4 de dezembro de 2008

Arquivo: As flores abortadas de Mao

(Esse aí é bem antigo, de meados de 2003, da época que eu escrevia para a Novae. )

Porquê os intelectuais atacam Lula?

Começou antes do que eu imaginava. Mas não foi surpresa. O ataque virulento dos intelectuais, alguns ironicamente conhecidos como de esquerda só porque ajudaram a fundar, num remoto passado, algum partido progressista, vem munido de armamento pesado. Autores marxistas às pencas aparecem nas bibliografias, mas não o próprio Marx, nem Lenin, nem Gramsci, com suas desconcertantes atitudes revolucionárias, engajadas, desprendidas e construtivas. São autores novos, marxistas acadêmicos, modernos, sutis, com visão histórica do tamanho de um buraco de fechadura, sarcásticos e medíocres, que olham o mundo com desprezo e pessimismo, interpretam a conjuntura atual e a política mundial com o enfado de sorumbáticos críticos de arte.

Armados com este marxismo pós-moderno e inconformados com a falta de poder, os intelectuais da velha guarda protestam contra um governo de esquerda que lhes frustrou o sonho de se divertir com a economia nacional como se fosse seu brinquedinho. Presos ao noticiário de grandes jornais, onde são publicados diariamente seus artigos, não procuram perder tempo pesquisando argumentações contrárias às suas teorias. Bastam-lhes o apoio de um punhado de amigos, de preferência da mesma classe social, do mesmo sindicato, da mesma turma de chop de ipanema. E a glória nacional! A fama de serem publicados na Folha de São Paulo, no Estadão, em prestigiadas revistas políticas! Perguntar para uma pessoa do povo porque ela gosta de Lula, esse traidor? Nem pensar! Não entendem o povo ignorante, que vota em qualquer demagogo!

Na verdade, nota-se que a luta de classes no capitalismo moderno se dá somente entre a classe média e as classes populares, visto que as elites flanam intocáveis acima destes problemas menores. As classes populares oscilam entre a ignorância e o engajamento revolucionário. A classe média oscila entre direita e esquerda, de acordo com seus interesses. Em geral, os governos de direita pagam melhores salários aos funcionários públicos, mas têm a tendência de ir reduzindo cada vez mais o rol dos privilegiados, enquanto o governo de esquerda, historicamente, tende a buscar ampliar os benefícios a um número maior de pessoas, por exemplo, para os professores de ensino primário e secundário, que ganham uma insignificância. Sem universidades públicas populares, o povo não tem intelectuais que defendem seus interesses, enquanto a classe média os tem aos montes, versados nos mais diversos temas, filosofia, sociologia, história, artes, política, religião. Sentindo ciúmes de um governo que só fala em fome, reforma agrária, inclusão social e ganhando um inusitado apoio da direita, que antes lhes marginalizava, estes intelectuais põem-se a trabalhar incansavelmente para expor teorias que provam que o Brasil está inevitavelmente fadado ao fracasso.

A direita, proprietária dos meios de comunicação de massa, está na defensiva, e explora, com ar inocente, todas as contradições inevitáveis de um governo inexperiente. Inexperiente mas fortalecido pela intensa renovação ocorrida nos outros dois poderes da república, o judiciário e o legislativo, notadamente entre os postos menos graduados. E ainda assustado diante da responsabilidade de conduzir uma nação continental. Mais do que isso: responsabilidade de dar um exemplo mundial de que a esquerda pode ser absolutamente competente na gestão de um estado democrático de grandes proporções. Mas isso não importa para estes intelectuais, em geral obesos, idosos e amargurados, pelo menos no espírito. Eles querem destilar sua inveja inesgotável por aqueles que ocupam lugares de comando e que não lhes vêm tratando como gostariam. Isso acontece em todo lugar.

Quando o governo revolucionário de Mao-Tsé-Tung sentiu-se seguro e sólido no poder, nos meados dos anos 60, o líder iniciou uma campanha de incentivo à livre expressão, à arte e à poesia. Foi a campanha das flores. Livres para criticar, porém, a maioria dos intelectuais chineses começaram a publicar textos tão virulentos, amargos e ofensivos ao governo revolucionário, que ameaçaram desestabilizar politicamente o poder do partido comunista chinês. Mao pôde observar, então, com extrema lucidez, que o país só teria apoio dos intelectuais quando estes viessem do próprio seio do povo, com visão e experiência para entender os caminhos e descaminhos da revolução. Não foi fácil para ele, contudo, muito menos para o povo. Obrigado, pelas circunstâncias históricas, a exercer um poder quase imperial, acabou por submeter a China a um arriscado experimentalismo econômico, cujo resultado foram tropeços catastróficos que custaram milhões de vidas. Tivesse a oportunidade de uma transição mais tranquila, sem a inimizade constante das grandes potências militares, e com o apoio dos intelectuais e cientistas, a China poderia ter se tornado em pouco tempo uma poderosa república popular democrática. A mesma história foi vivida pela União Soviética e também por Cuba. Felizmente, os tempos são outros e os governos aprenderam a se utilizar muito bem, muitas vezes até bem demais, dos instrumentos de mídia e propaganda, sem haver mais necessidade de censura explícita ou repressão aberta.

