19 de dezembro de 2008

O calote na América Latina

Por João Villaverde

No dia 02 de dezembro, o presidente do Equador, Rafael Correa, anunciou que estava estudando a possibilidade de não honrar sua dívida de US$ 462 milhões com o BNDES. Nove dias depois, anunciou a moratória de US$ 30,6 milhões de sua dívida externa. Ao todo, não dá 500 milhões de dólares.

A interpretação feita aqui no Brasil foi de novo ataque de um "amigo" latino-americano, no caso do BNDES, e de um movimento "populista", no caso da dívida externa.

É uma visão ultrapassada. O calote é um ótimo negócio.

A dívida externa do Equador é pequena em valores totais. Ao todo são US$ 1,3 bilhões. Isso é um contracheque para qualquer grande empresa brasileira. Mas proporcionalmente, é um grande valor para o Equador.

Parte dessa dívida é absolutamente discutível. Os tais US$ 462 milhões do BNDES, por exemplo. Quem tomou esse dinheiro emprestado foi uma empresa, que não cumpriu seu cronograma de obras no país vizinho. O que Rafael Correa fez foi pressionar para que o contrato fosse cumprido. Aliás, ele não deu o calote. Apenas disse que estava analisando a possibilidade. Continua pagando a parcela de juros ao BNDES.

Todo o estardalhaço tinha endereço, o mesmo desde 2003: caracterizar Lula como incompetente e ineficiente. Como Rafael Correa faz parte do novo movimento de esquerda que está no poder na América Latina, o tiro acerta dois alvos de uma só vez. Lula é burro e os esquerdistas latino-americanos são populistas.

Nada se fala dos avanços sociais e representativos que a Bolívia, a Venezuela, o Equador e mesmo a Argentina, no biênio 02-05 experimentaram. Não é uma questão de barrar qualquer crítica a Evo Morales, Hugo Chávez (que enfrentará um período muito difícil a partir de 2009), Rafael Correa e Kirchner (que a partir de 2006 mudou todo o rumo). Mas há de se ter critério e coerência.

Parece pedir muito de nossa imprensa e elite política e empresarial, eu sei.

O calote de US$ 30,6 milhões anunciado pelo Equador em 11 de dezembro último é irrisório. Se trata de uma dívida contraída por governos anteriores sem qualquer legitimidade. A idéia do cupom Global 2012 (os tais contratos que somam US$ 30,6 milhões) era financiar a banca privada internacional. O Equador não precisava do dinheiro quando tomou emprestado anos atrás. Não só não precisava como gastou errado: o dinheiro fora usado para pagar juros de outras dívidas. Portanto se trata de uma dívida totalmente discutível, e é isso o que Rafael Correa fez.

Ao anunciar o calote, o país suspende automaticamente o pagamento de juros mensais e o comprometimento de ainda pagar a dívida principal. Sobra mais dinheiro para investimentos importantes - como, por exemplo, construção de escolas e hospitais públicos.

E o calote não precisa ser levado às últimas consequências. Nunca é. se trata de um choque moral - antes de financeiro - nos credores. Com o medo do outro lado, aumentam as chances de uma renegociação super benéfica para o país lesado. Nesse caso, o Equador pode acabar negociando com os donos do Global 2012 por um pagamento 70 ou 80% menor e com juros baixíssimos.

Foi o que Kirchner fez nos primeiros três anos de seu governo na Argentina. Tinha um ministro da Fazenda muito hábil, Roberto Lavagna, que tratava de estudar e negociar com todos os credores, analisando contrato por contrato, situação por situação, tendo as limitações de caixa debaixo dos braços - funcionando como fator limitador dos pagamentos. Ao mesmo tempo, o presidente Néstor Kirchner dava todo o apoio político, funcionando como o anteparo para as críticas da imprensa elitista nacional e internacional.

