. Pensava num universo maior.

Por isso não votei no Gabeira e apoiei Eduardo Paes. Entretanto, por receber apoio da mídia e se colocar como anti-Lula, além de outras características (aparentemente) libertárias, Gabeira recebeu apoio irrestrito da reacionária zona sul carioca, obtendo mais de 80% dos votos na região. Com a derrota de seu candidato, a zona sul recebeu o novo prefeito, Eduardo Paes, com sua costumeira hostilidade. Lembro de ter conversado com pessoas totalmente histéricas, por causa da vitória de Paes. Não aceitavam a derrota. Fizeram passeata na Cinelândia contra o resultado eleitoral. Uma conhecida minha, num papo informal de botequim, literalmente rogou uma maldição sobre a cidade, afirmando que o Rio de Janeiro iria sofrer consequências terríveis por conta de sua má-escolha.

Não acho isso. O leque de alianças políticas em torno de Eduardo Paes produzirá, provavelmente, resultados muito positivos para a cidade. Mas ele, Paes, é uma pessoa politicamente limitada. Sua aproximação com a esquerda é notoriamente oportunista. Por isso mesmo acho que a esquerda carioca tem a obrigação de, por sua vez, também "usar" Paes, ou seja, influenciá-lo construtivamente, para impedir que ele deixe aflorar seu lado mais reacionário, como é o caso de sua campanha burra contra o comércio ambulante. Os partidos de esquerda do Rio de Janeiro devem assumir posições coerentes com suas próprias plataformas políticas. A Jandira Feghalli (PCdoB), por exemplo, sempre se posicionou de forma bem clara contra a truculência exercida sobre os ambulantes e, quando candidata à prefeita, prometeu estabelecer uma relação de parceria com eles. Agora é secretária de cultura de Paes. É uma força política dentro da máquina. Ótimo. É um sinal de que há gente, dentro do governo, insatisfeita com a política de repressão ao ambulante. Essa tensão interna deve ser estimulada para convencer o prefeito a mudar. Os partidos devem se manifestar. Sem deixar de apoiar Paes, devem ser duros em seu questionamento. É assim que, a meu ver, se faz política.

O prefeito disse que não tocará no comércio ambulante da Lapa antes do carnaval. Somente depois. Ora, mais uma prova de cinismo e estupidez. Ele admite a importância social e econômica do comércio ambulante, o qual, longe de atrapalhar o comércio formal, ajuda-o a faturar diariamente, já que as pessoas sempre vão preferir beber sua cerveja sentados em mesas, confortavelmente, e ao mesmo tempo, sempre preferem frequentar lugares animados, com gente bonita e jovem desfilando pra lá e pra cá. O comércio ambulante ajuda a encher a Lapa, e ocupa os espaços. A criminalidade na Lapa é baixa. Existe, claro, mas é baixa. Enfim, o que o prefeito quer? Quer "usar" o camelô, que anima o centro, e depois descartá-lo? Será um tremendo tiro no pé. Não será o primeiro nem o último prefeito a atacar os camelôs. Lembro que vi, numa dessas exposições, uma charge do início do século XIX mostrando um ambulante fugindo do "rapa". A Lapa mesmo já foi alvo de repressão anti-ambulante por diversas vezes. Como morador do bairro, posso atestar. O resultado sempre foi negativo. A um comércio ambulante estável, organizado, tranquilo, sucedia-se o banditismo desenfreado. Às ruas cheias de música e diversão inocente, sucediam-se ruas escuras, sinistras, tomadas por traficantes perigosos. E por fim os camelôs sempre voltam. Voltam e dão estabilidade e segurança às ruas. Mas voltam, sempre. Prefeitos passam, os camelôs ficam. Por quê? Por que o camelô é uma atividade econômica consagrada no Rio de Janeiro e em todo Brasil. Um dia, no futuro, será uma profissão regulamentada no Ministério do Trabalho, farão estátuas em sua homenagem e o Congresso instituirá o Dia Nacional do Camelô.

Vou dizer mais uma coisa: eu quero que o país se desenvolva e as cidades brasileiras se tornem mais seguras e organizadas, como as cidades do primeiro mundo. Mas não quero que elas sejam chatas como as cidades do primeiro mundo. Quero que a alegria e a loucura da Lapa, das noites cariocas, do Brasil, continue, porque, afinal, não somos europeus frios nem americanos sem-graça, somos um país, como ensina Jorge Benjor, tropical, abençoado por Deus, e bonito por natureza. Portanto tirem as mãos de cima dos ambulantes, políticos fascistas!


