Há tempos que amigos insistem que eu lhes conte a verdade sobre o suicídio do governador, ou melhor, do ex-governador Antônio Menino. Estão convencidos de que eu - à época um de seus principais assessores - estou a par de toda a sórdida trama por trás daqueles famosos fatos acontecidos ao final da década de 90. Entretanto, temendo por minha segurança pessoal e de toda família, tenho sistematicamente negado qualquer informação à respeito.
Contudo, depois que a viúva publicou aquele hediondo (porém utilíssimo às futuras gerações) livro sobre a vida do falecido, e depois que chegou a meu conhecimento certa notícia vinda da Ásia que explicarei mais adiante, não há mais sentido em manter um silêncio para mim já insuportável. Além disso, a viúva, cujo objetivo ao publicar o livro foi simplesmente ganhar dinheiro às custas do vergonhoso estelionato eleitoral sofrido pela população, e financiar o seu milionário padrão de vida, acusa-me de ter sido cúmplice do ex-governador em diversas ações criminosas, como aquela em que ele mandou matar um promotor público que estaria muito próximo de descobrir-lhe os podres, ou ainda uma outra, em que o governador, mesmo sabendo da existência de um esquadrão da morte dentro da secretaria de segurança, procurou por todos os meios neutralizar qualquer tipo de investigação. Sem negar que o livro revela com justeza os principais ilícitos praticados por aquela triste administração, quero provar que a maior parte foi feita sem que eu tivesse deles (dos ilicitos) o mínimo conhecimento.
Em primeiro lugar, acho necessário esclarecer as razões que me levaram a tornar-me assessor de homem tão execrável. Bem, eu simplesmente não sabia que ele era assim. Nós pertencíamos à mesma congregação evangélica e participávamos de encontros religiosos onde a fé ardente em Deus parecia nos eximir de qualquer deficiência moral. É claro que eu conhecia seus objetivos políticos e, a bem da verdade, via-os com bons olhos, pensando em como seria bom ao nosso estado que pessoas com verdadeira fé em Deus assumissem o poder.
Durante os anos de 1997 a 1999, o governador desviou milhões de reais que haviam sido repassados para os cofres públicos pelo Banco Mundial para o programa de despoluição da baía de Guanabara. Eu descobri isso bem tarde, mas um pouco antes do caso estourar na imprensa. O que ninguém ficou sabendo foi que o verdadeiro motivo que levou o governador a cometer o suicídio não foi esse escândalo, e sim o que aconteceu no dia 15 de fevereiro de 1999, em pleno sábado de Carnaval. A viúva (aí explica-se o seu atual ódio pela memória do falecido), voltando inesperadamente de umas férias em Teresópolis, flagrou o marido na cama de um dos quartos do Palácio Guanabara com duas estagiárias do gabinete executivo.
Agora vamos à grande revelação, desconhecida da própria viúva. O governador, desesperado com o escândalo público e com o flagrante da esposa, chamou seus assessores mais próximos, entre os quais eu, e explicou o seu plano: forjaria a própria morte. Mandou que encontrássemos um cadáver indigente no Instituto Médico Legal e que trabalhássemos para que o acidente de carro fosse explicado como uma espécie de suicídio. Os jornais publicaram a carta de despedida do governador, tosca imitação da missiva final de Vargas. O carro foi lançado de um penhasco da serra de Teresópolis e explodiu contra as pedras. O corpo só foi reconhecido pela aliança de casamento, um anel de ouro, e alguns objetos pessoais que escaparam ao fogo.
O governador deveria estar, portanto, nesse exato momento, curtindo férias em alguma deslumbrante praia da Ásia. Uso o verbo no futuro do pretérito porque, segundo relataram-me fontes fidedignas, essa nefasta figura já não faz parte de nosso mundo. Pode-se dizer que foi vítima da fúria de Deus. Hospedado num luxuoso hotel do Sri Lanka, estava tomando uísque com água-de-côco na beira da praia quando notou que o mar recuava rapidamente. Teve tempo de beber ainda outras duas doses (a garrafa estava a seu lado), antes que visse, com horror, a onda gigante se aproximando. Ergueu-se com dificuldade da cadeira - desde sua simulada morte, engordara quase vinte quilos. Deu alguns passos em direção ao hotel, e foi tragado pela força terrível das águas. Seu corpo nunca foi encontrado.
25 de março de 2007
O menino
1 comentário
Quando o vi pela primeira vez, numa tarde chuvosa de Caxias, ele vendia laranjas junto ao muro da casa do pastor. Chorava muito, uns moleques o haviam roubado. Eu esperava o pastor chegar e vi tudo. Aproximei-me e perguntei quantas laranjas tinham levado. "Dez", ele disse, entre soluços. Estendi a ele uma nota de dois reais, que cobria o prejuízo. Ele olhou a nota, perplexo, sem entender que eu queria apenas ajudá-lo. Depois, sem falar nada, apanhou a nota e guardou-a no bolso. Reparei que uma de suas mãos tinha um aspecto estranho. Era grande demais, a mão de um adulto, e tinha pêlos grossos e escuros.
A mão esquerda era normal, mas a outra era bizarra. O menino notou que eu observava sua mão e a escondeu no bolso da calça. Encarou-me com um olhar frio.
O carro do pastor, um mercedes negro, parou diante do portão e ele saiu. Esqueci do menino e me dirigi ao pastor, sorrindo forçadamente. Vinha ali numa missão delicada: vários fiéis da minha igreja contaram-me que o pastor Sávio estava recebendo em sua casa gente de péssima fama na região, políticos acusados de corrupção, empresários suspeitos de ligação com o tráfico. Corria ainda o boate de que estariam ocorrendo orgias, com presença de prostitutas, na casa do pastor.
O pastor Sávio cumprimentou-me, muito rígido, sem sorrir, e olhou para onde estava o menino, que tirou a monstruosa mão direita do bolso e acenou.
Entramos na casa, após atravessarmos o jardim, e eu me instalei num dos grandes sofás que haviam por ali. Um crucifixo enorme na parede, sobre a televisão, parecia feito de ouro, e me despertou a curiosidade em relação à maneira como o pastor obtinha tanto dinheiro operando numa das paróquias mais pobres do Grande Rio.
Estava absorto em meus pensamentos, aguardando o pastor, que pedira uns minutos para tomar uma ducha, quando senti a mão tocar meu ombro. Virei-me, surpreso, e vi o menino das laranjas. Seus olhos tinham um brilho febril e louco. Por alguns segundos fiquei paralisado, incapaz de dizer qualquer coisa, olhando aquele menino estranho, com um espécie de inexplicável terror crescendo dentro de mim. Reparei que segurava, na mão peluda e grande, uma faca de cozinha. Ele sorriu. Dei um salto do sofá e fui atingido por uma pancada na cabeça que me fez desmaiar.
*
Acordei empapado em suor. Minha mulher me olhava assustada, de pé ao lado da cama, apontando para a sala. "Sávio, acorda!", a polícia está aqui. Levei alguns segundos para reunir os pensamentos. O sonho fora tão real! Um alívio enorme relaxou-me os músculos, que estavam horrivelmente tensos e doloridos pela sensação de terror provocada pelo pesadelo.
Subitamente, porém, um outro receio infiltrou-se em mim, de início lentamente, mas foi tomando conta. Eu não sabia o que era, e sentia relutância em tentar descobrir, como se a resposta fosse terrível demais para minha consciência.
Havia algo de muito estranho em tudo aquilo. Aquela mulher... eu não a conhecia. Não era minha mulher. E, porra, meu nome não era Sávio! Levantei-me num salto para me olhar no espelho pendurado sobre a cômoda. Meu rosto!
Eu não era eu! Lembrei-me do menino e sua mão horrível. Tentei recordar a noite anterior e senti uma espécie de dor aguda na cabeça.
Só muitos meses depois, conversando com um velho na prisão, descobri o que me acontecera. O pastor Sávio, ciente de que seria preso, realizou uma ritual satânico através do qual transferiu minha consciência para seu corpo. Ele, por sua vez, assumiu meu corpo físico e personalidade e conseguiu fugir das garras da lei.
E quem era o menino?, perguntei.
"Você ainda pergunta?", persignou-se o velho, assustado.
A mão esquerda era normal, mas a outra era bizarra. O menino notou que eu observava sua mão e a escondeu no bolso da calça. Encarou-me com um olhar frio.
O carro do pastor, um mercedes negro, parou diante do portão e ele saiu. Esqueci do menino e me dirigi ao pastor, sorrindo forçadamente. Vinha ali numa missão delicada: vários fiéis da minha igreja contaram-me que o pastor Sávio estava recebendo em sua casa gente de péssima fama na região, políticos acusados de corrupção, empresários suspeitos de ligação com o tráfico. Corria ainda o boate de que estariam ocorrendo orgias, com presença de prostitutas, na casa do pastor.
O pastor Sávio cumprimentou-me, muito rígido, sem sorrir, e olhou para onde estava o menino, que tirou a monstruosa mão direita do bolso e acenou.
Entramos na casa, após atravessarmos o jardim, e eu me instalei num dos grandes sofás que haviam por ali. Um crucifixo enorme na parede, sobre a televisão, parecia feito de ouro, e me despertou a curiosidade em relação à maneira como o pastor obtinha tanto dinheiro operando numa das paróquias mais pobres do Grande Rio.
Estava absorto em meus pensamentos, aguardando o pastor, que pedira uns minutos para tomar uma ducha, quando senti a mão tocar meu ombro. Virei-me, surpreso, e vi o menino das laranjas. Seus olhos tinham um brilho febril e louco. Por alguns segundos fiquei paralisado, incapaz de dizer qualquer coisa, olhando aquele menino estranho, com um espécie de inexplicável terror crescendo dentro de mim. Reparei que segurava, na mão peluda e grande, uma faca de cozinha. Ele sorriu. Dei um salto do sofá e fui atingido por uma pancada na cabeça que me fez desmaiar.
*
Acordei empapado em suor. Minha mulher me olhava assustada, de pé ao lado da cama, apontando para a sala. "Sávio, acorda!", a polícia está aqui. Levei alguns segundos para reunir os pensamentos. O sonho fora tão real! Um alívio enorme relaxou-me os músculos, que estavam horrivelmente tensos e doloridos pela sensação de terror provocada pelo pesadelo.
Subitamente, porém, um outro receio infiltrou-se em mim, de início lentamente, mas foi tomando conta. Eu não sabia o que era, e sentia relutância em tentar descobrir, como se a resposta fosse terrível demais para minha consciência.
Havia algo de muito estranho em tudo aquilo. Aquela mulher... eu não a conhecia. Não era minha mulher. E, porra, meu nome não era Sávio! Levantei-me num salto para me olhar no espelho pendurado sobre a cômoda. Meu rosto!
Eu não era eu! Lembrei-me do menino e sua mão horrível. Tentei recordar a noite anterior e senti uma espécie de dor aguda na cabeça.
Só muitos meses depois, conversando com um velho na prisão, descobri o que me acontecera. O pastor Sávio, ciente de que seria preso, realizou uma ritual satânico através do qual transferiu minha consciência para seu corpo. Ele, por sua vez, assumiu meu corpo físico e personalidade e conseguiu fugir das garras da lei.
E quem era o menino?, perguntei.
"Você ainda pergunta?", persignou-se o velho, assustado.
24 de março de 2007
Cinema na Ville Rose
1 comentário
Em Toulouse, como em toda França, a liberté vale sobretudo para os cães, que além da boa vida de ócio sem culpa e amor sem cobranças, comendo e bebendo a custo zero, podem aliviar-se em qualquer parte, de preferência bem no meio da calçada, em frente às lojas ou mesmo dentro das lavanderias. Os cães franceses não ganham dinheiro do governo, como os jovens que completam 21 anos, mas podem cagar livremente e não votam na extrema-direita. Li numa revista que, em Amsterdam, inventaram recentemente a cerveja para cães. Só espero que alguém se lembre da característica diurética da cevada e da tendência dos bêbados de se tornarem agressivos. Se aturar um bêbado perdendo as estribeiras é complicado, que dirá um pitbul?
Amanhã (25), termina o Festival de Cinema Latino-Americano de Toulouse, do qual participo como jornalista convidado. Ontem fui assistir a um filme cubano interessante, El Benny, do diretor Jorge Luiz Sanchez. Conta a história de Benny Moré (foto), um dos maiores cantores populares da ilha. O filme mostra a Cuba dos anos 40 e 50, antes do golpe militar - uma democracia vibrante abortada violentamente por Fulgêncio Batista, com dinheiro e armas doados pelo mesmo governo americano que, suprema ironia, se pretende hoje paladino da democracia. Depois de financiar golpes anti-democráticos em toda a América Latina, produzindo décadas de terror, censura, tortura e crise econômica, sem nunca terem pedido desculpas, os EUA reclamam de que ainda exista um ressentimento anti-americano no continente. Pior, depois de apoiarem o golpe de 2002 contra Chávez, presidente eleito e reeleito com larga maioria, ainda continuam acusando o líder venezuelano de atentar contra a democracia. Discurso que é submissamente aceito e difundido pela mídia corporativa tupi. Com apoio do Alberto Dines, lógico.
