(esse é um conto publicado no Paralelos, nesse link. Publico aqui igualmente para guardar no arquivo.)
Claro que conheci Arlindo Cavalcanti. Tinha uns trinta anos, mais ou menos, magro, cabelos negros, crespos, sempre desalinhados. Olhos vivos, arregalados, e pele morena, quase negra. Costumava vir aqui todos os dias, para tomar um aperitivo antes do almoço, e voltava à noite, para ver o jornal nacional. Dependendo da disposição e da situação financeira, ficava até de madrugada. Seu Luiz não tem hora para fechar o bar, “até o último cliente” é seu lema. Os clientes na verdade não são muitos, a maior parte homens do acampamento que se reúnem para discutir política e contar histórias. Eu moro perto e venho sempre, atrás de uma conversa e de uma cachaça. Estou desempregado, mas minha esposa trabalha na prefeitura e consegue sustentar a casa. Às vezes faço um biscate por aí, principalmente de eletricista ou mecânico. A região é muito pobre e quase não tem gente com segundo grau completo. Coisa boba, consertar um fusível, dar um jeito no motor de um carro velho. Tenho instrução, estudei em São Paulo, tive alguma condição, mas faltou sorte. Fiz de tudo na cidade, fui auxiliar de escritório, office boy, camelô e ator de um grupo mambembe lá da boca do lixo. Tentei ser poeta. Até me endividei e acabei me enrolando com um credor pilantra do brás. Depois que meu pai faleceu, vendi um pequeno imóvel que recebi de herança e comprei um terreno aqui no norte de minas, onde minha mulher tem família e conseguiu logo um emprego. O Arlindo era meu amigo e também quero ver os filhos-da-puta que o mataram na cadeia. Mas acho que o mais importante é pegarem o mandante do crime. E eu já posso lhe adiantar quem foi: Onofre Cavalcanti. Não, não é parente do Arlindo. Onofre é de uma família rica da região. Dizem que é proprietário de mais de vinte fazendas, que somam mais de trinta mil hectares aqui no norte de minas. Você vai fazer uma reportagem? Para onde? Que isso? Saite na internet? Claro que sei o que é internet, mas é que isso ainda não chegou aqui e a gente vai ficando desinformado. Bem, espero que a reportagem ajude a pressionar as autoridades a investigarem o crime. O pessoal do acampamento está desesperado. Arlindo era um grande líder, amado por todos, e diziam que ele se tornaria em pouco tempo o maior líder rural do norte de minas. Uma vez veio um pessoal da televisão entrevistá-lo, mas a gente não viu a reportagem. Acho que era de um canal estrangeiro.
Lembro da última cachaça que ele tomou aqui. Eu estava sozinho, conversando com seu Luiz e bebendo um golinho. Isso foi há uns dois meses, em agosto. O sol rachava a vista e eu vi aquele vulto se aproximando. Só reconheci quando ele entrou no barracão, fugindo do calor. Pediu um copo d’água e logo uma branquinha. Estava com uma expressão séria, preocupada. Demorou para falar, até que me cumprimentou com uma voz estranha “como vai seu Antônio?”. Depois continuou calado, o que nos perturbou. O sertanejo da região é caladão, mas quando entra neste recinto, solta o verbo, principalmente Arlindo, discursador, contador de caso, homem capaz de falar com mais de mil pessoas por mais de hora, sem ajuda de microfone. Como disse, tinha a expressão carregada, angustiada. A cara dele estava até roxa. Tomou outra dose. Olhou para a gente com um olhar meio louco. Aí eu e o seu Luiz ficamos preocupados. Perguntei “aconteceu alguma coisa meu cumpadre?”. Ele não respondeu, apenas me olhou com uns olhos grandes, febris, onde a gente podia ver muita tristeza e revolta. Eu logo desconfiei do que era. O acampamento tinha crescido muito nas últimas duas semanas. De uma hora para outra começou a chegar gente todo dia, principalmente montesclarenses, gente miserável, sem moradia, carregando somente umas tralhas e a roupa do corpo. Em pouco tempo, o acampamento quase duplicou de tamanho. Os fazendeiros, que já estavam ansiosos, ficaram em pânico. A área ocupada do acampamento pertencia a um senhor que morava em Belo Horizonte, mas conforme aumentava o número de gente, as propriedades vizinhas também começaram a ser invadidas pelos barracos de lona e bambu e pelos cultivos de arroz, milho, feijão e mandioca. A gente via os jagunços chegando à cavalo, indo em direção à sede da fazenda de Onofre Cavalcanti, que era uma espécie de líder dos fazendeiros. A tensão estava crescendo demais, isso qualquer um podia ver. Arlindo tomou um gole, me encarou e disse: “Antônio, acho que vou morrer”. Que é isso, bate na madeira, deus te livre, um homem jovem como você!