(Link original da imagem)

7 comentarios

josaphat disse...

Do caramba, Miguel!
Aqui em BH, há alguns anos os camelôs foram, todos os que comercializavam eletrônicos e similares, concentrados em shoppings populares, que teem muito movimento e são, já por consenso, de confiança. Há, inclusive, pequenos shoppings, magazines variados como já vi em São Paulo. Os camelôs que vendem bebidas, sanduíches e refrigerantes próximo a eventos, óculos, acessórios para autos, balas, água, entre outros pequenos produtos pelas ruas e, em especial, nos sinais de trânsito, continuam a fazer seu comércio por toda a cidade. Não há perseguição. E você tem toda a razão, as pessoas gostam, é prático e, nos dias muito quentes, por exemplo, é fácil comprar-se uma água sem sair do carro em qualquer esquina mais movimentada da cidade. Há os ambulantes registrados, que teem privilégios é claro, e os informais e mais efêmeros. Todos convivem bem. Era bastante complicado quando TODOS ocupavam as ruas do centro onde não se podia mais andar. A gente andava na rua. Dias de chuva, como quase todo o verão, era uma loucura. Hoje está bem melhor. Não é um problema para a cidade. Mas BH não é o Rio e, há duzentos anos, por aqui só havia uma fazendinha aqui, outra ali.

Anônimo disse...

Você ajudou a eleger esse Eduardo Paes, lembra?

Miguel do Rosário disse...

Lembro. Se você ler o texto, verá que eu lembro. Mas se elegesse Gabeira, seria muito pior. Além de sentar o cacete no camelô carioca, daria espaço para o Serra sentar o cacete nos camelôs do Brasil inteiro! Pior: como o Brasil é líder natural no continente, daria impulso a um retrocesso em toda a América Latina!

Pelo menos a fera está presa aqui em casa, e não solta no meio da multidão!

Anônimo disse...

Miguel,
esse tal "choque de ordem" é o preço que Paes paga para ter as Organizações Globo a seu lado. O mesmo acontece com o governador, na questão da segurança pública.
Um abraço,
AM

Miguel do Rosário disse...

Pois é Mello, tô ligado. Que praga, héin? Mesmo quando o candidato deles não é eleito, eles conseguem pautar a política do Rio. Tô ligado que o Cabral também faz o joguinho dos Marinho, e fiquei igualmente revoltado com isso. A política de segurança pública do Cabral é ridícula, mas o Globo, sádico, aplaude. Abração.

Anônimo disse...

Poxa, o próprio Sílvio Santos, carioca, começou como camelô! Vendia canetas aí nas ruas do Rio. Quando isso? Em 1944, mas seu post já lembrou que desde o século retrasado o Estado usa sempre as mesmas políticas sociais nessa questão e nada é resolvido. Aqui em Sampa, a primeira prefeita que agiu com civilidade nessa questão foi Luiza Erundina, dando liberdade ao comércio informal - mas como sempre, a classe mérdia daqui, juntamente com a burguesia e a mídia, não tiveram o mesmo entendimento de que, se é tirado do povo a alternativa do comércio informal, invariavelmente desemboca-se no crime; e nos governos seguintes de direita, Maluf, Pitta, a solução voltou a ser aquela dos "aposentados fascistas": o 'rapa'. Miguel, vejo aí interesse político dos prefeitos reaças em não cadastrar os camelôs, transformá-los num estrato organizado da sociedade de consumo. Quem financia as campanhas desses prefeitos? Boa parte do grande empresariado do comércio formal. Esses caras não querem permitir que outras pessoas também comerciem, não querem "competição" (totalmente desigual) pois talvez fiquem preocupados com seus lucros e movimentos nas lojas (como se já não bastasse) e camelôs irão "prejudicá-los" (coitados...) O candidato deles, se eleito, por sua vez reprime. E assim vai...

Pedro Gomes Barbosa disse...

Eu acredito que a guarda-municipal tenha um papel fundamental na cidade. Mas na conservação de parques e jardins. Existe uma instituição chamada Polícia, ou , mais conhecida como PM, que atua na conservação da lei e da ordem. Não acredito que precisemos de tanta fiscalização por parte do poder público. Precisamos sim, de colaboração, respeito e cumplicidade e educação, pra vivermos com mais qualidade de vida.

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