O protagonista, Benny, insere-se na categoria gênio bêbado e sedutor, na linha Jim Morrison ou Charlie Parker. Embora os avanços e recuos de tempo não tenham sido bem organizados, confundindo um pouco a cabeça do espectador, o filme é uma delícia, por causa das magníficas canções de salsa, mambo, bolero. Sempre românticas, picarescas, sensuais, vibrantes. Filme que você assiste mexendo pé e ombros, querendo dançar. Recorde de público em Cuba. A trilha sonora serve para uma boa festa.
23 de março de 2007
Entrevista do Paulo H.Amorim para a Revista Brasil
A TV ainda é o veículo mais influente sobre a sociedade não-organizada. Como você vê o desempenho da TV brasileira na formação da inteligência dos cidadãos?
A TV brasileira não nasceu para isso. Ela copiou o modelo americano, que se opôs ao inglês. O modelo inglês veio do rádio. A BBC rádio inspirou a criação da televisão. A certa altura da história americana, com o presidente Roosevelt, o governo teve de escolher entre fazer televisão pública ou privada. Roosevelt escolheu televisão e rádio privados porque ele tinha 100% dos jornais americanos contra ele. Então, fez um acordo com os donos de emissoras e deixou a legislação correr na linha da privatização para poder chegar ao povo americano. Roosevelt fez uma reforma institucional muito importante do ponto de vista dos programas sociais. E essa opção política casou com os interesses econômicos nos Estados Unidos de tal maneira que, quando a televisão saiu da costela do rádio, ela já era uma televisão privada.
E o Brasil?
Já saiu inspirado pelo modelo americano. A televisão brasileira já nasceu com o grande conglomerado do Chateaubriand, que foi substituído pelo conglomerado Globo. E a cumplicidade, o vínculo entre o Estado brasileiro e a Rede Globo foi tão profundo que se chegou a uma situação que durante muito tempo permitiu que a Globo, com 50% da audiência, tivesse 75% da verba publicitária – uma situação sem paralelo num regime democrático. Essa anomalia que fez com que a TV brasileira não só não desempenhasse o papel de formar os brasileiros como também se tornasse um monopólio virtual, na prática, de um único grupo de televisão, um grupo conservador e que interfere no processo político sempre no lado não-trabalhista.
A que você atribui esse desempenho? Competência estratégica empresarial?
Foi uma combinação. Beneficiou o regime militar e foi explorada empresarialmente muito bem por Roberto Marinho, que conseguiu sufocar os concorrentes, e escolher os concorrentes. A certa altura do governo Geisel, Roberto Marinho escolheu os adversários. Escolheu o grupo Manchete e o grupo Silvio Santos. Ou seja, ele não só criava as condições que o beneficiavam como escolhia com quem queria brigar.
Como essa situação começa a mudar?
O que muda agora são três fenômenos paralelos. Um é que pela primeira vez a Globo tem um adversário com grana, a Record. Pela primeira vez tem um adversário com dinheiro para enfrentá-la no terreno dela, que é a telenovela. Segundo lugar: pela primeira vez na história do Brasil o governo não é amigo dela. Para o meu gosto, o governo Lula trata a Globo bem demais, mas não como a tratavam Fernando Henrique, José Sarney, e todos os governos militares.
Mas há quem diga que o ministro das Comunicações, Hélio Costa, é um braço da Globo no governo.
Não, porque o poder saiu do Ministério das Comunicações. O poder hoje está nas mãos de Dilma Rousseff (ministra-chefe da Casa Civil).
E terceiro...
A democratização do acesso através dos meios de comunicação via internet.
Guardadas as devidas limitações da exclusão digital.
Claro, mas elas estão diminuindo. Tem aí o computador popular, a instalação de computadores nas escolas públicas, as lan houses. Está acabando o monopólio. Vem aí a revolução do vídeo na internet. Essa coisa monolítica Jornal Nacional-falou-tá-falado não é mais assim, não. Eles deram o golpe no primeiro turno, mas não conseguiram no segundo. Alckmin teve no primeiro turno mais votos que no segundo. E Lula teve contra Alckmin mais votos do que contra Serra.
Fale um pouco da sua história, da sua formação profissional.
Eu me formei em imprensa escrita. Fui para a televisão com mais de 40 anos. Minha carreira chegou num ponto em que eu não tinha mais para onde ir na imprensa escrita. Fui trabalhar primeiro na TV Manchete, depois na Globo, e depois fui para Bandeirantes, Cultura e hoje Record. Minha formação é de jornalismo escrito e por acaso eu me dei bem em televisão. Deus me beijou na testa e eu tenho facilidade de me comunicar com a câmera, portanto, com o público. Mas minha escola jornalística é a do Mino Carta na Veja. É uma coisa quase pré-histórica.
Você diz que a Veja é uma revista de direita.
Isso é quando eu estou bonzinho, generoso. A Veja hoje é o boletim do fascismo. O Mino repudia a Veja.
Como você avalia sua conduta profissional nas eleições, no pós-eleições, na relação com a política?
Por causa do meu trabalho de televisão, procurei ser um jornalista, digamos, não-engajado. Porém, a certa altura, achei que meu trabalho na TV Record, nesse programa Domingo Espetacular, me permitia fazer uma escolha. Eu não pretendo mais ter um papel de jornalista que mexa com política e economia numa televisão aberta. Para isso criei um site, o Conversa Afiada, hospedado no IG, que tem lá, para quem quiser ler, uma seção chamada "Não coma gato por lebre", em que estabeleço com muita clareza quais são as minhas inclinações. Não gosto de FHC, Daniel Dantas, Rede Globo, imprensa farisaica, do Corvo do Lavradio (Carlos Lacerda), Ronaldo dito "o fenômeno", Flamengo – sou Fluminense –, de quem fala mal do Rio, de quem fala mal de nordestino, de Brasília, de pós-moderno, de Dry Martini com uma gota a mais de Martini, de filme de terror, de Amsterdam Avenue, de urna eletrônica e de gatos. Não engano ninguém.
Existe imprensa independente no Brasil?
A imprensa escrita brasileira, com exceção da CartaCapital, trabalhou, trabalha e trabalhará para abreviar o mandato do presidente Lula. Isso eu quero dizer que é o Estadão, a Folha, o Globo, o Zero Hora, para falar dos quatro principais jornais do país. Com a eleição do presidente Lula, caiu a máscara. A imprensa conservadora brasileira tem tradição de ser antitrabalhista, militou contra Getúlio Vargas, contra Juscelino, contra Jango. Roberto Marinho contribuiu para sujar a imagem do Rio de Janeiro com o objetivo de prejudicar os dois governos de Leonel Brizola. Essa imagem que o Rio tem hoje, de ser a capital da violência, combinação de Chicago com Medellín, é produto da Rede Globo. Agora, elegeu-se um trabalhista, e eles começaram a militar contra. Como diz a professora Marilena Chaui, a campanha do impeachment começou no dia em que Lula tomou posse. Eu criei um índice, o IVDL, o Índice Vamos Derrubar o Lula. A imprensa brasileira, sobretudo a escrita, com exceção da CartaCapital, é engajada, partidária.
A democratização do acesso à informação pode contribuir para o jornalismo independente ou derruba de uma vez por todas o mito e cada um vai assumir sua posição publicamente?
Quando você fala em jornalismo independente, eu penso em um jornalismo desligado dos grandes grupos. E com o mínimo de recursos, muitas vezes. Hoje, com uma câmera de celular você filma. Não esqueça que a execução de Saddam Hussein foi gravada com celular e divulgada pelo Google. As redes de televisão dos Estados Unidos estavam pensando no que fazer com o vídeo, e o Google já tinha botado no ar. A eleição para o Senado americano foi decidida com um celular. O famoso senador que chamou um indiano de macaco perdeu a eleição porque foi para o YouTube.
Além da Internet, há outros espaços para democratização?
Os outros espaços estão na educação. No acesso do pobre à educação, associado ao acesso ao computador.
Uma discussão que vem sendo feita nos movimentos sociais é um plano governamental para a democratização da comunicação.
Eu acho que o movimento sindical brasileiro, o PT e o governo Lula bobearam. Eles menosprezaram o poder da imprensa conservadora. Nenhum dos três teve peito para enfrentar a imprensa conservadora e criar uma imprensa alternativa. O Brasil é o único país razoavelmente sério do mundo que não tem um jornal trabalhista. Um La República, um El País, não tem no Brasil. Culpa do movimento trabalhista, e aí eu incluo o PT, os sindicatos e o governo Lula. O governo achou que ia chamar a Globo, encantar a família Marinho. Eles são contra Lula desde Getúlio Vargas. Quando Getúlio morreu, o povo foi para a rua e fechou o jornal O Globo. A família Mesquita é contra Lula desde o Getúlio Vargas. Outro erro que o PT cometeu, que Lula cometeu, foi achar que eles eram diferentes dos trabalhistas, Getúlio, Jango, Brizola. Para os conservadores, não tem diferença. A diferença é a seguinte: o que é o problema número um do Brasil? A carga tributária ou a distribuição da renda? Essa é a questão. É como nos Estados Unidos. George Bush é a favor de tirar imposto de rico e Clinton é a favor de distribuir a renda. Aqui no Brasil, Getúlio, Jango, Brizola e Lula querem distribuir a renda. Do outro lado, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, que pode ter todas as idéias de esquerda, mas se comporta como homem de direita. Não me interessam as idéias do Serra, me interessa a prática do Serra.
E Aécio? Ciro Gomes?
Eu quero falar de tucano, eu não gosto é de tucano (risos). Mas é preciso ficar claro o seguinte: acredito em pluralidade, em livre confronto de idéias, que os mais capazes sejam mais bem remunerados, não sou a favor da estatização dos meios de comunicação, tenho muitas simpatias por um regime econômico de mercado, me considero uma pessoa bem-sucedida nesse regime. Acho que ele precisa ser policiado, precisa de regras, disciplina.
Não precisa ser selvagem.
O capitalismo sabe ganhar dinheiro, mas não sabe distribuir. Então tem de haver mecanismos pelos quais seja possível distribuir dentro do regime da livre-iniciativa. Tem de haver um entrechoque entre os que são a favor de reduzir impostos e os que são a favor de distribuir renda. Cinco anos um, cinco anos outro, e por aí vai. Isso é democracia. Não pode é ser sempre de direita. Mas o que eu gosto é de democracia, de confronto, de pau. Fui formado assim, sou filho de uma família de classe média baixa e passei a minha vida lutando, eu gosto disso. O que não gosto é de pensamento único. E durante a hegemonia do neoliberalismo, codificado por Margaret Thatcher e por Ronald Reagan, e aqui imposto por Fernando Henrique e a imprensa que o cerca até hoje, criou-se um sistema de pensamento único. É isso que eu acho que tem de ser desmontado. Acho que essa é minha modestíssima contribuição como jornalista. Não significa que eu seja petista, socialista, nada. Sou apenas um jornalista que gosta de confusão.
Você acredita que os meios de comunicação podem caminhar para um futuro em que tenham maior compromisso humanista?
A idéia que vem por aí é a seguinte, professor. É a desprivatização dos jornais. Um cara chamado Steven Rattner (banqueiro e investidor que já foi repórter do NYT e hoje administra o Quadrangle Group, empresa de investimentos em meios de comunicação) defende a seguinte tese: a democracia precisa de jornal independente, objetivo, que não pode tomar partido. Toma partido na página de opinião e o resto é fato, fato, fato. Aqui nos jornais brasileiros até o horóscopo é partidário, a previsão do tempo. A livre-iniciativa não tem grana para fazer bons jornais independentes. Não se esqueça de que o setor industrial que mais sofre hoje no Brasil é o da imprensa escrita, e é por isso que eles têm esse mau humor. Rattner diz que precisamos criar um novo modelo de negócios para sustentar os jornais. Qual? Fundos públicos, doações de bilionários caridosos e humanistas, fundações, sistema de subsídios, como na BBC. Essa combinação deverá garantir um número mínimo de jornais independentes. É o que ele chama de desprivatização dos jornais.
E eu acho que é para isso que nós vamos.
Os brasileiros têm condições de saber o que está acontecendo na América do Sul através dos nossos jornais?
Não, a nossa cobertura internacional é grotesca. Os jornais brasileiros não prestam. A rigor, não tem o que ler. Começa que cinco páginas são dedicadas à reforma ministerial que non me ne frega niente. Que me frega quem vai ser ministro das Cidades? Não muda a natureza do café que eu tomo no boteco, com mais ou menos açúcar. Se Marta vai ser ministra, que me interessa? Faça uma enquete na rua e pergunte o nome do ministro das Cidades. Ninguém sabe, e é bom que não saiba, não precisa saber, não interessa. Por que eles fazem isso? Para demonstrar que Lula não sabe decidir. Era uma coisa que se dizia de Getúlio também. Ele ficou com a fama de que criou a frase "deixa estar para ver como é que fica". E foi o homem que mais mudou as estruturas sociais do Brasil. E ele mudou o país, mudou o Código de Minas, a lei de gestão do trabalho, criou a Petrobras, a Eletrobrás, mulher passou a votar.
Você está acompanhando a cobertura da cratera do metrô de SP?
