23 de agosto de 2008

Desintoxicação

Não tenho lido jornais nos últimos dias e constatei que ainda sou dependente da imprensa. Mesmo que negativamente. O ódio, se é ele que me mobiliza a ler editoriais que me irritam, é um narcótico que vicia. Quem odeia se submete ao objeto odiado. Há controvérsias sobre o valor do capital e do trabalho, mas ninguém discute o valor fundamental do tempo. Se invisto meu tempo em alguma coisa, portanto, é porque acredito nela.

A internet nos permitiu, no entanto, vislumbrar uma hipótese que, até pouco tempo, pareceria impossível: um mundo sem imprensa. Hoje, renomados e sisudos especialistas debatem a possibilidade do fim dos jornais, que seriam substituidos paulatinamente pela internet e sua miríade de sites genéricos e especializados.

Seria ingenuidade concluir que o fim da imprensa representaria um avanço e, pessoalmente, não acredito nisso: acho que a imprensa não morrerá, apenas mudará de plataforma. A visitação do site do Globo, hoje, supera largamente a tiragem do jornal. Entretanto, se a nova plataforma não trouxe mudança no perfil editorial, a experiência da leitura sofreu uma profunda transformação. Os leitores mudaram. É uma revolução ainda em seu início, mas que avança muito rápido.

Nesses dias sem ler jornal, senti uma espécie de síndrome de abstinência. Como tenho feito, nos últimos anos, um constante trabalho de contra-informação, tentando desconstruir as meia-verdades que a imprensa aplica nas veias da classe média, descobri-me, eu mesmo, também viciado nesta droga. Viciei-me em odiar, porque aprendi a transformar esse ódio em energia para escrever. Tornei-me uma usina contra-informativa cuja matéria-prima era a imprensa.

Bem, ao menos identifiquei o vício, e agora procurarei superá-lo. Quero continuar lendo jornais e praticando a contra-informação, mas sem dependência. Agora que tenho mais tempo, procurarei publicar aqui análises colhidas diretamente das fontes. Aliás, esta é outra grande revolução trazida pela internet. É possível "saltar" a imprensa e ir direto às fontes. Ao site da Bolsa de Nova York, ao Ministério do Trabalho, ao blog de um economista.

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Já que mencionei sobre minha saída do emprego, acho bom explicar isso melhor, para evitar confusão. Eu trabalhava para um site estrangeiro, fazendo o que eu sempre fiz, matérias sobre café. Nos últimos tempos, porém, tenho diversificado minhas atividades e escrito para outras revistas e sobre outros temas, além deste blog. O trabalho no referido site tomava-me tempo em demasia, que eu podia aplicar melhor em outra coisa. Andar de bicleta, por exemplo.

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Nesse tempo em que fiquei sem escrever, por causa do braço machucado, houve um dia em que me senti particularmente impelido a atualizar este blog. Vocês se lembram, certamente, de pesquisa recente do IBGE segundo a qual a classe média brasileira teria crescido fortemente e se tornado a mais numerosa do país. O Globo, no dia seguinte à pesquisa, foi buscar "especialistas" que afirmaram as seguintes barbaridades:

1) Que era preciso ver que profissões essas pessoas exerciam. O economista pôs em dúvida o "prestígio" das atividades desta nova classe média. Ele acrescenta que a classe média é tradicionalmente ligada ao setor de serviços e que operários não deveriam ser incluídos nessa faixa social.

2) Era preciso saber se as pessoas manteriam a sua renda. Quer dizer, se sua renda era estável e se continuariam na classe média.

Em relação à primeira, notei um preconceito babaca, que é infelizmente muito comum no Brasil. Há, de fato, uma classe média que descende diretamente dos escravocratas e que tem asco a qualquer ofício manual. Mas é idiota demais achar que alguém pode ser ou não da classe média porque é assessor de imprensa, mesmo ganhando a metade ou um terço do salário de um operário especializado. Esse cara é tão burro que não sabe que hoje, com as fábricas super-mecanizadas, os operários ganham muito mais que antes porque seu trabalho exige conhecimento e responsabilidade, visto que lidam com maquinários que custam milhões de dólares. O setor de serviços se proletarizou. Um jornalista comum, em começo de carreira, ganha verdadeira miséria, sem contar as mil e uma formas com que as empresas o ludibriam, desde a contratação em massa de estagiários até o abuso de horas extras não-remuneradas.

O meu prédio tem quatro porteiros. Qualquer minuto extra de trabalho é pago. Com o tempo, a hora extra é incorporada ao fundo de garantia e se o condomínio quiser demiti-lo, pagará uma pequena fortuna. Não estou julgando aqui se há exageros ou não na legislação trabalhista, mas apenas mostrando como o jornalista desceu na escala social, comparativamente à outros segmentos da classe trabalhadora. E como o setor de serviços deixou de ser, há tempos, um segmento privilegiado.