Funcionou perfeitamente por três anos. A dívida externa e interna da Argentina foi cortada absurdamente. Quase 85% dos credores aceitaram os preços que o governo estava disposto a pagar. Os que não aceitaram estão até hoje sem receber, com os processos rolando em tribunais internacionais. Ao mesmo tempo, Lavagna desenvolveu uma política cambial inteligente, depois que a dolarização destruiu a economia argentina em 2001. O peso foi desvalorizado e fixado informalmente, aumentando a produtividade da indústria interna.

Boa parte disso foi jogado fora a partir do fim de 2005. Mas isso é outra história.

O calote do Equador também não vem sozinho. Rafael Correa não esconde de ninguém sua intenção de acabar com a dolarização, instituída no país em 2000.

A questão do calote também está pesando nas discussões entre Brasil e Paraguai, em torno das usinas hidrelétricas de Itaipu. O novo presidente do Paraguai, Fernando Lugo - que automaticamente entrou na mira da imprensa e da classe político-empresarial do Brasil - afirmou sua vontade de rever os contratos assinados com o Brasil, que criaram a Itaipu em 1973.

Em 1973 o Paraguai vivia a ditadura de Strossner (ditador entre 1954 e 1989). O Brasil estava na sua ditadura militar, e o general no poder era Garrastazu Médici. Não é preciso dizer mais sobre o clima político que gerou Itaipu.

A obra e a empresa - afinal, Itaipu é uma empresa, bom lembrar - alimentaram uma elite política no Paraguai que enriqueceu e se manteve no poder por todo esse tempo. Mesmo depois da saída de Strossner, o partido Colorado (que sustentava a ditadura) continuou no poder, agora vencendo "eleições" (são conhecidas até no mundo mineral as históricas de falcatruas e assassinatos envolvendo a "democracia" paraguaia). A vitória de Fernando Lugo, neste ano, tirou os colorados do poder após 61 anos.

Mas e dái, certo? Afinal, Lugo é "populista".

O pensamento pequeno ignora outras questões que cercam Itaipu. Não é de hoje que forças de esquerda paraguaias questionam o contrato que criou Itaipu. Questionam a 35 anos. Mas finalmente elas alcançaram o poder, tirando de lá "los barones de Itaipu", conforme a própria parcela privilegiada do país se referia a classe de estrategistas.

De maneira prática, o que se coloca é o seguinte:

- Toda a política gerencial de Itaipu é feita por brasileiros. Ou seja, é tecnicamente impossível que o Paraguai dê um calote no Brasil. Quem controla os pagamentos mensais de compensações sãos os próprios brasileiros!

- A gritaria que se forma é que o Brasil já fez sua parte, ao assumir praticamente sozinho os empréstimos externos para construir a usina, que é, até hoje, a maior hidrelétrica do mundo (será suplantada apenas agora, pela hidrelétrica Três Gargantas, na China). Os empréstimos que o Brasil dos militares tomou nos anos 70 para levantar Itaipu depois seriam mortais para o Brasil, durante nossa grave crise da dívida dos anos 80.

Existem uma série de fatores para serem levados em conta, não apenas o reducionista e ridículo argumento de que o calote, seja do Equador, seja do Paraguai, "ferem a soberania nacional".

Os blockbusters de Hollywood ferem mais nossa soberania nacional do que as negociações com Correa e Lugo!

14 comentarios

Anônimo disse...

PROTÓGENES NO RODA VIVA
22/12/2008 - Ao vivo às 22h10

PROTÓGENES QUEIROZ
Delegado da Polícia Federal

Entrevistadores: Ricardo Noblat, colunista do jornal O Globo e titular do Blog do Noblat; Renato Lombardi, comentarista do Jornal da Cultura; Fernando Rodrigues, colunista e repórter do jornal Folha de S. Paulo em Brasília e Fausto Macedo, repórter de política do jornal O Estado de S. Paulo.

Apresentação: Lillian Witte Fibe
fonte: http://www.tvcultura.com.br/rodaviva/

João Villaverde disse...

Cancelaram o programa que estava marcado com o historiador Carlos Gulherme Mota para fazer com o Protógenes. Jornalísticamente é a coisa certa a ser feita, mas não deixa de parecer feito em cima da hora, como justificativa pela lambança que foi o Roda Viva da última segunda, com o Gilmar Mendes.