Estou esperando o presidente-eleito José Serra se pronunciar sobre o assunto. Eu tenho chamado José Serra assim porque ele não foi eleito nem prefeito nem governador de São Paulo. Foi eleito presidente e vai assumir em 2010. No intervalo, vai ter de dar uma arrumada em São Paulo para não atrapalhar muito, mas ele vai assumir em 2010, está escrito. A cratera se abriu há 45 dias. O que Serra já falou sobre o assunto? Nada! Ele está esperando a imprensa parar de falar no assunto, ele tapa aquele buraco e acha que ninguém vai se lembrar de que aquilo se abriu no governo dele, e foi construído pelo antecessor dele. Ele não fala mal nem do antecessor, nem do consórcio, nem de ninguém. Não fala mal nem da chuva.
Nem do modelo de gestão.
Aquilo foi construído por um modelo de gestão chamado porteira fechada, que é a coisa mais bem elaborada para se roubar. Como é que se rouba? Fazendo o modelo de porteira fechada. Como se rouba melhor ainda? Fazendo esse modelo no período pré-eleitoral. A combinação desse modelo com eleição é ótima para administrador de má-fé e concessionário de má-fé. O que é inexplicável, inaceitável, é José Serra não dizer uma vírgula sobre o assunto. Ele não diz mais 4, ele conta Linha 1, 2, 3, 5, para não lembrar da Linha 4. Mas vamos agora fazer a gênese disso. Ele conta com a imprensa de São Paulo. Ontem estiveram aqui em São Paulo três senadores da República. Um do PT, Aloizio Mercadante, um do PSDB, Flecha Ribeiro, e outro do PSDB, Eduardo Suplicy.
Suplicy é do PT...
Você acha?... Os três senadores vieram aqui inspecionar o que estava acontecendo na Linha 4. Serra ligou para todos os jornais do país e conseguiu impedir que saísse uma mísera linha sobre a visita. Uma mísera! Ela não está administrando São Paulo, está administrando a imprensa para que ela não fale da Linha 4. Ele está contando com que o assunto morra.
E o debate da redução da maioridade penal?
Sou a favor da redução, acho que a lei penal brasileira é frouxa, a lei de execuções penais é frouxa. Acho que político brasileiro tem medo de bandido e sou a favor de uma lei muito mais rigorosa. Agora, tem causas sociais, tem de mandar o cara para a escola, tem de fazer um apoio para a comunidade, uma série de coisas. Mas a primeira coisa é mudar o Código Penal.
16 de março de 2007
Estratégias de contra-informação
19 comentarios
Não vejo muita coisa para comentar sobre o cenário político. Por exemplo, estou sabendo que a oposição quer criar a CPI do Apagão Aéreo. Sei que é só para encher o saco do governo. Sei também que faz parte da tradição oposicionista encher o saco dos governos. Portanto, tudo na mais perfeita normalidade. Vi que o Lula está distribuindo ministérios para o PMDB. Não gosto muito como a coisa tem sido feita, esse troca-troca político, mas sei que não tem jeito, ainda mais com essa oposição bombada por uma mídia inconformada com a vitória do Lula.
É terrivelmente enfadonho assistir os colunistas criticando o governo porque ele não quer a CPI do Apagão Aéreo. Ora, que governante, em todo esse vasto mundo, não faria o mesmo? O PSDB não quis e conseguiu enterrar a CPI do Metrô? O PSDB não vem tentando a todo custo abafar esse assunto? Li outro dia que o Congresso Nacional tentava marcar uma audiência pública para discutir o lance do metrô. O PSDB foi lá e barrou. O Noblat deu uma notinha, claro que sem o seu costumeiro sarcasmo, em geral usado somente contra a turma do outro lado. Mas não quero falar mal do Noblat não, porque é público e notório que ele melhorou 100%, desde que viu que o Lula é osso duro de roer. A grande imprensa nacional e seus pit-colunistas morderam o homem durante quatro anos, e o homem foi lá e venceu de novo a eleição.
Me chama a atenção é a revista Veja. Ela continua firme e forte na sua campanha contra o PT e a favor do PSDB. Não deu nada sobre o buraco do metrô e todos os seus desdobramentos e continua jogando duro contra o Lula. Tem um único blogueiro político, o Reinaldo Azevedo, que usa os termos PT, petismo, Lula, umas duzentas vezes por dia. Nunca vi um cara mais partidário na minha vida. É uma coisa aberta. Ele joga dentro do PSDB. Dá palpites e apoio escancarado ao partido, dentro de seu blog que está dentro da Veja. O Mainardi é ainda pior. Inventa mil e uma historietas escabrosas e passa o tempo apontando o dedão para jornalistas que, segundo ele, seriam simpatizantes do petismo.
Eu até entendo o Reinaldo Azevedo. Ele ganha seu dinheiro assim há tempos, e provavelmente acredita em alguma coisa do que diz. O partidarismo da Veja é que é estranho. Por mais que seus donos e editores tenham suas preferências partidárias, pesquisas recentes dão o PT como o partido com maior número de filiados do país. O Lula foi votado maciçamente pela maioria dos brasileiros, dentre eles uma fatia importante de uma classe média com poder aquisitivo para assinar uma revista. Por que cargas d'água um editor simplesmente descarta um segmento tão numeroso da sociedade? Por que optar por ser tão odiosamente ideológico e partidário?
Pronto, agora que desabafei o que penso da Veja, quero falar de outro espinho preso na garganta. Sobre o jornal "esquerdista" Brasil de Fato. Lembro que um amigo me chamou para uma reunião em Niterói sobre a criação do jornal. As organizações sindicais e o MST queriam investir na criação de um jornal que trouxesse o ponto-de-vista dos trabalhadores, em oposição à mídia corporativa, notadamente inclinada a defender somente o lado dos patrões. A iniciativa era legal, mas a maneira como tudo feito foi um desastre. A começar pelo nome: Brasil de Fato, nome feio pra burro. Outra, queriam fazer uma revolução na maneira de fazer e organizar um jornal. Reuniões no Brasil inteiro. O resultado foi um fiasco, é claro, e logo logo o jornal teve que seguir o modelo profissional de um jornal normal. Segundo, chamaram o José Arbex para editor, o mesmo da Caros Amigos. Ora, eu sei da importância da Caros Amigos, e já li muita coisa legal por lá, mas é uma revista ranzinza, feia, mais inclinada para extremismos do que para uma esquerda moderna e democrática. Em quase todo o governo Lula, até pouco antes de estourar a crise, quando viram que a briga era coisa de adulto, vinham com críticas somente reativas ao que a grande imprensa colocava, sem expor pontos-de-vistas originais e sem detectar a jogada dos mamutes da imprensa tupi, que sempre foi de queimar o Lula à esquerda e à direita, como fazem até hoje.
Por essas e outras, o cara que admiro mais no jornalismo nacional é o Mino Carta, que entende muito mais de jornalismo que qualquer outro. Estão tentando queimar o Mino de todo jeito, mas não conseguem. Ele é, na minha opinião, a grande personalidade do jornalismo deste novo século. O cara é uma lenda viva. Mas a Carta Capital podia ser ainda melhor, mais grossa, mais inovadora, mais ousada. Apostar mais em novos talentos. Milhares de novos talentos estariam dispostos a dar a vida pela Carta Capital, mas o Mino, neste ponto, é conservador demais. E a Revista, que sabemos ser um pilar do jornalismo nacional, fica sempre no mesmo lugar. A Carta Capital tinha que conquistar as mulheres, por exemplo, e quem não gosta tanto de política, com matérias mais sedutoras sobre comportamento, diferenciando-se de outras revistas através da competência e escolha dos temas. A seção cultural da CC é fraca, por exemplo, e a revista não tem um diálogo muito bom com a internet. Naturalmente, as empresas tinham que investir mais nela. Não, preferem investir na Veja. Mas o Mino bem que podia mudar o visual, dar uma renovada na turma que escreve. Não digo demitir os que estão lá, mas contratar gente nova. Sangue novo. Entusiasmo. Pode mesmo colocar lá uns colunistas conservadores, não tem problema. O problema da imprensa não são seus colunistas conservadores. Eles dão suas opiniões e a gente concorda ou não. O que a sociedade não consegue engolir é a manipulação das notícias de acordo com o interesse político do jornal.
Entretanto, confesso que o mais estarrecedor é observar como a gente dita "culta" engole fácil fácil o que a mídia publica e interpreta. Mas deixa isso pra lá, acabei de lembrar de uma coisa mais importante. Uma auto-crítica. Acho que os movimentos anti-mídia devem ser muito cuidadosos em sua guerra. A mídia é muito mais poderosa do que parece. Se a blogosfera bater de frente, pode ganhar uma ou duas batalhas, mas a vitória não vai durar muito. É a história do Leviatã. A mídia tem um poder descomunal, selvagem. Existem mil formas mais sutis de se domar esse monstro. A técnica da luta tem que se adaptar às condições em que ela acontece. Por exemplo, maniqueizar a luta é perdê-la. Tratar a mídia simplesmente como malvada não é a solução. Porque aí basta a mídia ficar bonzinha alguns anos e pronto, acabou-se a luta. Além do mais, a mídia é um monstro com várias cabeças, muitas delas cabeças boas, outras muito más, outras neutras. A mídia é um sistema. Se você matar a Folha, o Estadão fica mais forte. Se você matar os dois, o Globo domina. Se você matar os três, surge um outro ainda mais poderoso. Não tem jeito. A sociedade industrial moderna tem necessidade de grandes meios de comunicação, e o pensamento dominante nestes meios serão sempre os pensamentos da elite financeira, que controla o sistema de publicidade. Um eixo de ação fundamental é procurar conquistar mentes e corações no interior desta mídia. Outra é tentar mesmo se imiscuir dentro dela, sem medo. Seria uma conquista tremenda. Burrice é querer brigar com a mídia por pirraça, mesmo quando ela, forçada a isso, ceder em algum ponto, abrindo brechas democráticas em seu flanco corporativo.
A blogosfera, portanto, precisa tomar muito cuidado para não perder o bonde da história. Esses pools de blogs, por exemplo, são uma excelente idéia de agregação de força. O tal Sivuca, Movimento dos Sem Mídia, é uma idéia deliciosa, da qual sou um apoiador e um aspirante a membro.
Outro ponto fundamental é a coerência ideológica. O debate ideológico não pode ser sectário. A blogosfera não tem direito de ser sectária, por causa de sua estrutura diversificada e libertária. Existem pontos de contato entre a mídia e a blogosfera? Ótimo, esses pontos devem ser mantidos e protegidos. Uma ruptura completa entre a mídia corporativa e a blogosfera apenas interessaria aos reacionários. A blogosfera deve "colar" na mídia, como vírus, envenenando-a, transformando-a, purificando-a. Se possível, dentro da mídia, através da sedução de seus membros. A mídia é uma entidade abstrata, feita de gente, e gente se conquista com amor, não com ódio.
Nada existe mais poderoso que a ideologia, desde que a entendamos em seu sentido mais abrangente, de visão de mundo e ética. Dentro da blogosfera, o debate ideológico deve ser continuamente enriquecido pelo confronto democrático, sendo que uma ética de respeito pela opinião alheia deva ser vista como a coisa mais importante de tudo, sem a qual qualquer blogosfera corre o risco de se auto-destruir. No centro deste debate deve-se ouvir a opinião de quem não gosta de política e de quem não entende de política com total atenção. Esses dois segmentos têm, mesmo que disso não tenham consciência, muito o que dizer. Patrulhamento e preconceito contra o diferente devem ser evitados a todo custo. Ao mesmo tempo, o próprio preconceito – desde que não seja racismo ou fascismo, é claro – deve ser entendido como, muitas vezes, uma opinião intuitiva e uma característica de personalidade forte.
Incentivando esses debates, a blogosfera conseguirá adquirir mais coerência ideológica e, com isso, mais força para influenciar (essa é a palavra chave, mais que "lutar") a mídia e, diretamente, a sociedade.
Estamos conversados.
13 de março de 2007
O leitor comum
8 comentarios
Sinto-me um tanto metalinguístico, escrevendo sobre a escrita, mas enfim, se eu me divirto com isso, qual o problema? Iniciei há poucas semanas uma série de artigos sobre as novas tendências da ficção brasileira, polemizando com outro escritor. Meu colega de letras acusa o romance contemporâneo de ter enveredado por um caminho extremamente hermético, o qual, apesar de bem recebido por críticos e outros autores, afasta-o mais e mais do leitor comum.
A teoria dele converge em favor de uma literatura mais aberta ao grande público, desenvolvendo melhores tramas, enredos mais consistentes e mais empolgantes. Eu acho importante ressaltar, no entanto, que o romance de história – em oposição ao romance de linguagem, joyciano - nunca deixou de ser produzido no Brasil. Marcos Rey, Sergio Santanna, Marcos Souza, Marçal Aquino, para citar apenas alguns, têm produzido narrativas mais ou menos lineares e acessíveis nos últimos 10 a 20 anos. Talvez ainda não tenham encontrado a fórmula do best seller, como o fez Paulo Coelho, para falar de um nativo, ou Dan Brow, para citar um americano, mas não creio que eles almejem apenas agradar críticos e outros escritores. Quanto à fórmula do sucesso, os autores citados sempre podem encontrar, num dia de inspiração excepcional, o enredo que galvanizará o grande público. Temos uma classe média leitora com mais de 5 milhões de pessoas. Um mercado promissor do qual, mais dia menos dia, alguém tocará o ponto G.
