Humm... Essa tentativa de politizar a poesia é maior furada. Pura perda de tempo. Eu sou um dos caras mais politizados que conheço, à minha revelia, porque no fundo odeio política, editei por anos o tablóide impresso Arte & Política (o nome diz tudo), que depois virou site também, mas nunca ne passou pela cabeça politizar a poesia.
Abordo esse tema para dar uma certa continuidade ao post anterior, quando iniciei um debate com outro blogueiro, o Marcelo Moutinho. Pois bem, fui lá visitar meu conterrâneo e me deparo com outro post sobre o mesmo assunto. Moutinho foi num encontro de poetas, organizado pelo Prosa & Verso, e saiu de lá com a seguinte conclusão:
"Após assistir ao debate sobre poesia organizado recentemente pelo Prosa & Verso (dentro do projeto Prosa nas livrarias), encontrei mais argumentos para acreditar que o gênero, ao menos no Brasil, enreda-se cada vez mais em si mesmo. Explico: boa parte dos poetas escrevem para a leitura embevecida de outros poetas, seus pares, manipulando códigos e referências que impossibilitam o acesso ao poema por parte do chamado leitor comum. "
Moutinho usa como suporte um artigo de Nelson Ascher, para a Folha, intitulado O Fim da Poesia. O artigo termina assim:
"É possível reverter essa queda e tornar a poesia novamente importante e popular? Por sorte, o futuro a deus pertence e as tendências que abriga não são facilmente desvendáveis. Muito depende do empenho dos próprios poetas, naturalmente, de sua capacidade de reconhecer que sua arte, se bem que nutra inúmeras outras, talvez esteja beirando a extinção. O papel do público, porém, não pode ser ignorado e tudo, no último século, aponta para consumidores cada vez mais preguiçosos, cada vez mais sequiosos de um prazer fácil, repetitivo e que não envolva maiores esforços. Como convencer um público sedado por uma satisfação pré-digerida de que há, sim, prazeres maiores, mas que desfrutá-los requer trabalho, empenho e suor? "
Bem, se tiveram tempo, leiam o artigo inteiro, lá no blog do Moutinho, postado no dia 02/03.
Desculpe, Marcelo, mas esse texto do Ascher, embora escrito com elegância, está mais furado que o orçamento do Pan 2007. Sinceramente, não entendi onde ele queria chegar. Fazer a poesia novamente importante e popular? Hã? Poesia popular? Se você vir falar do romance, e defender um romance brasileiro um pouco mais popular, tudo bem. Eu compreendo, embora tenha tentado explicar meu ponto-de-vista, que o romance contemporâneo enveredou por essa via individualista, lírica ou pseudo-lírica, egocêntrica, por uma busca natural de autenticidade e verossimilhança. Falar de si mesmo, para um escritor, não é somente egocentrismo, mas sinceridade e coragem, a tentativa de abordar o único assunto que ele domina mais que qualquer outro. Existe muita porcaria? Existe? Muito pilantra que sacou isso? Existe. Esta é uma tendência um tanto sufocante e que constrói mais obstáculos que pontes com o leitor? Sim. Concordo contigo, seria um tanto saudável iniciarmos um caminho de volta, tentando fazer romances mais acessíveis, etc, mas acho que esse é um papo um tanto inútil. Ora, romance acessível? Soa como um romance ruim. Se eu escrever um romance e alguém o elogiar dizendo apenas que ele é acessível, acho que vou chorar.
Agora, poesia popular? Você diz que a poesia está se "enredando-se em si mesmo" e que "parte dos poetas escrevem para a leitura embevecida de outros poetas, seus pares, manipulando códigos e referências que impossibilitam o acesso ao poema por parte do chamado leitor comum".
Ora, pra mim, você está se preocupando à tôa. Ou antes, está procurando poeta apenas nos cadernos da Folha ou Globo. A mesma coisa que faz o Ascher, que aliás fala muita bobagem, como Drummond passou a escrever "sonetos" - ora, Drummond fazia o que lhe dava na telha, e o verso branco não foi nenhuma tentativa de "popularizar" a poesia, mas uma conquista estética que, aqui no Brasil, chegou um tanto atrasada. No século XIX, Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Rimbaud e uma penca de outros gênios já praticavam o verso branco.
Outra, concordo que o parnasiamismo era uma merda mesmo, mas qualificar o simbolismo como "turíbulos, missais e castos aromas de incenso", como fez o Ascher, é desconhecer completamente a beleza perturbadora de um Cruz e Souza. Pra ser franco, o modernismo é que tem muita besteira. Muita coisa do que eles vomitavam como poesia "tropical", ou poesia coloquial, era simplesmente má poesia. O grande erro do modernismo, a meu ver, foi esse ufanismo hipócrita, de riquinhos paulistas. "Os pés em Pernambuco, a mente na imensidão", esse era o lema do Chico Science, e acho que é mais por aí do que aquelas abrobrinhas modernistas.