Anônimo disse...

SOMOS UMA INVENÇÃO!

19/12/2008 - 18:03 - Blog do Nassif

Gilmar Mendes e os Blogs

Por Dinha
Muito interessante:

Gilmar Mendes em coletiva hoje no STF, disse que os blogs - de sua oposição - inventam leitores. Que esses comentários nos blogs que o criticam são fictícios. Armados.

Segundo ele, Paulo Markun , durante entrevista na TV Cultura, disse estava preocupado com protestos e manifestações na porta da emissora , por conta da entrevista dele no programa.

Gilmar Mendes disse ao Markun : ” Essa gente não lotaria nem mesmo uma Kombi”.

PS: De certo a referência dele é a das Kombis que a Folha emprestou para a ditadura…

Adicional com algo do tipo, aquele é um mundo surreal e sem importância. Ou seja, o dos comentaristas e leitores de blogs.

Disse ainda que a Carta Capital ( sem dar o nome) é financiada e aparelho de Estado.

Afinal, quando é que os blogueiros vão fazer um movimentos para o MOSTRE A SUA CARA ALÉM DO COMPUTADOR?

Acho que deveríamos unir os blogs , lotar e plotar algumas Kombis e em comboio e dar as caras para bater na porta do STF.

Poderíamos plotar as KOMBIS do povo com a frase: NADA SURREAL , AINDA QUE REALMENTE INDIGNADOS

Posso até ver o presidente do Supremo fugindo como o leão da montanha em seu carro chapa branca - que longe está de ser uma kombi.

Fica a idéia para 2009

Enviado por: luisnassif - Categoria(s): Mídia

reginacarioca disse...

Parabéns João. Eu estou acompanhando este assunto com muito interesse mas só ouvia gente falando mal deles e de nós. Agora uma voz esclarecedora sobre o assunto. Gostei demais. Obrigada.

João Villaverde disse...

Legal, Regina, obrigado. Fala-se mal de tudo e de todos por interesse, mas também tem muito desleixo no meio. Falta disposição para estudar. Na ponta, o leitor forma opinião da pior maneira possível.
Fico feliz que tenha gostado. Bjs

RLocatelli Digital disse...

Pois é, João, essa atitude da elite junto com a velha mídia é uma canalhice.
Já deixou de ser ideologia. Como disse o Nassif numa entrevista sobre a mídia, é desonestidade mesmo.

Anônimo disse...

É de fato assustador a forma que a mídia está tentando usar as mesmas fórmulas básicas que a mídia americana se utiliza contra seu povo para instigar ódio, resentimento, xenofobia e a criação de bodes expiatórios para quebrar a integração sul-americana (nem se fala direito da reunião em Salvador). Repete-se imagens (quase posadas e pedidas pelo fotógrafo basicamente) de pessoas queimando a bandeira do seu país, cria a falsa noção de que há ódio pelo seu país (logo, seu povo - e devemos odiar "de volta" e agir de acordo), que os outros países estão num inferno horroroso que te odeiam (e que no mínimo cuspiriam na sua cara se viajasse para lá) e criando conflitos que caem no nosso lado da cerca (não são os separatistas da elite racista na Bolívia, são as "políticas desequilibradoras" de Morales etc). Estão almejando o sub-imperialismo das bananas.

E é sempre a mesma história: o interesse pelo povo é nacionalismo (bobo e otário, claro, do povo contra privatizações). A xenofobia é patriotismo (certo e sábio).

João Villaverde disse...

Mas a xenofobia, Matias, é interesseira. Veja que apenas Chávez, Correa e os outros "populistas" latino-americanos são influências ruins para o Brasil. Não é assim com os Estados Unidos ou com países europeus.