Mas é verdade que a outra vertente, com textos fechados, densos, de difícil acesso ao leitor não especializado, contendo códigos e referências complexos, têm ganhado muito prestígio em anos recentes. Meu colega lamenta que esta vertente venha sendo tão incensada por crítica e Academia e dominando os cadernos culturais.
Admito que fiquei confuso no meio dessa polêmica. Escrevi alguns ensaios contraditórios, acusando gregos e troianos e não tomando nenhuma posição definitiva. Mas como o tema continua me entusiasmando, decidi fazer mais um esforço para elucidar - para mim mesmo e quiçá para algum náufrago desavisado que ancorar por aqui - esse mistério. A literatura brasileira estaria se fechando em si mesma, tornando-se uma literatura de panelinha, distanciando-se do leitor comum? Para saber, resolvi fazer uma pesquisa empírica e ir em busca do leitor comum. Eu queria conhecê-lo a fundo (com todo respeito). Onde ele mora, em que trabalha, quanto ganha por mês, se toma Viagra, assiste novela, bebe vodka, fuma maconha e, naturalmente, o que esperava de um romance - eram algumas das questões que me vinham à mente.
Inicialmente, havia decidido não procurar o Leitor Comum no mundo virtual. Queria encontrá-lo pessoalmente, ter um contato ao vivo. Mas depois de perambular por dias inteiros nas ruas do centro do Rio, infrutiferamente, resolvi apelar à rede para fazer a primeira abordagem. Abri uma página no Orkut intitulada "Sou um Leitor Comum". No dia seguinte ele apareceu, deixando comentários. Trocamos emails. Ele gostou da proposta e marcamos de beber uma gelada num barzinho da Riachuelo, Lapa.
Cheguei um pouco mais cedo ao encontro, agendado para nove horas da noite. Sentei-me a uma mesa na calçada, uma dessas de plástico, com propaganda de cerveja. A cadeira também era de plástico, com braços e recosto. Prefiro essas às de metal, geralmente tortas e desconfortáveis. Era uma quarta-feira de verão. Fazia calor e as outras mesas estavam todas ocupadas por gente bebendo cerveja. A atmosfera lapiana, como de praxe, transpirava volúpia, me fazendo sentir um friozinho na barriga. Finalmente, eu pensava, excitado. Finalmente vou conhecer o Leitor Comum. Nenhum escritor brasileiro contemporâneo jamais o conheceu. Por isso não conseguem seduzi-lo. E assim ele continua comprando Paulo Coelho, Irving Wallace, Sidney Sheldon, e sei lá mais que besteirol.
Em seguida, pensei melhor e concluí que eu estava sendo preconceituoso; que, se eu continuasse raciocinando assim, nunca seria capaz de compreendê-lo. Planejei iniciar, a partir do dia seguinte, um estudo sobre os livros mais comprados pelo Leitor Comum. Seria um suplício inominável, mas eu tinha que me esforçar, se quisesse de fato atingir o LC e ficar rico. Ainda me pesava na consciência aquele jantar na casa da minha mãe, em que o marido da minha prima fez um comentário entusiasmado sobre o Código da Vinci. Não consegui evitar um olhar de desprezo e o tom de voz escarninho. Ele ficou visivelmente abatido. Hoje, recordando a cena, ponho-me em seu lugar. Eu pensaria assim (se eu fosse ele): "olha só o pedante, como é patético, invejoso; como se ele fosse capaz de escrever um romance tão bom; como se fosse capaz de vender mais de 40 milhões de livros".
A verdade é dura, mas precisamos encarar. Existe um déficit enorme de narrativa na literatura brasileira. Mesmo entre os medalhões, não temos nada de extraordinário em termos de trama. Além disso, o escritor brasileiro tem a mania de achar que, só porque leu muito, tornou-se superior ao comum dos mortais, quando, francamente, na maioria das vezes, suas leituras excessivas só serviram para lhe detonar a saúde física e mental. Veja os romancistas americanos: em geral são esbeltos, vigorosos, joviais, dão entrevistas na televisão, engajam-se em campanhas políticas. O Philiph Roth é uma exceção porque é judeu e os judeus são pessimistas – com fortes razões históricas para tal. Os escritores brasileiros, tirante o Marçal e o Reinaldo Moraes, costumam ser gordos, gagos, doentios, trêmulos, indecisos, apáticos, tímidos, com forte inclinação ao alcoolismo. Droga, estou generalizando, falando besteira, odeio isso. Apaguem da cabeça as últimas frases. Tenho que pensar mais claramente, mais cientificamente, se quiser de fato entender a cabeça do Leitor Comum - não é possível que...
Com licença, você é o Miguel do Rosário?
Olhei para o lado e para o alto e vi um sujeito mais pra baixo que pra alto, cabelo grande encrespado, bermudão colorido, havaianas, camisa branca - e um sorrisão imenso, desconcertante. O sorriso dele agarrava-se ao rosto como uma criança ao colo do pai, com fúria, medo, amor. Era um buraco, um abismo. Podia-se mergulhar naquele sorriso e se perder para sempre.
Desculpe, eu pensei que...
O apogeu do sorriso havia passado. Restava o seu crepúsculo, ainda glorioso, mas cuja luz declinava vertiginosamente. Um sorriso quase triste. Ele fez menção de se afastar. Eu o contive.
Sim, sou eu. Desculpe-me, estava distraído. Você é o Leitor Comum?
Levantei-me e estendi a mão. O sorriso ressurgiu com toda força, como um sol que desistisse de se pôr e voltasse, incoerentemente, a subir no horizonte. Ele aparentava uns trinta e poucos anos, tinha barba por fazer e parecia não ter muito dinheiro.
Pode me chamar de Leco!, respondeu, apertando-me a mão com energia. Sua voz elevava-se no início das frases e perdia vigor ao final. Reparando bem, era mais pra baixo, um metro e sessenta e cinco, e pesava um pouco acima do ideal. Os traços eram bem comuns e, apesar do rosto marcado por cicatrizes de uma antiga doença de pele, possuíam uma distinção quase bela. Talvez (a razão dessa beleza canhestra) fossem os olhos castanhos claros, atentos, puros, alegremente desconfiados – como quem se diverte com seus próprios temores. Talvez fosse o hiato irônico entre os dois dentões da frente.
Sentamo-nos. O garçom trouxe um copo para Leco e trocamos algumas frases sobre o calor, o bairro, nós mesmos. Leco enfim deu uma informação importante.
Eu tenho um ateliê aqui quase em frente. Sou artista plástico.
A frase gelou-me a espinha. Eu esperava tudo, menos um artista plástico. O Leitor Comum deveria ser engenheiro, funcionário público, professor, gerente de loja, dono de restaurante, estudante de medicina. Não podia ser outro artista. Consolei-me pensando que, ao menos, não era outro escritor. O consolo durou pouco:
Eu cometo uns poemas de vez em quando, disse Leco, enchendo seu próprio copo, após ter esperado em vão que eu o fizesse. Fiquei constrangido de ter me esquecido desta óbvia delicadeza, e sorri sem graça, à guisa de desculpas.
Verdade? Que livro você está lendo? perguntei, mudando de assunto. Enquanto enchia meu copo, refletia se cairia bem uma cachaça. O bar do Paulinho tinha uma excelente, por um bom preço. Eu estava com vontade de começar a beber a sério. Escuta, Leco, eu vou pedir uma cachaça. Você quer também?
Bem, Rosário, preciso dizer uma coisa... Estou completamente duro. Sabe como é, vida de artista no Brasil é foda.
Fica frio, você é meu convidado. Vamos beber.
Pedi cachaça, depois outra - e depois outra. E mais outra.
Aqui confesso o fiasco da minha empreitada, pelo menos até o momento. Eu e Leco bebemos cerveja e cachaça em grande quantidade, depois fomos a seu ateliê, quase em frente, e fumamos uns baseados. Havia trabalhos magníficos pendurados nas paredes, objetos que mesclavam materiais esdrúxulos: anúncios de igrejas evangélicas, placas de carro, bonecas de plástico, cabides, pedaços de computador e de celulares, e cada um tinha um tema, remetia a algum significado misterioso. Enquanto fumava, eu contemplava embevecido aquilo tudo. Pouco conversamos sobre literatura, e o pouco que fizemos não registrei devidamente, com certeza em virtude (melhor dizendo: pela falta de virtude) do excesso de substâncias bebidas e fumadas. Recordo apenas que ele disse estar lendo a biografia não-autorizada do Roberto Carlos. Tinha ficado curioso, só porque o Rei tentou proibi-la.
Marquei de encontrá-lo em outra oportunidade, quando espero colher mais dados. Pra dizer a verdade, tudo isso aconteceu ontem. Até agora, o único resultado da minha pesquisa sobre o Leitor Comum, além de uma grande ressaca, é a impressão – pela qualidade da luz filtrada pela cortina - de que já são umas cinco da tarde e que faltei a todos os compromissos do dia.
A teoria dele converge em favor de uma literatura mais aberta ao grande público, desenvolvendo melhores tramas, enredos mais consistentes e mais empolgantes. Eu acho importante ressaltar, no entanto, que o romance de história – em oposição ao romance de linguagem, joyciano - nunca deixou de ser produzido no Brasil. Marcos Rey, Sergio Santanna, Marcos Souza, Marçal Aquino, para citar apenas alguns, têm produzido narrativas mais ou menos lineares e acessíveis nos últimos 10 a 20 anos. Talvez ainda não tenham encontrado a fórmula do best seller, como o fez Paulo Coelho, para falar de um nativo, ou Dan Brow, para citar um americano, mas não creio que eles almejem apenas agradar críticos e outros escritores. Quanto à fórmula do sucesso, os autores citados sempre podem encontrar, num dia de inspiração excepcional, o enredo que galvanizará o grande público. Temos uma classe média leitora com mais de 5 milhões de pessoas. Um mercado promissor do qual, mais dia menos dia, alguém tocará o ponto G.
Mas é verdade que a outra vertente, com textos fechados, densos, de difícil acesso ao leitor não especializado, contendo códigos e referências complexos, têm ganhado muito prestígio em anos recentes. Meu colega lamenta que esta vertente venha sendo tão incensada por crítica e Academia e dominando os cadernos culturais.
Admito que fiquei confuso no meio dessa polêmica. Escrevi alguns ensaios contraditórios, acusando gregos e troianos e não tomando nenhuma posição definitiva. Mas como o tema continua me entusiasmando, decidi fazer mais um esforço para elucidar - para mim mesmo e quiçá para algum náufrago desavisado que ancorar por aqui - esse mistério. A literatura brasileira estaria se fechando em si mesma, tornando-se uma literatura de panelinha, distanciando-se do leitor comum? Para saber, resolvi fazer uma pesquisa empírica e ir em busca do leitor comum. Eu queria conhecê-lo a fundo (com todo respeito). Onde ele mora, em que trabalha, quanto ganha por mês, se toma Viagra, assiste novela, bebe vodka, fuma maconha e, naturalmente, o que esperava de um romance - eram algumas das questões que me vinham à mente.
Inicialmente, havia decidido não procurar o Leitor Comum no mundo virtual. Queria encontrá-lo pessoalmente, ter um contato ao vivo. Mas depois de perambular por dias inteiros nas ruas do centro do Rio, infrutiferamente, resolvi apelar à rede para fazer a primeira abordagem. Abri uma página no Orkut intitulada "Sou um Leitor Comum". No dia seguinte ele apareceu, deixando comentários. Trocamos emails. Ele gostou da proposta e marcamos de beber uma gelada num barzinho da Riachuelo, Lapa.
Cheguei um pouco mais cedo ao encontro, agendado para nove horas da noite. Sentei-me a uma mesa na calçada, uma dessas de plástico, com propaganda de cerveja. A cadeira também era de plástico, com braços e recosto. Prefiro essas às de metal, geralmente tortas e desconfortáveis. Era uma quarta-feira de verão. Fazia calor e as outras mesas estavam todas ocupadas por gente bebendo cerveja. A atmosfera lapiana, como de praxe, transpirava volúpia, me fazendo sentir um friozinho na barriga. Finalmente, eu pensava, excitado. Finalmente vou conhecer o Leitor Comum. Nenhum escritor brasileiro contemporâneo jamais o conheceu. Por isso não conseguem seduzi-lo. E assim ele continua comprando Paulo Coelho, Irving Wallace, Sidney Sheldon, e sei lá mais que besteirol.
Em seguida, pensei melhor e concluí que eu estava sendo preconceituoso; que, se eu continuasse raciocinando assim, nunca seria capaz de compreendê-lo. Planejei iniciar, a partir do dia seguinte, um estudo sobre os livros mais comprados pelo Leitor Comum. Seria um suplício inominável, mas eu tinha que me esforçar, se quisesse de fato atingir o LC e ficar rico. Ainda me pesava na consciência aquele jantar na casa da minha mãe, em que o marido da minha prima fez um comentário entusiasmado sobre o Código da Vinci. Não consegui evitar um olhar de desprezo e o tom de voz escarninho. Ele ficou visivelmente abatido. Hoje, recordando a cena, ponho-me em seu lugar. Eu pensaria assim (se eu fosse ele): "olha só o pedante, como é patético, invejoso; como se ele fosse capaz de escrever um romance tão bom; como se fosse capaz de vender mais de 40 milhões de livros".