Além disso, um enredamento em si mesmo não constitui de forma nenhuma um defeito, mas uma caracteristica capital da poesia moderna, desde Rimbaud, Silvia Plath até Fernando Pessoa. Dentro de si mesmo, o poeta descobre o universal. Quando o poeta mergulha em si mesmo, ele mergulha na alma do homem, da humanidade. Se ele escreve para outros poetas? Não sei, acho que é ainda pior. O poeta escreve para si mesmo. Mas isso não tem importância. Se a poesia for boa, se contiver imagens, símbolos, beleza, ela encontrará eco e leitores, não somente em sua época, mas principalmente ao longo da história da cultura.
Tem muito poeta bom por aí, meu chapa. Essa mania de achar que a realidade é só o que está em evidência no Globo é que é foda. Tenho nada contra o Globo não. Quer dizer, até tinha, mas fiz as pazes, perdoei. Até o botei o link do Globo lá em cima, para facilitar a mim mesmo. Mas não podemos achar que a realidade é só o que o Globo mostra. Aí a culpa não é do Globo, é nossa mesmo. Por exemplo, temos o Armando Freitas Filho, grande poeta. A poesia morreu? Temos o Manoel de Barros, muito interessante para quem gosta. A poesia tá morrendo? O Mano Melo não tem só aquelas coisas de "vou comer a Madonna" não, que ele recitava nas festas para ganhar dinheiro - ele tem muita coisa fenomenal. E tem os verdadeiramente marginais (o Ascher, pelo jeito, nunca passou fome ou vendeu xerox na rua e, por isso, é incapaz de distinguir um poeta marginal; para ele, marginal é apenas uma etiqueta, conforme de fato foi na bata hippie de alguns...), como o Brasil Barreto, o Planchet, o Flavio Mello, o Silvio Barros...
E não julgue os poetas apenas pelos poemas linkados não, porque a principal característica do poeta "marginal" é justamente a sua irregularidade, a sua prolixidade. Falo de poetas que estão há décadas na labuta, e têm coisas lindas.
E ninguém está preocupado em fazer poesia popular não. Quem se preocupa em fazer poesia popular é rico com complexo de culpa, como diria Joãozinho Trinta. O poeta popular quer fazer poesia universal, luxuosa, erudita. De qualquer forma, a musica brasileira atende maravilhosamente qualquer anseio de poesia popular. As letras de Cartola, Noel, Luiz Gonzaga, dentre muitos outros, constituem um patrimônio enorme, bastante satisfatorio, de poesia popular; sem necessidade, portanto, de lamurias sobre uma eventual carência de poesia popular no Brasil, como faz Ascher.
Os poetas marginais - mantenho o termo apenas por uma questão de entendimento do texto - são profundamente vividos; vivem no meio do povo, além de serem mais eruditos do que suas barbas por fazer, seus cabelos grandes e seus vícios possam sugerir. Já passei noites na Lapa com vários desses poetas, nos lugares mais sinistros, conversando sobre Eliot, Dylan Thomas, Roberto Piva (outro que não podemos esquecer, e cuja lembrança faria ruir toda a frágil argumentação do Ascher), Rimbaud, etc, etc.
Sem contar que o Ascher citou apenas os mais óbvios. Cadê o Quintana, o Leminsky, o Piva? E esse pessimismo barato com que Ascher terminar o texto, que não ouso nem denominar "pessimismo de botequim", porque seria ofender o botequim? Chamo de pessimismo de "boiola", com todo respeito, por falta de melhor expressão. Ora, poesia sempre foi consumida por poucos, desde a Antiguidade. Houve, em alguns momentos, em alguns países, alguns poetas que se tornaram muito populares (Walt Whitman, Li Po, Drummond, Neruda), mas isso é exceção, não a regra, e pressupõe o gênio e não qualquer predisposição socio-cultural ou especial condescendência da crítica literária. Se existe uma massa ignara que não consome poesia, existe também um segmento importante que ama a poesia, e somente o fato do Ascher pretender possuir leitores para sua coluna é uma prova disso. As populações mundiais aumentaram muito nas últimas décadas. Com isso, se o público leitor não constitui a maioria e mesmo se corresponde a um percentual declinante da sociedade, em números absolutos ele nunca foi tão grande.
Não queria dizer isso, mas é inevitável. A mídia é um monstro. Tento ver a coisa sem maniqueísmo, preconceito ideológico, até com certo fatalismo. Mas que é um monstro é. Por sua natureza, ela precisa simplificar tudo, de forma devastadora. Ela quer simplificar a poesia brasileira, um vasto e complexo universo, com milhares de poetas e tipos de poesia, num ensaio de uma lauda e meia escrito por um jornalista da Folha. O pior é que a própria classe artística, por indolência, compra essas teses, essas simplificações. Tem outra, a mídia não publica mais poesia. Ela deve ter sua razões comerciais e editoriais para tal, mas, enfim, o fato é que não publica nem poesia nem literatura.