Aliás, estes intelectuais têm fortes reservas para com todos estes exemplos de governo. Um governo de esquerda, para eles, é algo abstrato, teórico, uma quimera acadêmica que lhes vale bolsas no exterior, empregos na universidade e agora free-lances como pensadores de mídia. Eu mesmo já tentei justificá-los. Ora, criticando, eles, os intelectuais, ajudam o governo a se manter íntegro, ajudam o país a discutir exaustivamente todas as opções políticas que se descortinam nos horizontes do possível. Tudo bem, é o mesmo raciocínio do pai que bate no filho e pensa: assim ele vai aprender e se tornar homem. Mas não podemos ser complacentes em política enquanto crianças abandonadas morrem de fome nas ruas. É preciso tomar posição e incentivar o confronto, saudável, mas doloroso e mesmo perigoso, pois envolve poder, entre os diferentes pontos-de-vista. Amigos deixarão de ser amigos. Casais poderão se separar. Naturalmente, o amor poderá vencer também estas batalhas. Mas as idéias serão esclarecidas pelo sol implacável da história. Todas as discussões, confrontadas pelos acontecimentos, pelos fatos sociais, tornar-se-ão passado, e a verdade emergirá da prática política, da experiência dos povos na ingente tarefa de se auto-gerir.

Um outro país que vive uma situação com algumas semelhanças com o Brasil, e que acabou por servir de instrutivo exemplo, é a Venezuela. A linguagem incendiária de Hugo Chávez, que tanto agrada os ouvidos dos setores esquerdos da classe média, dos estudantes e do povo sofrido, acabou por colocar o país na beira de um golpe militar a la república de bananas, por sorte abortado pela lealdade dos oficiais da baixa hierarquia do exército. Chávez está promovendo profundas mudanças culturais e políticas na Venezuela, tomou iniciativas ousadas, como uma reforma agrária sem precedentes. Até que os intelectuais do país começaram a bombardeá-lo com citações de Hegel e Shakespeare, enquanto o acusavam de comunista e submisso aos interesses... de quem mesmo?

Graças a Deus não fomos infelicitados pela eleição de uma esquerda irresponsável que acabaria por jogar o país novamente nas mãos de políticos conservadores no pleito seguinte. Inflação e dólar dominados, juros baixando gradualmente, instituições financeiras estatais, como BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, em excelente forma, o Brasil está com o seu motor quase pronto para disputar a corrida global pelo desenvolvimento. E não faltará petróleo! Com a chegada, crescente a cada ano, de um enorme número de visitantes estrangeiros, o turismo sinaliza com a geração de milhões de novos empregos no país, coisa que tem que ser vista, não apenas pelo governo, mas pelos próprios empresários, principalmente os pequenos e médios, como uma oportunidade para pagar dívidas e fazer bons negócios.

O ataque dos acadêmicos ao governo Lula demonstra o quão pouco vale um diploma. Não pela crítica, que é importante que exista, mas pela falta de engajamento, senso de responsabilidade, e mesmo de solidariedade. Queriam um governo preocupado com o social e agora acusam o social de assistencialismo. Antes gritavam Fora FHC e FMI, agora gritam Fora ALCA, Lula e FMI, enquanto esperam, impacientemente, pelo dinheiro da previdência social. E assim passam a vida, escrevendo monografias que ninguém lê, dando entrevistas e publicando artigos agourentos. E nada como umas boas férias em Roma!

1 comentário

Vera Silva disse...

Miguel, ler este artigo 7 anos depois e encontrá-lo tão novo é fascinante.
O sucesso do governo Lula e Dilma no governo a partir de 2010 nos faz sonhar com a continuação da luta contra as distorções.
Para mim, criança, que vi minha mãe e avó chorando quando Getúlio morreu e que teve seus sonhos de cidadania despedaçados pela ditadura, é um refrigério tudo o que acontece desde 2003 e que promete continuar melhorando por mais 8 anos.

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