A verdade é dura, mas precisamos encarar. Existe um déficit enorme de narrativa na literatura brasileira. Mesmo entre os medalhões, não temos nada de extraordinário em termos de trama. Além disso, o escritor brasileiro tem a mania de achar que, só porque leu muito, tornou-se superior ao comum dos mortais, quando, francamente, na maioria das vezes, suas leituras excessivas só serviram para lhe detonar a saúde física e mental. Veja os romancistas americanos: em geral são esbeltos, vigorosos, joviais, dão entrevistas na televisão, engajam-se em campanhas políticas. O Philiph Roth é uma exceção porque é judeu e os judeus são pessimistas – com fortes razões históricas para tal. Os escritores brasileiros, tirante o Marçal e o Reinaldo Moraes, costumam ser gordos, gagos, doentios, trêmulos, indecisos, apáticos, tímidos, com forte inclinação ao alcoolismo. Droga, estou generalizando, falando besteira, odeio isso. Apaguem da cabeça as últimas frases. Tenho que pensar mais claramente, mais cientificamente, se quiser de fato entender a cabeça do Leitor Comum - não é possível que...
Com licença, você é o Miguel do Rosário?
Olhei para o lado e para o alto e vi um sujeito mais pra baixo que pra alto, cabelo grande encrespado, bermudão colorido, havaianas, camisa branca - e um sorrisão imenso, desconcertante. O sorriso dele agarrava-se ao rosto como uma criança ao colo do pai, com fúria, medo, amor. Era um buraco, um abismo. Podia-se mergulhar naquele sorriso e se perder para sempre.
Desculpe, eu pensei que...
O apogeu do sorriso havia passado. Restava o seu crepúsculo, ainda glorioso, mas cuja luz declinava vertiginosamente. Um sorriso quase triste. Ele fez menção de se afastar. Eu o contive.
Sim, sou eu. Desculpe-me, estava distraído. Você é o Leitor Comum?
Levantei-me e estendi a mão. O sorriso ressurgiu com toda força, como um sol que desistisse de se pôr e voltasse, incoerentemente, a subir no horizonte. Ele aparentava uns trinta e poucos anos, tinha barba por fazer e parecia não ter muito dinheiro.
Pode me chamar de Leco!, respondeu, apertando-me a mão com energia. Sua voz elevava-se no início das frases e perdia vigor ao final. Reparando bem, era mais pra baixo, um metro e sessenta e cinco, e pesava um pouco acima do ideal. Os traços eram bem comuns e, apesar do rosto marcado por cicatrizes de uma antiga doença de pele, possuíam uma distinção quase bela. Talvez (a razão dessa beleza canhestra) fossem os olhos castanhos claros, atentos, puros, alegremente desconfiados – como quem se diverte com seus próprios temores. Talvez fosse o hiato irônico entre os dois dentões da frente.
Sentamo-nos. O garçom trouxe um copo para Leco e trocamos algumas frases sobre o calor, o bairro, nós mesmos. Leco enfim deu uma informação importante.
Eu tenho um ateliê aqui quase em frente. Sou artista plástico.
A frase gelou-me a espinha. Eu esperava tudo, menos um artista plástico. O Leitor Comum deveria ser engenheiro, funcionário público, professor, gerente de loja, dono de restaurante, estudante de medicina. Não podia ser outro artista. Consolei-me pensando que, ao menos, não era outro escritor. O consolo durou pouco:
Eu cometo uns poemas de vez em quando, disse Leco, enchendo seu próprio copo, após ter esperado em vão que eu o fizesse. Fiquei constrangido de ter me esquecido desta óbvia delicadeza, e sorri sem graça, à guisa de desculpas.
Verdade? Que livro você está lendo? perguntei, mudando de assunto. Enquanto enchia meu copo, refletia se cairia bem uma cachaça. O bar do Paulinho tinha uma excelente, por um bom preço. Eu estava com vontade de começar a beber a sério. Escuta, Leco, eu vou pedir uma cachaça. Você quer também?
Bem, Rosário, preciso dizer uma coisa... Estou completamente duro. Sabe como é, vida de artista no Brasil é foda.
Fica frio, você é meu convidado. Vamos beber.
Pedi cachaça, depois outra - e depois outra. E mais outra.
Aqui confesso o fiasco da minha empreitada, pelo menos até o momento. Eu e Leco bebemos cerveja e cachaça em grande quantidade, depois fomos a seu ateliê, quase em frente, e fumamos uns baseados. Havia trabalhos magníficos pendurados nas paredes, objetos que mesclavam materiais esdrúxulos: anúncios de igrejas evangélicas, placas de carro, bonecas de plástico, cabides, pedaços de computador e de celulares, e cada um tinha um tema, remetia a algum significado misterioso. Enquanto fumava, eu contemplava embevecido aquilo tudo. Pouco conversamos sobre literatura, e o pouco que fizemos não registrei devidamente, com certeza em virtude (melhor dizendo: pela falta de virtude) do excesso de substâncias bebidas e fumadas. Recordo apenas que ele disse estar lendo a biografia não-autorizada do Roberto Carlos. Tinha ficado curioso, só porque o Rei tentou proibi-la.
Marquei de encontrá-lo em outra oportunidade, quando espero colher mais dados. Pra dizer a verdade, tudo isso aconteceu ontem. Até agora, o único resultado da minha pesquisa sobre o Leitor Comum, além de uma grande ressaca, é a impressão – pela qualidade da luz filtrada pela cortina - de que já são umas cinco da tarde e que faltei a todos os compromissos do dia.
12 de março de 2007
Política de paisagens e catedrais
1 comentário
A medição clandestina das paisagens belas
se faz com réguas da inocência comprada
com o dinheiro obtido
no leilão dos sentimentos ambíguos
ou das catedrais, também conhecidas
em outros planetas
como erupções góticas
vulcões extintos
de onde jorrou cerveja
no tempo em que os monges
frequentavam tavernas
e amavam prostitutas
As políticas do império
que agulham o coração enegrecido
de fumo e desencanto
seriam suficientes para deter
a aurora líquida
que inunda a metrópole
com seu amor urgente?
Não há respostas
o sangue empoçado
é um sorriso falso
uma criança torturada
o vazio constrangido
do homem sóbrio
vinte mil pessoas
marchando na direção
de um violeta fanático
o espetáculo mórbido
de sombras em declínio
como o seio de uma jovem
no interior da minha boca
algo infinitamente frágil e louco
o calçadão enorme
de uma Copacabana endomingada
de sol, arrastões, liberdade
a violência almejada
catarse de um exílio
em fogo lento,
dez mil estrelas
ou montanhas
ou edificíos semi-destruídos
por guerras
amizades e casamentos
equivocados
olhares tortos
beijos de sal e filmes
assistidos pela metade
o mais duro, porém
é o muro, a escuridão
o anonimato das horas
o desgaste de tudo
mesmo do desespero
restando apenas
o fio de luz por baixo da porta
quando acordamos de ressaca
tristes e silenciosos
o fio de luz que anuncia
por seu brilho
exagerado, insano
que é mais
de meio-dia
7 de março de 2007
Homenagem ao dia da mulher
4 comentarios
Poesia sem titulo da Priscila Miranda
Tudo esta distante
todo mundo um dia
pensou em se matar
em dias sem cor
quando a garganta arde
e o coraçao vazio voa
Faço as malas e resolvo partir
a merda ja foi feita
e nao tem como voltar
mesmo se o dia se colore
serao outros, nove novos
O furo persiste em te maltratar
é a tua cabeça, a tua cabeça
que impulsiona o teu coraçao
rumo ao nada do dia sem cor
ao mar vermelho da poça de sangue
de um quarto vagabundo de hotel
Todo mundo um dia pensou em se matar
uns se matam
e outros matam.
Blog da Pri: http://breakfastnopantheon.blogspot.com/
(foto: Monica Bellucci)
6 de março de 2007
Vacilo do Janine
3 comentarios
O artigo do intelectual paulista-uspiano Renato Janine Ribeiro (link aqui) provocou polêmica. O blogueiro Reinaldo Azevedo tratou de aproveitar a tremendo derrapada do filosofo, que seria de esquerda, para morder o PT, Lula, etc, da maneira como lhe é usual, sendo pago pela Veja justamente para continuar fazendo o que sempre fez no tempo em que editava a revista Primeira Leitura - bancada, sempre é bom lembrar, com o dinheiro de trafico de influência da Nossa Caixa.
Fui ler o artigo e também fiquei horrorizado com a futilidade do mesmo. Não parece escrito, de maneira nenhuma, por um filosofo, mas por uma dona-de-casa ignorante e histérica. Quer dizer, a linguagem tem pose acadêmica e justificativas pseudo-teoricas de um filosofo, mas ha tempos que não lia nada tão anti-filosofico na minha vida. Na realidade, o artigo é quase um libelo nazista.
O Alberto Dines ainda resolveu comprar a briga, defendendo Janine. Não acho que Janine mereça ser linchado, mas é muito saudavel que ele se sinta pressionado a escrever outro artigo se desculpando por ter falado tanta asneira. Dines chama esse texto de Janine de filosofar em publico? Putz! Filosofar, isso? Nossa, esqueçam Kant, esqueçam Hegel, esqueçam Heidegger, esqueçam Socrates. Dines inventou uma nova filosofia, acessivel a espectadores de Faustão e leitores da Folha. É a nova filosofia popular! Viva!
Olha so o que Janine escreveu:
"Se não defendo a pena de morte contra os assassinos, é apenas porque acho que é pouco. Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda, como a que infligiram ao pobre menino. Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte. "
Perai, meu Deus. Que espécie de filosofo é esse? Parece mais um ex-delegado do tempo da ditadura escrevendo cartinha pro Globo. No resto do texto, ele vem com um papo meloso tentando justificar suas afirmações. Um negocio estranho, dizendo que "intelectual não é quem escreve, mas quem assina". Ta bom, mas intelectual não seria também justamente quem procura pensar acima de preconceitos e sentimentos mesquinhos, analisando os fatos à luz de analises racionais? Concordo que o sentimento é fundamental, mas o que Janine expressou não foi sentimento, e sim o mesmo tipo de barbarismo que os bandidos mostraram ao arrastarem o corpo do menino por sete quilômetros.
Tudo bem, existe toda essa polêmica em torno de causas sociais da violência - a esquerda achando que sim, a direita achando que não, e um bando de filisteus gritando em praça publica por castigos mais rigorosos. Minha opinião é que tem causas sociais sim, mas não são as unicas. Existem causas morais, agravadas pela situação social, disso tenho certeza, e me irrita a falta de nuance e o simplismo com que o debate sobre a violência descamba para torneios ideologicos sem pé nem cabeça. Ai acontece que a sociedade, em vez de discutir as causas da segurança publica, gasta tempo e tinta - e nossa paciência - ressuscitando a batida guerra fria entre esquerda-piedosa-com-bandidos-coitadinhos-tão-pobres e uma direita-vamos-acabar-com-a-raça-deles.
Mas esse texto do Janine significou a derrocada total do debate. Pior, o cara se considera de "esquerda" (pelo que entendi das criticas da direita) e me vêm com uma histeria nazista desse quilate? Shame on you, Janine, shame on you - para citar Michael Moore mandando ver contra Bush.
Em primeiro lugar, ele não viu a situação com clareza. Os bandidos são monstros, mas seu objetivo não era prender o menino ao carro. Aconteceu e eles não o soltaram. São monstros, sim, mas mesmo no inferno ha circulos e circulos, e muito pior são os psicopatas que, deliberadamente, planejadamente, torturam e matam crianças, como por exemplo, o caso recente da menina de um ano e meio violentada e morta, encontrada numa pia batismal. Esse foi um caso muito pior, a meu ver.
A morte do menino é barbara, repito, mas seria mais barbaro ainda se suas consequências forem essas: transformar nossos filosofos em defensores de torturas medievais.
Eu lembro do Valdirei, filho do zelador do meu prédio, contando as torturas que a policia fazia nos bandidos da baixada fluminense: enfiar agulhas quentes no pênis era uma delas. Eh esse tipo de coisa que Janine defende? Detalhe: anos depois o mesmo Valdirei morreu numa das chacinas frequentes organizadas pela policia fluminense... Nada estranho que o Mal dê as caras por aquelas bandas de vez em quando...
Infelizmente, não tenho mais tempo para me estender sobre o assunto. So digo o seguinte: mandou mal Janine, muito mal.
(ilustraçao: David, de Michelangelo)
2 de março de 2007
Mais debates inconsequentes...
10 comentarios
Humm... Essa tentativa de politizar a poesia é maior furada. Pura perda de tempo. Eu sou um dos caras mais politizados que conheço, à minha revelia, porque no fundo odeio política, editei por anos o tablóide impresso Arte & Política (o nome diz tudo), que depois virou site também, mas nunca ne passou pela cabeça politizar a poesia.