Locatelli, é uma questão de mercado, acima de ideologia. Perceba que o consumidor - e não leitor, é importante notar a diferença semântica - dos grandes meios de comunicação dividem a mesma perspectiva: Lula é burro, os latino-americanos hoje no poder são oportunistas e populistas, e os Estados Unidos são melhores em tudo.
Claro, a ideologia existe sim e é muito forte ainda. Mas o fator preponderante é o mercadológico, de responder aos anseios do público consumidor.

Unknown disse...

Caro Villaverde, gostaria que você pudesse explicar com mais detalhes o caso de Itaipu, principalmente a parte que envolve dados financeiros, desde a sua criação até os dias atuais. É um assunto que sempre surge nas conversas com o pessoal que tende para a direita, e é sempre bom termos argumentos mais sólidos para contrapor às idéias daqueles que só se informam pelo PIG. Agradeço desde já.
Abraços
Luiz Albuquerque - Florianópolis

Anônimo disse...

João,

exato. Concordo. Eu estava descrevendo a ideologia por trás desse discurso que se repete em círculos que tentam justificar centros de poder ilegítimos (sentimentos de xenofobia = "patriotismo", o recurso usado para roubar o povo. Anti-privatização = "nacionalismo boboca"). O interesse é quebrar qualquer tentativa de integração sul-americana (e se nisso tudo der para difarmar as idéias e políticas de tais figuras anti-elites ao chamar Chavez de "ditador" ou o outro de "demagogo", é bônus. Porque as idéias que devemos copiar e glorificar é a dos "avançados mestres", devemos pagar pau pro "consenso de Washington" e outras balelas) para que os países fiquem bem prontinhos para interesses de multinacionais ("divide and conquer"). Neoliberalismo em andamento.

João Villaverde disse...

Caro Luiz Albuquerque:
Itaipu é uma empresa bi-nacional, portanto, ambos Brasil e Paraguai dividem o controle operacional. Quando Brasil e Paraguai assinaram o acordo que criaria a empresa em 1966 ficou estabelecido que a empresa deveria correr atrás do dinheiro para levantar a usina. Ficou estabelecido também que o controle das operações seria de brasileiros. Portanto, a partir de 1973, Itaipu foi atrás de financiamento. Quem concedeu foi um pool de empresas (todas brasileiras), mas a principal emprestadora foi a Eletrobrás, empresa estatal. Como foi o empréstimo? A Eletrobras entrou com parte de capital próprio, mas a maior parcela do dinheiro foi conseguido por empréstimo internacional que a Eletrobras tomou. Esse empréstimo internacional - como quase todos que o Brasil tomaria depois no segundo PND, no governo Geisel - explodiu quando os juros americanos subiram aos céus a partir de 1980. E quem arcou com isso foi o Brasil.
Aí está o principal argumento daqueles que não aceitam uma renegociação com o Paraguai.
A dívida para construção da usina, portanto, não foi assumida por governos, mas pela empresa binacional criada para gerir Itaipu. Hoje ela paga cerca de US$ 1 bilhão por ano à Eletrobras, sua principal credora, e a estatal tem contado com esse dinheiro para cumprir suas metas de superávit primário, contabilizado pela União. Aí está o argumento subterrâneo, não colocado de maneira clara publicamente, por aqueles que supostamente defendem nossa soberania nacional. O xeque-mate está aí: o dinheiro que o Paraguai paga regiamente ao Brasil é usado para formar o superávit primário, que é o colchão que o governo faz todo ano para pagar juros de nossa dívida interna.

Anônimo disse...

João,
Surpreende-me ter 52 anos de idade, e ser eu um socialista, e ter em Vc um menino ( sua apresentação diz ter 21 anos )e aprender com Vc.
Show de bola a sua frieza nas análises, e mais sua postura sempre procurando ser imparcial como toda a mídia apocalíptica do Brasil deveria ser.
Parabéns!
Gostaria de ler sobre a crise 1929 e a crise de hoje.
Um grande abraço

Anônimo disse...

Como tenho 52 anos eerei na assinatura perdoe-me quero me identificar

Anônimo disse...

Como tenho 52 anos eerei na assinatura perdoe-me quero me identificar

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