É sim, Antônio, os homens me ameaçaram de morte se a gente não abandonar o acampamento e você sabe que é impossível voltar atrás. Ainda mais agora que o processo de desapropriação está quase saindo. Mais um pouco e a terra será nossa. Mas eu acho que não vou estar aqui para festejar. Este Onofre é um louco, vive me mandando recados desaforados, me ameaçou várias vezes. Mas agora é sério. Os empregados da fazenda dele ouviram coisas e nos contaram. Eles contrataram matadores em Montes Claros, uns jagunços afamados, que cobram caro mas não deixam o serviço pela metade. Minha mulher está desesperada, quer fugir, mas eu não posso. Essa gente precisa de mim. Se eu tiver que morrer, que seja.
“Porra, Arlindo, você quer se tornar um mártir! Isso está fora de moda!”, gritei. Estava nervoso e, confesso, até com medo. E se os jagunços entrassem no barraco de seu Luiz e nos matassem a todos? Indignei-me. Aqueles pobres não tinham para onde ir. A cidade não oferecia emprego, moradia, nada. Ali eles tinham esperança de ganhar um pedaço de terra para criar galinhas e plantar. Estavam se organizando, montando uma cooperativa para ter acesso aos financiamentos do governo. Tinham improvisado uma escola, onde estudavam crianças e adultos. A merda daquelas terras não eram usadas para porra nenhuma. Os fazendeiros ficavam só especulando, arrendando uns terrenos aqui e ali. No povoado mesmo onde eu moro com minha mulher a maioria dos habitantes não era dono de nada, a não ser uns pedaços de chão seco, imprestáveis. A terra estava toda nas mãos dos Cavalcantis, dos Nogueira e dos Cardoso. A família da minha esposa era uma exceção, tinha um pequeno sítio com um corregozinho, mas queria vender para algum fazendeiro, porque o preço da terra estava muito alto, por causa da especulação que eles estão fazendo. Estão divulgando por aí que a terra aqui é excelente para o cultivo de algodão, convenceram muitos fazendeiros de outros estados a comprarem terra aqui, o que inflacionou o preço da terra. Mas é tudo propaganda, especulação imobiliária. O preço da terra sobe e ninguém consegue mais comprar um chão para plantar e viver. E os poucos que possuem alguma coisa, como a família de minha esposa, se deslumbram com a oportunidade e se desfazem do que tem. Está tudo errado.
“Antônio, queria te pedir uma coisa. Se eu morrer envia esta carta para um amigo meu lá do Rio, está aqui o endereço. Ele é jornalista e vai denunciar o crime no país inteiro. Vão começar a aparecer repórteres para investigar o que está acontecendo por aqui. Só aí é que o processo de desapropriação vai sair do papel”. Ele tomou mais uma cachaça e foi embora. Eram quatro horas da tarde e o sol faíscava com força nas pedrinhas do chão. Não apareceu mais. Ficamos sabendo de sua morte pelos jornais. Foi assim. Pode escrever aí. Foi Onofre Cavalcanti, o fazendeiro, quem mandou matar Arlindo. Engraçado isso, os dois terem o mesmo sobrenome. A mulher dele, do Arlindo, assumiu a liderança do acampamento. Isso aqui agora vai virar um campo de batalha. Anota o endereço do seu saite num pedaço de papel. Qualquer dia eu vou a Montes Claros, lá tem internet e então eu tento encontrar a reportagem. Luiz, bota mais uma aqui pra gente!
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MIGUEL DO ROSÁRIO
MIGUEL do Rosário nasceu em 1975, no Rio de Janeiro. Está escrevendo o seu primeiro romance, o qual deverá publicar no fim do ano. Foi jornalista especializado em café durante dez anos. Atualmente é editor da revista eletrônica e jornal Arte & Política, além de colunista do site Novae.
4 de dezembro de 2008
Arquivo: A última cachaça de Arlindo Cavalcanti
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