Abordo esse tema para dar uma certa continuidade ao post anterior, quando iniciei um debate com outro blogueiro, o Marcelo Moutinho. Pois bem, fui lá visitar meu conterrâneo e me deparo com outro post sobre o mesmo assunto. Moutinho foi num encontro de poetas, organizado pelo Prosa & Verso, e saiu de lá com a seguinte conclusão:
"Após assistir ao debate sobre poesia organizado recentemente pelo Prosa & Verso (dentro do projeto Prosa nas livrarias), encontrei mais argumentos para acreditar que o gênero, ao menos no Brasil, enreda-se cada vez mais em si mesmo. Explico: boa parte dos poetas escrevem para a leitura embevecida de outros poetas, seus pares, manipulando códigos e referências que impossibilitam o acesso ao poema por parte do chamado leitor comum. "
Moutinho usa como suporte um artigo de Nelson Ascher, para a Folha, intitulado O Fim da Poesia. O artigo termina assim:
"É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular? Por sorte, o futuro a deus pertence e as tendências que abriga não são facilmente desvendáveis. Muito depende do empenho dos próprios poetas, naturalmente, de sua capacidade de reconhecer que sua arte, se bem que nutra inúmeras outras, talvez esteja beirando a extinção. O papel do público, porém, não pode ser ignorado e tudo, no último século, aponta para consumidores cada vez mais preguiçosos, cada vez mais sequiosos de um prazer fácil, repetitivo e que não envolva maiores esforços. Como convencer um público sedado por uma satisfação pré-digerida de que há, sim, prazeres maiores, mas que desfrutá-los requer trabalho, empenho e suor? "
Bem, se tiveram tempo, leiam o artigo inteiro, lá no blog do Moutinho, postado no dia 02/03.
Desculpe, Marcelo, mas esse texto do Ascher, embora escrito com elegância, está mais furado que o orçamento do Pan 2007. Sinceramente, não entendi onde ele queria chegar. Fazer a poesia novamente importante e popular? Hã? Poesia popular? Se você vir falar do romance, e defender um romance brasileiro um pouco mais popular, tudo bem. Eu compreendo, embora tenha tentado explicar meu ponto-de-vista, que o romance contemporâneo enveredou por essa via individualista, lírica ou pseudo-lírica, egocêntrica, por uma busca natural de autenticidade e verossimilhança. Falar de si mesmo, para um escritor, não é somente egocentrismo, mas sinceridade e coragem, a tentativa de abordar o único assunto que ele domina mais que qualquer outro. Existe muita porcaria? Existe? Muito pilantra que sacou isso? Existe. Esta é uma tendência um tanto sufocante e que constrói mais obstáculos que pontes com o leitor? Sim. Concordo contigo, seria um tanto saudável iniciarmos um caminho de volta, tentando fazer romances mais acessíveis, etc, mas acho que esse é um papo um tanto inútil. Ora, romance acessível? Soa como um romance ruim. Se eu escrever um romance e alguém o elogiar dizendo apenas que ele é acessível, acho que vou chorar.
Agora, poesia popular? Você diz que a poesia está se "enredando-se em si mesmo" e que "parte dos poetas escrevem para a leitura embevecida de outros poetas, seus pares, manipulando códigos e referências que impossibilitam o acesso ao poema por parte do chamado leitor comum".
Ora, pra mim, você está se preocupando à tôa. Ou antes, está procurando poeta apenas nos cadernos da Folha ou Globo. A mesma coisa que faz o Ascher, que aliás fala muita bobagem, como Drummond passou a escrever "sonetos" - ora, Drummond fazia o que lhe dava na telha, e o verso branco não foi nenhuma tentativa de "popularizar" a poesia, mas uma conquista estética que, aqui no Brasil, chegou um tanto atrasada. No século XIX, Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud e uma penca de outros gênios já praticavam o verso branco.
Outra, concordo que o parnasiamismo era uma merda mesmo, mas qualificar o simbolismo como "turíbulos, missais e castos aromas de incenso", como fez o Ascher, é desconhecer completamente a beleza perturbadora de um Cruz e Souza. Pra ser franco, o modernismo é que tem muita besteira. Muita coisa do que eles vomitavam como poesia "tropical", ou poesia coloquial, era simplesmente má poesia. O grande erro do modernismo, a meu ver, foi esse ufanismo hipócrita, de riquinhos paulistas. "Os pés em Pernambuco, a mente na imensidão", esse era o lema do Chico Science, e acho que é mais por aí do que aquelas abrobrinhas modernistas.
Além disso, um enredamento em si mesmo não constitui de forma nenhuma um defeito, mas uma caracteristica capital da poesia moderna, desde Rimbaud, Silvia Plath até Fernando Pessoa. Dentro de si mesmo, o poeta descobre o universal. Quando o poeta mergulha em si mesmo, ele mergulha na alma do homem, da humanidade. Se ele escreve para outros poetas? Não sei, acho que é ainda pior. O poeta escreve para si mesmo. Mas isso não tem importância. Se a poesia for boa, se contiver imagens, símbolos, beleza, ela encontrará eco e leitores, não somente em sua época, mas principalmente ao longo da história da cultura.
Tem muito poeta bom por aí, meu chapa. Essa mania de achar que a realidade é só o que está em evidência no Globo é que é foda. Tenho nada contra o Globo não. Quer dizer, até tinha, mas fiz as pazes, perdoei. Até o botei o link do Globo lá em cima, para facilitar a mim mesmo. Mas não podemos achar que a realidade é só o que o Globo mostra. Aí a culpa não é do Globo, é nossa mesmo. Por exemplo, temos o Armando Freitas Filho, grande poeta. A poesia morreu? Temos o Manoel de Barros, muito interessante para quem gosta. A poesia tá morrendo? O Mano Melo não tem só aquelas coisas de "vou comer a Madonna" não, que ele recitava nas festas para ganhar dinheiro - ele tem muita coisa fenomenal. E tem os verdadeiramente marginais (o Ascher, pelo jeito, nunca passou fome ou vendeu xerox na rua e, por isso, é incapaz de distinguir um poeta marginal; para ele, marginal é apenas uma etiqueta, conforme de fato foi na bata hippie de alguns...), como o Brasil Barreto, o Planchet, o Flavio Mello, o Silvio Barros...
E não julgue os poetas apenas pelos poemas linkados não, porque a principal característica do poeta "marginal" é justamente a sua irregularidade, a sua prolixidade. Falo de poetas que estão há décadas na labuta, e têm coisas lindas.
E ninguém está preocupado em fazer poesia popular não. Quem se preocupa em fazer poesia popular é rico com complexo de culpa, como diria Joãozinho Trinta. O poeta popular quer fazer poesia universal, luxuosa, erudita. De qualquer forma, a musica brasileira atende maravilhosamente qualquer anseio de poesia popular. As letras de Cartola, Noel, Luiz Gonzaga, dentre muitos outros, constituem um patrimônio enorme, bastante satisfatorio, de poesia popular; sem necessidade, portanto, de lamurias sobre uma eventual carência de poesia popular no Brasil, como faz Ascher.
Os poetas marginais - mantenho o termo apenas por uma questão de entendimento do texto - são profundamente vividos; vivem no meio do povo, além de serem mais eruditos do que suas barbas por fazer, seus cabelos grandes e seus vícios possam sugerir. Já passei noites na Lapa com vários desses poetas, nos lugares mais sinistros, conversando sobre Eliot, Dylan Thomas, Roberto Piva (outro que não podemos esquecer, e cuja lembrança faria ruir toda a frágil argumentação do Ascher), Rimbaud, etc, etc.
Sem contar que o Ascher citou apenas os mais óbvios. Cadê o Quintana, o Leminsky, o Piva? E esse pessimismo barato com que Ascher terminar o texto, que não ouso nem denominar "pessimismo de botequim", porque seria ofender o botequim? Chamo de pessimismo de "boiola", com todo respeito, por falta de melhor expressão. Ora, poesia sempre foi consumida por poucos, desde a Antiguidade. Houve, em alguns momentos, em alguns países, alguns poetas que se tornaram muito populares (Walt Whitman, Li Po, Drummond, Neruda), mas isso é exceção, não a regra, e pressupõe o gênio e não qualquer predisposição socio-cultural ou especial condescendência da crítica literária. Se existe uma massa ignara que não consome poesia, existe também um segmento importante que ama a poesia, e somente o fato do Ascher pretender possuir leitores para sua coluna é uma prova disso. As populações mundiais aumentaram muito nas últimas décadas. Com isso, se o público leitor não constitui a maioria e mesmo se corresponde a um percentual declinante da sociedade, em números absolutos ele nunca foi tão grande.
Não queria dizer isso, mas é inevitável. A mídia é um monstro. Tento ver a coisa sem maniqueísmo, preconceito ideológico, até com certo fatalismo. Mas que é um monstro é. Por sua natureza, ela precisa simplificar tudo, de forma devastadora. Ela quer simplificar a poesia brasileira, um vasto e complexo universo, com milhares de poetas e tipos de poesia, num ensaio de uma lauda e meia escrito por um jornalista da Folha. O pior é que a própria classe artística, por indolência, compra essas teses, essas simplificações. Tem outra, a mídia não publica mais poesia. Ela deve ter sua razões comerciais e editoriais para tal, mas, enfim, o fato é que não publica nem poesia nem literatura.
Bem, o assunto rendeu, eu me diverti à pampa. Relevem eventuais contradições, pois o tema é contraditório. Deixo a palavra com quem realmente entende do assunto:
A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.
Dylan Thomas
*
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos
Roberto Piva
*
O primeiro verde da natureza é dourado,
Para ela, seu tom mais difícil de fixar.
Sua primeira folha é uma flor,
Mas somente por um instante.
Então, folha se rende à folha
E o Paraíso recai na dor.
A alvorada se torna dia,
O ouro morre em agonia.
Robert Frost
*
Bebo sozinho ao luar
Entre as flores há um jarro de vinho.
Sou o único a beber: não tenho aqui nenhum amigo.
Levanto a minha taça, oferecendo-a à lua:
com ela e a minha sombra, já somos três pessoas.
Li Po
(Ilustração: William Blake)
Abordo esse tema para dar uma certa continuidade ao post anterior, quando iniciei um debate com outro blogueiro, o Marcelo Moutinho. Pois bem, fui lá visitar meu conterrâneo e me deparo com outro post sobre o mesmo assunto. Moutinho foi num encontro de poetas, organizado pelo Prosa & Verso, e saiu de lá com a seguinte conclusão:
"Após assistir ao debate sobre poesia organizado recentemente pelo Prosa & Verso (dentro do projeto Prosa nas livrarias), encontrei mais argumentos para acreditar que o gênero, ao menos no Brasil, enreda-se cada vez mais em si mesmo. Explico: boa parte dos poetas escrevem para a leitura embevecida de outros poetas, seus pares, manipulando códigos e referências que impossibilitam o acesso ao poema por parte do chamado leitor comum. "
Moutinho usa como suporte um artigo de Nelson Ascher, para a Folha, intitulado O Fim da Poesia. O artigo termina assim:
"É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular? Por sorte, o futuro a deus pertence e as tendências que abriga não são facilmente desvendáveis. Muito depende do empenho dos próprios poetas, naturalmente, de sua capacidade de reconhecer que sua arte, se bem que nutra inúmeras outras, talvez esteja beirando a extinção. O papel do público, porém, não pode ser ignorado e tudo, no último século, aponta para consumidores cada vez mais preguiçosos, cada vez mais sequiosos de um prazer fácil, repetitivo e que não envolva maiores esforços. Como convencer um público sedado por uma satisfação pré-digerida de que há, sim, prazeres maiores, mas que desfrutá-los requer trabalho, empenho e suor? "
Bem, se tiveram tempo, leiam o artigo inteiro, lá no blog do Moutinho, postado no dia 02/03.
Desculpe, Marcelo, mas esse texto do Ascher, embora escrito com elegância, está mais furado que o orçamento do Pan 2007. Sinceramente, não entendi onde ele queria chegar. Fazer a poesia novamente importante e popular? Hã? Poesia popular? Se você vir falar do romance, e defender um romance brasileiro um pouco mais popular, tudo bem. Eu compreendo, embora tenha tentado explicar meu ponto-de-vista, que o romance contemporâneo enveredou por essa via individualista, lírica ou pseudo-lírica, egocêntrica, por uma busca natural de autenticidade e verossimilhança. Falar de si mesmo, para um escritor, não é somente egocentrismo, mas sinceridade e coragem, a tentativa de abordar o único assunto que ele domina mais que qualquer outro. Existe muita porcaria? Existe? Muito pilantra que sacou isso? Existe. Esta é uma tendência um tanto sufocante e que constrói mais obstáculos que pontes com o leitor? Sim. Concordo contigo, seria um tanto saudável iniciarmos um caminho de volta, tentando fazer romances mais acessíveis, etc, mas acho que esse é um papo um tanto inútil. Ora, romance acessível? Soa como um romance ruim. Se eu escrever um romance e alguém o elogiar dizendo apenas que ele é acessível, acho que vou chorar.
Agora, poesia popular? Você diz que a poesia está se "enredando-se em si mesmo" e que "parte dos poetas escrevem para a leitura embevecida de outros poetas, seus pares, manipulando códigos e referências que impossibilitam o acesso ao poema por parte do chamado leitor comum".
Ora, pra mim, você está se preocupando à tôa. Ou antes, está procurando poeta apenas nos cadernos da Folha ou Globo. A mesma coisa que faz o Ascher, que aliás fala muita bobagem, como Drummond passou a escrever "sonetos" - ora, Drummond fazia o que lhe dava na telha, e o verso branco não foi nenhuma tentativa de "popularizar" a poesia, mas uma conquista estética que, aqui no Brasil, chegou um tanto atrasada. No século XIX, Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud e uma penca de outros gênios já praticavam o verso branco.