Bem, o assunto rendeu, eu me diverti à pampa. Relevem eventuais contradições, pois o tema é contraditório. Deixo a palavra com quem realmente entende do assunto:
A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.
Dylan Thomas
*
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos
Roberto Piva
*
O primeiro verde da natureza é dourado,
Para ela, seu tom mais difícil de fixar.
Sua primeira folha é uma flor,
Mas somente por um instante.
Então, folha se rende à folha
E o Paraíso recai na dor.
A alvorada se torna dia,
O ouro morre em agonia.
Robert Frost
*
Bebo sozinho ao luar
Entre as flores há um jarro de vinho.
Sou o único a beber: não tenho aqui nenhum amigo.
Levanto a minha taça, oferecendo-a à lua:
com ela e a minha sombra, já somos três pessoas.
Li Po
(Ilustração: William Blake)
2 de março de 2007
Mais debates inconsequentes...
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Mandou otimamente bem!
Miguel.
Acho realmente que a poesia tem se distanciado do popular, não tenho nada contra usar referências e códigos, mas na minha humilde opinião quando você linka um escrito com algo já produzido você fatalmente pressupõe que o leitor deva conhecer o que foi linkado.
Na minha opinião a poesia deve buscar caminhos atemporais e universais, falando de sentimentos humanos que podem acontecer em qualquer época e lugar. Isso não impede que haja uma poesia política e engajada, como a de Rosa Luxemburgo por exemplo, que não deixa de ser atemporal e universal.
O Brasil tem dois grandes exemplos de uma poesia simples, direta, e não menos sofisticada que as eruditas: Patativa do Assaré e Catulo da Paixão Cearense.
Abraço.
isso, tiago, gosto muito do patativa e do catulo, eles tem trabalhos muito bonitos e musicais. agora, eles tambem usam seus codigos. nao me refiro porém, ao sujeito que escreve usando referencias e codigos, mas sim usando versos furiosos, apaixonados, secos, umidos, metaforas fantasticas, liricas, enfim frases bonitas cujo valor deve ser avaliado pela intuiçao e nao pelo conceito.
valeu maick, nos fazemos o que podemos. abraço
Miguel, ou bem eu me expressei mal ou bem vc não entendeu o que eu escrevi. Nunca falei que não há poetas bons. É claro que há. Minha crítica ressoa uma crítica quase que geral de quem estuda ou lê muita literatura, admitida inclusive por parte dos próprios poetas: que a partir de um determinado momento histórico (não faz muito tempo), nossos poetas começaram a se valer mais das suas referências do que do espetáculo (belo e terrível) da vida. Escrevem tão-só para o embevecimento de seus pares. De forma que, para 'penetrar' num poema, o leitor precisa conhecer milhÕes de outros já escritos - ou ser poeta. É a isso que me refiro quando falo em "enredar em si mesmo", e não ao conflito do poeta com seu próprio eu, que é parte fundamental do processo de criação. Um exemplo: para se entender/sentir/sorver o que a Adélia Prado escreve não é preciso ter doutorado em literatura. Há uma tendência em se abandonar o simples, escondendo a falta de qualidade por detrás da referência. Nada a ver com política, bicho. Detesto panfletarismo sob forma literária.
Outra coisa, Miguel. Ter poucos leitores é algo com o qual qq autor brasileiro contemporâneo está acostumado. A literatura no Brasil é coisa para meia dúzia, infelizmente. Mas a questão da poesia é muito mais embaixo, também infelizmente: o interesse é quase nenhum.
P.S. Como não citei antes, cito agora. Gosto pacas de Paulo Henriques Britto, Bruna Beber, Henrique Rodrigues, Armando Freitas Filho...
Valeu, eu compreendi melhor agora. Na verdade eu tinha imaginado isso, mas enredar-se em si mesmo nao é a melhor forma de expressar isso e o assunto era bom demais para eu perder a oportunidade de fazer uma polemica . De qualquer forma, penso que o poeta que escreve so para seus pares, ou que baseia-se apenas em referencias literarias, é um poeta terrivelmente chato. influencias e referencias existem e o poeta deve tê-las, mas reservadamente em sua bagagem literaria.
Mas nao fique aborrecido comigo nao, por favor! Apenas usei seu post para levantar uma polemica e escrever sobre um tema que eu gosto muito. Abraço
Que aborrecido o quê, rapaz! Acho esse diálogo bacana pacas! Abs
Miguel,
aproveitando esta polêmica levantada, gostaria de lhe fazer um convite.
Sou editor do Jornal de Debates ( www.jornaldedebates.com.br ), portal de conteúdo colaborativo que colocou hoje em função do Dia Nacional da Poesia, o debate: 'A Poesia esta morrendo?', justamente usando essa brasa acesa pelo Nelson Ascher.
Convido-o para expor lá também o seu ponto de vista.
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