Sobre a segunda afirmação, trata-se de outra imbecilidade, além de parecer até uma toada de mau agouro. Sai pra lá, bode preto! Desde quando classe média tem segurança de que sua renda se manterá? Se acontecer uma crise, essa classe média pode voltar à classe baixa, ok. Mas enquanto isso não acontece, o Globo e seus economistas de olhos gordos podiam ter a gentileza de colocarem de lado seu inexplicável despeito e deixarem a nova classe média ser classe média.

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O Eduardo Guimarães está visitando o Equador e tem escrito inteligentes análises sobre a América Latina. Ele acusa a falta de integração política e cultural do continente. Concordo. Mas senti um pessimismo em seu texto que não se coaduna com a realidade. A integração está acontecendo, a num ritmo bastante promissor. O Lula tem priorizado as relações intra-americanas de uma forma como nenhum outro governante o fez. Nem Vargas nem JK. E os resultados já estão aparecendo. O comércio entre os países latino-americanos cresceu exponencialmente e o Mercosul já é o maior parceiro comercial do Brasil, emparelhando com EUA e Europa. Isso era impensável até pouco tempo. Em muitos setores, a Argentina é um parceiro mais importante que os EUA. Quem imaginaria isso nos anos 60 seria taxado de lunático. E comércio é importante sim, porque é através dele que se estruturam as relações políticas e culturais. Tanto é verdade que o Eduardo Guimarães está no Equador, escrevendo excelentes análises, por conta de seu trabalho como vendedor de auto-peças.

Nos últimos anos, aconteceram diversas reuniões históricas dos mandatários dos países sul-americanos. O governo brasileiro tem defendido uma aliança mais estreita entre os países e a proposta vem sendo recebida muito positivamente. Lula chegou a citar a possibilidade de uma moeda única no continente. Já foi criado um banco regional de desenvolvimento e a discussão em torno da aliança militar tem avançado rapidamente.

Como era de se esperar, porém, a mídia brasileira tem combatido encarniçadamente esses movimentos. É difícil compreender os motivos que levam donos de jornais a se posicionarem contra uma união que pode trazer dividendos a todos, inclusive a eles mesmos. A explicação, no entanto, é simples: poder. As mídias latino-americanas foram desapeadas do poder político e querem voltar. Na América Latina, a relação entre os políticos tradicionais e os proprietários de meios de comunicação de massa sempre foi intensa. Com a derrota dos candidatos apoiados pela mídia, esta ficou de fora das reuniões palacianas e perdeu a segurança que possuía de que seus eventuais deslizes não seriam investigados pelo governo. Por isso vem apelando para a histeria e para o golpismo.

Fico impressionado, por exemplo, com o caso do presidente Alvaro Uribe. Aí se vê claramente como as mídias corporativas são hipócritas e daninhas. Em qualquer outro país latino-americano, um presidente que se visse envolvido, por todos os lados, numa relação com os para-militares e narco-traficantes, seria deposto ou, no mínimo, enfrentaria uma severa crise política. Uribe não. Ele é o Aécio Neves colombiano. Totalmente blindado. Inclusive aqui no Brasil. Falou-se tanto do tal computador que teria "provas" de relação de Chávez com as Farc e depois descobrimos que elas consistiam numa anotação descontextualizada: Chávez - 300, que os gênios da mídia sul-americana logo interpretaram como 300 milhões de dólares. A mesma coisa com o Brasil. As relações de membros das Farc com petistas foram exploradas à larga pela famigerada Veja, mesmo sem haver nada de especialmente comprometedor. E Uribe, cujas ligações com para-militares e narco-traficantes são comprovadas (seu irmão foi preso, ministros caíram, o Supremo Tribunal aceitou denúncia), ainda é tratado como um menino bonzinho. As matérias do nosso famoso PIG não citam Uribe sem lembrarem, enfaticamente, que ele é um presidente muito "popular" na Colômbia. Mesmo que a matéria não tenha nada a ver com popularidade.

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Hoje à noite (23/08), lanço a primeira edição da Revista-Zine Manuskripto, um projeto bastante experimental e despretensioso. O evento acontecerá na rua Joaquim Silva 90, onde era o bar do seu Cláudio e hoje é o Bar do Zé. Quem tiver interessado em receber a revista pelo correio, são apenas R$ 2,00, mais o preço do correio. Peça nos comentários ou mande-me um email (migueldorosario arroba gmail ponto com).

3 comentarios

Anônimo disse...

Excelente texto, Miguel.

Miguel do Rosário disse...

falou jorge, voce é o jorge ferreira?

Anônimo disse...

Caro Miguel, não sou o Jorge Ferreira. Sou o Jorge Moretti. Um abraço.

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