Outra, concordo que o parnasiamismo era uma merda mesmo, mas qualificar o simbolismo como "turíbulos, missais e castos aromas de incenso", como fez o Ascher, é desconhecer completamente a beleza perturbadora de um Cruz e Souza. Pra ser franco, o modernismo é que tem muita besteira. Muita coisa do que eles vomitavam como poesia "tropical", ou poesia coloquial, era simplesmente má poesia. O grande erro do modernismo, a meu ver, foi esse ufanismo hipócrita, de riquinhos paulistas. "Os pés em Pernambuco, a mente na imensidão", esse era o lema do Chico Science, e acho que é mais por aí do que aquelas abrobrinhas modernistas.
Além disso, um enredamento em si mesmo não constitui de forma nenhuma um defeito, mas uma caracteristica capital da poesia moderna, desde Rimbaud, Silvia Plath até Fernando Pessoa. Dentro de si mesmo, o poeta descobre o universal. Quando o poeta mergulha em si mesmo, ele mergulha na alma do homem, da humanidade. Se ele escreve para outros poetas? Não sei, acho que é ainda pior. O poeta escreve para si mesmo. Mas isso não tem importância. Se a poesia for boa, se contiver imagens, símbolos, beleza, ela encontrará eco e leitores, não somente em sua época, mas principalmente ao longo da história da cultura.
Tem muito poeta bom por aí, meu chapa. Essa mania de achar que a realidade é só o que está em evidência no Globo é que é foda. Tenho nada contra o Globo não. Quer dizer, até tinha, mas fiz as pazes, perdoei. Até o botei o link do Globo lá em cima, para facilitar a mim mesmo. Mas não podemos achar que a realidade é só o que o Globo mostra. Aí a culpa não é do Globo, é nossa mesmo. Por exemplo, temos o Armando Freitas Filho, grande poeta. A poesia morreu? Temos o Manoel de Barros, muito interessante para quem gosta. A poesia tá morrendo? O Mano Melo não tem só aquelas coisas de "vou comer a Madonna" não, que ele recitava nas festas para ganhar dinheiro - ele tem muita coisa fenomenal. E tem os verdadeiramente marginais (o Ascher, pelo jeito, nunca passou fome ou vendeu xerox na rua e, por isso, é incapaz de distinguir um poeta marginal; para ele, marginal é apenas uma etiqueta, conforme de fato foi na bata hippie de alguns...), como o Brasil Barreto, o Planchet, o Flavio Mello, o Silvio Barros...
E não julgue os poetas apenas pelos poemas linkados não, porque a principal característica do poeta "marginal" é justamente a sua irregularidade, a sua prolixidade. Falo de poetas que estão há décadas na labuta, e têm coisas lindas.
E ninguém está preocupado em fazer poesia popular não. Quem se preocupa em fazer poesia popular é rico com complexo de culpa, como diria Joãozinho Trinta. O poeta popular quer fazer poesia universal, luxuosa, erudita. De qualquer forma, a musica brasileira atende maravilhosamente qualquer anseio de poesia popular. As letras de Cartola, Noel, Luiz Gonzaga, dentre muitos outros, constituem um patrimônio enorme, bastante satisfatorio, de poesia popular; sem necessidade, portanto, de lamurias sobre uma eventual carência de poesia popular no Brasil, como faz Ascher.
Os poetas marginais - mantenho o termo apenas por uma questão de entendimento do texto - são profundamente vividos; vivem no meio do povo, além de serem mais eruditos do que suas barbas por fazer, seus cabelos grandes e seus vícios possam sugerir. Já passei noites na Lapa com vários desses poetas, nos lugares mais sinistros, conversando sobre Eliot, Dylan Thomas, Roberto Piva (outro que não podemos esquecer, e cuja lembrança faria ruir toda a frágil argumentação do Ascher), Rimbaud, etc, etc.
Sem contar que o Ascher citou apenas os mais óbvios. Cadê o Quintana, o Leminsky, o Piva? E esse pessimismo barato com que Ascher terminar o texto, que não ouso nem denominar "pessimismo de botequim", porque seria ofender o botequim? Chamo de pessimismo de "boiola", com todo respeito, por falta de melhor expressão. Ora, poesia sempre foi consumida por poucos, desde a Antiguidade. Houve, em alguns momentos, em alguns países, alguns poetas que se tornaram muito populares (Walt Whitman, Li Po, Drummond, Neruda), mas isso é exceção, não a regra, e pressupõe o gênio e não qualquer predisposição socio-cultural ou especial condescendência da crítica literária. Se existe uma massa ignara que não consome poesia, existe também um segmento importante que ama a poesia, e somente o fato do Ascher pretender possuir leitores para sua coluna é uma prova disso. As populações mundiais aumentaram muito nas últimas décadas. Com isso, se o público leitor não constitui a maioria e mesmo se corresponde a um percentual declinante da sociedade, em números absolutos ele nunca foi tão grande.
Não queria dizer isso, mas é inevitável. A mídia é um monstro. Tento ver a coisa sem maniqueísmo, preconceito ideológico, até com certo fatalismo. Mas que é um monstro é. Por sua natureza, ela precisa simplificar tudo, de forma devastadora. Ela quer simplificar a poesia brasileira, um vasto e complexo universo, com milhares de poetas e tipos de poesia, num ensaio de uma lauda e meia escrito por um jornalista da Folha. O pior é que a própria classe artística, por indolência, compra essas teses, essas simplificações. Tem outra, a mídia não publica mais poesia. Ela deve ter sua razões comerciais e editoriais para tal, mas, enfim, o fato é que não publica nem poesia nem literatura.
Bem, o assunto rendeu, eu me diverti à pampa. Relevem eventuais contradições, pois o tema é contraditório. Deixo a palavra com quem realmente entende do assunto:
A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.
Dylan Thomas
*
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos
Roberto Piva
*
O primeiro verde da natureza é dourado,
Para ela, seu tom mais difícil de fixar.
Sua primeira folha é uma flor,
Mas somente por um instante.
Então, folha se rende à folha
E o Paraíso recai na dor.
A alvorada se torna dia,
O ouro morre em agonia.
Robert Frost
*
Bebo sozinho ao luar
Entre as flores há um jarro de vinho.
Sou o único a beber: não tenho aqui nenhum amigo.
Levanto a minha taça, oferecendo-a à lua:
com ela e a minha sombra, já somos três pessoas.
Li Po
(Ilustração: William Blake)
1 de março de 2007
Bate papo rápido e inconsequente sobre a literatura tupi
5 comentarios
Como você enxerga sua geração?
O escritor, entendido como aquela figura do observador da rua, está morrendo. A maioria dos novos escritores que estão em foco dos cadernos literários é formada por pessoas mais preocupadas com a forma que o conteúdo. Os temas estão cada vez mais egoístas: giram em torno da própria literatura ou do umbigo dos autores. A única marca perceptível, se é que existe uma que identifique esta geração, é a aproximação com o neo-naturalismo e com o roteiro de cinema. Os grandes dramas humanos pescados no cotidiano das calçadas não têm mais importância. A literatura está desumanizada porque muitas vezes os escritores não saem de casa, ficam o dia todo sentados na frente do computador.
Declaração de Marcelo Moutinho (foto), escritor carioca que acabou de lançar o livro Somos todos iguais nesta noite. O link é este (linkei tb ao lado):
http://pentimento.zip.net/
Observação rápida. Eu não concordo com isto. Já pensei assim também, não penso mais. Mas acho que a sacação dele é pertinente. Quando refletimos que livros contemporâneos, de gente badalada e tudo pela crítica, não vendem mais que 200 exemplares no Brasil, de fato alguma coisa está errada, e não adianta culpar o público. O escritor de fato se isolou em si mesmo. Eu não concordo com a afirmação, porém, porque eu vejo nesta literatura auto-centrada do escritor contemporâneo, "umbiguista", uma etapa natural da evolução narrativa nacional, uma tentativa de começar do zero, de construir uma nova verossimilhança e uma nova coerência. Em outras palavras, falar sobre assuntos que realmente conhecemos, o único que realmente conhecemos, nós mesmos. E olhe lá.
De fato, é preciso analisar friamente os fracassos e sucessos do romance brasileiro nos últimos anos. Em geral, há uma grande coleção de fracassos. Recentemente, temos alguns que estão conseguindo sair da ego-bolha, como o Marçal Aquino. Mas entre escrever mal fora da ego-bolha ou escrever bem dentro dela, é claro que o mais digno é continuar no quentinho, no conforto. Morando com a mãe, naturalmente. O único lugar seguro, fora a mamãe, é trabalhar pra Globo. Sei disso de cadeira, porque meu falecido pai trabalhou lá 15 anos, como jornalista, antes de montar negócio próprio e virar pobre.
O escritor como observador da rua, ou dos acontecimentos do país, estaria morrendo? Não acho. Acho que está dormindo. Ou de ressaca. Enquanto isso, verdade seja dita, o romance americano vem ganhando cada vez mais mercado no Brasil. Seis dos dez mais vendidos, nas estantes de ficção contemporânea, são norte-americanos. Eles falam da rua, eles contam histórias. De fato, urge acordar o escritor brasileiro, ou curar-lhe a ressaca com café forte sem açúcar.
A preocupação com a forma do escritor brasileiro realmente é uma coisa a se pensar. Muitas vezes é excessiva, cria mais obstáculos que pontes com o leitor. No entanto, é uma tradição latino-americana, é fruto de uma competição feroz. Como ser de outra forma no país que gerou Guimarães Rosa? Li outro dia uma entrevista do Marcio Souza - ele mesmo um romancista com uma contribuição importante para a literatura nacional - em que ele diz que o escritor brasileiro está "condenado à excelência". Isso num contexto de que não há tradição de escritor mediano no Brasil, nem na América Latina. Todos querem ser Faulkner.
No entanto, creio que esse debate sobre o que é e o que deveria ser a literatura brasileira está exaurido, ou quase, porque o tempo deixou claro, pelo menos para mim, que uma coisa é debater, outra é produzir. O debate ocupou muito o cenário nos anos 90 e início da década atual e o momento hoje é de produção. Produzir febrilmente. Alguns resultados bem interessantes estão aparecendo e o que foi produzido nos anos 90 hoje podemos contemplar com mais imparcialidade, separando o trigo do joio.
O papo sobre literatura, para quem gosta, é importante, mas como passa-tempo, entre uma cervejinha e outra. A prática é outros quinhentos. Deixemos a seriedade para os acadêmicos, que escrevem mal à pampa, diga-se de passagem, e não tem tido culhão, ou talento, de produzir crítica literária consequente. Como diria nosso grande filósofo, Abilio Diniz, "vamo que vamo!"
O escritor, entendido como aquela figura do observador da rua, está morrendo. A maioria dos novos escritores que estão em foco dos cadernos literários é formada por pessoas mais preocupadas com a forma que o conteúdo. Os temas estão cada vez mais egoístas: giram em torno da própria literatura ou do umbigo dos autores. A única marca perceptível, se é que existe uma que identifique esta geração, é a aproximação com o neo-naturalismo e com o roteiro de cinema. Os grandes dramas humanos pescados no cotidiano das calçadas não têm mais importância. A literatura está desumanizada porque muitas vezes os escritores não saem de casa, ficam o dia todo sentados na frente do computador.
Declaração de Marcelo Moutinho (foto), escritor carioca que acabou de lançar o livro Somos todos iguais nesta noite. O link é este (linkei tb ao lado):
http://pentimento.zip.net/
Observação rápida. Eu não concordo com isto. Já pensei assim também, não penso mais. Mas acho que a sacação dele é pertinente. Quando refletimos que livros contemporâneos, de gente badalada e tudo pela crítica, não vendem mais que 200 exemplares no Brasil, de fato alguma coisa está errada, e não adianta culpar o público. O escritor de fato se isolou em si mesmo. Eu não concordo com a afirmação, porém, porque eu vejo nesta literatura auto-centrada do escritor contemporâneo, "umbiguista", uma etapa natural da evolução narrativa nacional, uma tentativa de começar do zero, de construir uma nova verossimilhança e uma nova coerência. Em outras palavras, falar sobre assuntos que realmente conhecemos, o único que realmente conhecemos, nós mesmos. E olhe lá.
De fato, é preciso analisar friamente os fracassos e sucessos do romance brasileiro nos últimos anos. Em geral, há uma grande coleção de fracassos. Recentemente, temos alguns que estão conseguindo sair da ego-bolha, como o Marçal Aquino. Mas entre escrever mal fora da ego-bolha ou escrever bem dentro dela, é claro que o mais digno é continuar no quentinho, no conforto. Morando com a mãe, naturalmente. O único lugar seguro, fora a mamãe, é trabalhar pra Globo. Sei disso de cadeira, porque meu falecido pai trabalhou lá 15 anos, como jornalista, antes de montar negócio próprio e virar pobre.
O escritor como observador da rua, ou dos acontecimentos do país, estaria morrendo? Não acho. Acho que está dormindo. Ou de ressaca. Enquanto isso, verdade seja dita, o romance americano vem ganhando cada vez mais mercado no Brasil. Seis dos dez mais vendidos, nas estantes de ficção contemporânea, são norte-americanos. Eles falam da rua, eles contam histórias. De fato, urge acordar o escritor brasileiro, ou curar-lhe a ressaca com café forte sem açúcar.
A preocupação com a forma do escritor brasileiro realmente é uma coisa a se pensar. Muitas vezes é excessiva, cria mais obstáculos que pontes com o leitor. No entanto, é uma tradição latino-americana, é fruto de uma competição feroz. Como ser de outra forma no país que gerou Guimarães Rosa? Li outro dia uma entrevista do Marcio Souza - ele mesmo um romancista com uma contribuição importante para a literatura nacional - em que ele diz que o escritor brasileiro está "condenado à excelência". Isso num contexto de que não há tradição de escritor mediano no Brasil, nem na América Latina. Todos querem ser Faulkner.
No entanto, creio que esse debate sobre o que é e o que deveria ser a literatura brasileira está exaurido, ou quase, porque o tempo deixou claro, pelo menos para mim, que uma coisa é debater, outra é produzir. O debate ocupou muito o cenário nos anos 90 e início da década atual e o momento hoje é de produção. Produzir febrilmente. Alguns resultados bem interessantes estão aparecendo e o que foi produzido nos anos 90 hoje podemos contemplar com mais imparcialidade, separando o trigo do joio.
O papo sobre literatura, para quem gosta, é importante, mas como passa-tempo, entre uma cervejinha e outra. A prática é outros quinhentos. Deixemos a seriedade para os acadêmicos, que escrevem mal à pampa, diga-se de passagem, e não tem tido culhão, ou talento, de produzir crítica literária consequente. Como diria nosso grande filósofo, Abilio Diniz, "vamo que vamo!"
Sobre o Arte & Politica
Seja o primeiro a comentar!
O site Arte & Politica está fora do ar há algum tempo, e deve permanecer assim por período indeterminado. A tecnologia blog, a meu ver, é mais conveniente para o tipo de trabalho que venho fazendo. Muito mais simples e, o que é mellhor, gratuito. Ontem, eu consegui permissão do provedor para baixar todos os arquivos importantes do AP. Se você lembra de algum texto ou entrevista publicado por lá e quer dar uma olhada, fala comigo. Eu criei um blog apenas pra publicar esses textos, o que servirá também como backup dos mesmos. Aos poucos vou arrumando o blog do AP, deixando ele mais bonito e publicando os arquivos antigos por lá. Por enquanto não tem nada.
http://arteepolitica.blogspot.com/
http://arteepolitica.blogspot.com/
Novidades
3 comentarios
Estou linkando ao lado, e aqui, o recém-inaugurado blog do Mão Branca, que há tempos luta e zoa nas escaramuças literárias da tupilândia virtual, e que também idealizou o Bar do Escritor.
Outro link é esse texto do Tiago Moreira, do Rasga Mortalha, sobre a estruturação da musica black no Brasil.
Crescimento modesto mas saudável merece comemoração, não lamúrias
1 comentário
O IBGE divulgou que o Brasil cresceu 2.9% em 2006. Tudo bem, foi pouco, admitiu Lula, mas foi melhor que o esperado. Na América Latina, só foi maior que o Haiti, vociferaram os críticos. Ok, vamos lá no Wikipédia ver o que é o Haiti: população, 8,5 milhões de habitantes; PIB, 12.94 bilhões de dólares em 2005. Agora o Brasil: 188 milhões de habitantes; PIB, 1.61 trilhão de dólares em 2006. A comparação, portanto, é besta. O Brasil é a nona economia do mundo. E, neste grupo, cresceu mais que Alemanha, França e Japão. Cresceu apenas um pouco menos que os EUA (+3,3%) e, claro, bem menos que a China, que tem uma população de 1,3 bilhão em pleno êxtase de descoberta do capitalismo.
Particularmente, sou bem desconfiado em relação à essa febre patriótica da mídia corporativa toda vez que se fala de crescimento do PIB. Nunca vejo essa mesma febre quando temos assuntos bem mais importantes: distribuição de renda, redução da miséria, aumento da renda do trabalhador e melhora dos índices de educação. O fato é que, nestes pontos, o Brasil está dando lição em toda América Latina. Notem que incluí o item educação. Explico. A educação pública brasileira ainda está uma porcaria. A ditadura militar e, depois, os governos liberais, destruiram a nossa educação, que nunca foi mesmo grande coisa. Tínhamos centros de excelência em algumas capitais e um nível razoável nas cidades médias pra cima. Mas não esqueçamos que, até os anos 60, o Brasil tinha uma analfabetismo de 40%. Hoje é uns 10%, embora esse número seja um tanto polêmico, por causa do conceito hoje mais em voga, do analfabetismo funcional, que chega a quase 70% no Brasil. Entretanto, tenho uma idéia sobre a educação que é a seguinte: a estabilização da economia e o aumento da renda dos professores (a custo de muitas greves), associado à melhora da situação econômica das camadas mais humildes, têm um potencial enorme para elevar o patamar cultural dessas últimas, possibilitando o surgimento de uma nova grande parcela de consumidores e produtores culturais que, por sua vez, pode contribuir positivamente para o fortalecimento da cultura e da educação no país.
O mais importante, porém, é que, se o PIB geral cresceu 2,9% em 2006, o PIB dos pobres cresceu muito mais. A renda média das famílias também cresceu bem mais que isso.
Leiam esse trecho do texto do IBGE, divulgado ontem (28/02), que mostra como o crescimento foi diversificado:
"A agropecuária teve, em 2006, um crescimento de 3,2%, recuperando-se em relação ao ano anterior, quando havia crescido 0,8%. Dentre os subsetores da indústria (3,0%), a maior alta ocorreu na extrativa mineral (5,6%). Em seguida, contribuindo para o crescimento do setor industrial, vieram a construção civil (4,5%) e os serviços industriais de utilidade pública (3,3%). A indústria de transformação teve elevação de 1,9%. Entre os serviços (2,4%), as maiores elevações foram registradas nos subsetores comércio (4,0%), instituições financeiras (2,6%) e outros serviços (2,5%). Também apresentaram crescimento os subsetores transporte (2,2%), aluguéis (2,2%) e administração pública (2,1%). O subsetor de comunicações foi o único com variação negativa (-0,9%)."
Na América Latina, os único países com quem podemos nos comparar são México e Argentina, e mesmo assim, com alguma reserva. O México tem uma população de 108,7 milhões e um PIB de 1,191 trilhão de dólares (2005), enquanto a Argentina tem 40,0 milhões de habitantes e PIB de 548,75 milhões de dólares (2005). Pelo tamanho de população, o México nos é mais próximo e, apesar dos crescentes laços com os EUA, cresceu apenas 3.2% no ano passado, sendo que uma boa parte do PIB mexicano é composto de remessas de imigrantes, legais e ilegais, que moram no poderoso vizinho do norte.
Já a Argentina, foi o país que mais cresceu em 2006, 8,7%, mas ela ainda se recupera de um verdadeiro colapso econômico, causado pelas mesmas políticas liberais que nossa mídia e nossa direita ainda defendem por aqui, e tem crescido seguindo o caminho oposto, com investimentos estatais pesados, aumento dos gastos públicos, elevação de salários à força de canetadas federais, e o governo Kirchnner é muito mais interventor na economia que o brasileiro.
A Venezuela, por sua vez, foi outro país que teve crescimento destacado em 2006, mais de 6%. Sobre ela, não digo muito, pois vocês estão cansados de ouvir falar dela, por conta do demônio vermelho - segundo a nossa imprensa - que a governa.
Em outras palavras, os países que mais cresceram na América Latina foram justamente aqueles cujos governos a nossa imprensa mais gosta de falar mal.
A guisa de conclusão, podemos dizer que o Brasil, por conta de sua população e PIB, teve um crescimento muito honesto em 2006, acompanhado de modesta mas firme queda na taxa de desemprego, uma vigorosa recuperação do salário mínimo, além do aumento dos investimentos sociais. E foi um crescimento saudável, com a menor inflação e a menor taxa de juros em décadas. Sem lamúrias, por favor. O momento vale uma modesta, feliz e orgulhosa comemoração.
PS: Nem vou comentar aqui a nova mesquinharia tupi, que é ficar comparando quanto gastou Lula em viagens internacionais com FHC. Enquanto FHC só viajava para EUA e Europa, muitas vezes para esmolar dinheiro do FMI, e seus ministros tiravam sapato e mostravam a bunda para autoridades americanas, Lula percorreu Africa (o primeiro a fazer isso), Oriente e América Latina e hoje o Brasil bate recordes de exportação e superávit - na época do FHC, era só déficit.
(na foto, Nelson Sargento, mostrando sua preocupação com o PIB brasileiro.
Particularmente, sou bem desconfiado em relação à essa febre patriótica da mídia corporativa toda vez que se fala de crescimento do PIB. Nunca vejo essa mesma febre quando temos assuntos bem mais importantes: distribuição de renda, redução da miséria, aumento da renda do trabalhador e melhora dos índices de educação. O fato é que, nestes pontos, o Brasil está dando lição em toda América Latina. Notem que incluí o item educação. Explico. A educação pública brasileira ainda está uma porcaria. A ditadura militar e, depois, os governos liberais, destruiram a nossa educação, que nunca foi mesmo grande coisa. Tínhamos centros de excelência em algumas capitais e um nível razoável nas cidades médias pra cima. Mas não esqueçamos que, até os anos 60, o Brasil tinha uma analfabetismo de 40%. Hoje é uns 10%, embora esse número seja um tanto polêmico, por causa do conceito hoje mais em voga, do analfabetismo funcional, que chega a quase 70% no Brasil. Entretanto, tenho uma idéia sobre a educação que é a seguinte: a estabilização da economia e o aumento da renda dos professores (a custo de muitas greves), associado à melhora da situação econômica das camadas mais humildes, têm um potencial enorme para elevar o patamar cultural dessas últimas, possibilitando o surgimento de uma nova grande parcela de consumidores e produtores culturais que, por sua vez, pode contribuir positivamente para o fortalecimento da cultura e da educação no país.
O mais importante, porém, é que, se o PIB geral cresceu 2,9% em 2006, o PIB dos pobres cresceu muito mais. A renda média das famílias também cresceu bem mais que isso.
Leiam esse trecho do texto do IBGE, divulgado ontem (28/02), que mostra como o crescimento foi diversificado:
"A agropecuária teve, em 2006, um crescimento de 3,2%, recuperando-se em relação ao ano anterior, quando havia crescido 0,8%. Dentre os subsetores da indústria (3,0%), a maior alta ocorreu na extrativa mineral (5,6%). Em seguida, contribuindo para o crescimento do setor industrial, vieram a construção civil (4,5%) e os serviços industriais de utilidade pública (3,3%). A indústria de transformação teve elevação de 1,9%. Entre os serviços (2,4%), as maiores elevações foram registradas nos subsetores comércio (4,0%), instituições financeiras (2,6%) e outros serviços (2,5%). Também apresentaram crescimento os subsetores transporte (2,2%), aluguéis (2,2%) e administração pública (2,1%). O subsetor de comunicações foi o único com variação negativa (-0,9%)."
Na América Latina, os único países com quem podemos nos comparar são México e Argentina, e mesmo assim, com alguma reserva. O México tem uma população de 108,7 milhões e um PIB de 1,191 trilhão de dólares (2005), enquanto a Argentina tem 40,0 milhões de habitantes e PIB de 548,75 milhões de dólares (2005). Pelo tamanho de população, o México nos é mais próximo e, apesar dos crescentes laços com os EUA, cresceu apenas 3.2% no ano passado, sendo que uma boa parte do PIB mexicano é composto de remessas de imigrantes, legais e ilegais, que moram no poderoso vizinho do norte.
Já a Argentina, foi o país que mais cresceu em 2006, 8,7%, mas ela ainda se recupera de um verdadeiro colapso econômico, causado pelas mesmas políticas liberais que nossa mídia e nossa direita ainda defendem por aqui, e tem crescido seguindo o caminho oposto, com investimentos estatais pesados, aumento dos gastos públicos, elevação de salários à força de canetadas federais, e o governo Kirchnner é muito mais interventor na economia que o brasileiro.
A Venezuela, por sua vez, foi outro país que teve crescimento destacado em 2006, mais de 6%. Sobre ela, não digo muito, pois vocês estão cansados de ouvir falar dela, por conta do demônio vermelho - segundo a nossa imprensa - que a governa.
Em outras palavras, os países que mais cresceram na América Latina foram justamente aqueles cujos governos a nossa imprensa mais gosta de falar mal.
A guisa de conclusão, podemos dizer que o Brasil, por conta de sua população e PIB, teve um crescimento muito honesto em 2006, acompanhado de modesta mas firme queda na taxa de desemprego, uma vigorosa recuperação do salário mínimo, além do aumento dos investimentos sociais. E foi um crescimento saudável, com a menor inflação e a menor taxa de juros em décadas. Sem lamúrias, por favor. O momento vale uma modesta, feliz e orgulhosa comemoração.
PS: Nem vou comentar aqui a nova mesquinharia tupi, que é ficar comparando quanto gastou Lula em viagens internacionais com FHC. Enquanto FHC só viajava para EUA e Europa, muitas vezes para esmolar dinheiro do FMI, e seus ministros tiravam sapato e mostravam a bunda para autoridades americanas, Lula percorreu Africa (o primeiro a fazer isso), Oriente e América Latina e hoje o Brasil bate recordes de exportação e superávit - na época do FHC, era só déficit.
(na foto, Nelson Sargento, mostrando sua preocupação com o PIB brasileiro.