20 de setembro de 2011

Péricles em Bonsucesso


(Parede do ateliê de Nilton Pinho, artista plástico carioca)

Tem um lugar aqui no Rio, chamado Buraco do Lacerda, no bairro de Bonsucesso, que passamos a usar, em família, como sinônimo de inferno urbano. Virou uma expressão meio mitológica para gente, motivo das piadas de humor negro que aplicamos o tempo todo um ao outro. Se eu ganhar muito dinheiro (digo a ela), vou poder comprar uma belíssima barraca para você trabalhar como vendedora ambulante no Buraco do Lacerda. Eventualmente, posso adquirir um apartamento nas adjacências, para você morar perto do trampo.

O lugar é realmente horrível. Sujo, destruído, fedido, sempre engarrafado, com poças de água podre na rua esburacada e bueiros vazando merda. Para completar o quadro dantesco, há sempre viciados de crack vagando pelo local, alguns segurando pedras ou barras de ferro, sabe-se lá porque.

Outro dia, um garoto (imagino que seja um garoto, espero que seja, para escrever algo tão idiota e ingênuo) publicou um enorme artigo no Segundo Caderno do Globo denunciando que os cariocas e o seu poder público estavam acabando com o maravilhoso caos da cidade. Ele referia-se - imagino - a instalação de unidades de segurança nos morros e às operações para trazer melhoramentos urbanos às favelas. O texto é todo cheio de metáforas gordurosas, o garoto deve ser um neto de Fernando Henrique Cardoso que depois de fumar uns baseados sentiu algo estranho e eufórico no estômago; ao invés de ir ao banheiro e descarregar a energia por lá pegou um laptop e mandou um texto para o Globo, que naturalmente adorou. A razão de ser do artigo é que, acabando o caos, o Rio sofreria grave prejuízo a nível literário e cinematográfico. Escritores e cineastas, diante de um Rio higienizado e resolvido, não teriam mais material para se inspirarem.

Ora, parabéns ao poder público pelas UPPs e UPAs, e às obras de urbanização, mas elas cobrem um percentual medíocre da cidade. O Rio tem caos, sujeira, horror e tragédia suficiente para algumas décadas. Admito que tive sentimentos diabólicos, bandidos, de ir ao encontro do tal rapaz, encostar-lhe uma arma na cabeça, e conduzi-lo encapuzado até o Buraco do Lacerda, largando-o por lá, no meio dos viciados de crack, para ele curtir e se inspirar bastante.

Essas fumaças de violência, porém, não passam disso, de fumaça. Sou um cara totalmente da paz. Se eu fosse colega do tal janota, não faria mais que atacá-lo com perdigotos cheios de sarcasmo, mas ainda sim amistosos, compreensivos e hipócritas...

Afinal a gente tem que ser democrático, não?

Eu pensava nisso depois de ler uma série de artigos sobre a democracia na Grécia Antiga, e particularmente um sobre Péricles, um dos grandes líderes da época de ouro da democracia ateniense.

Aliás, uma errata. Sabe a historinha sobre o cara que passou o dia ouvindo insultos de um sujeito, no caminho de casa ao trabalho, na ida e na volta, e que, à noite, ainda mandou seu empregado escoltar o sujeito até onde ele morava? Não era Julio César. Era Péricles. A história é contada, se não me engano, por Plutarco, e tem um significado especial, que é mostrar a tolerância de Péricles para com seus adversários políticos, mesmo os oligarcas e aristocratas mais odiosos.

Segundo o artigo de Anne Bernet, publicado na revista História Viva, Péricles desarmou seus críticos com a seguinte afirmação:

Qualquer um que vise os mais nobres objetivos deve aceitar a hostilidade, e tem razão em fazê-lo, pois a cólera não dura muito tempo, enquanto a celebridade assegura a glória eterna.

A postura de Péricles (com o sujeito que o insultava e a sua fé na tolerância) me faz pensar em nossas lutas ideológicas domésticas, onde os jornalões figuram como a vanguarda mais agressiva do exército do conservadorismo, e os blogueiros, seus adversários mais aguerridos.

Por exemplo, hoje, no Globo, há um artigo de Rodrigo Constantino, intitulado "Às ruas!", onde mais uma vez constatamos a gana com que setores da imprensa tentam beber no pote da justa indignação popular.

No entanto, a imprensa privada tem o pleno direito, garantido na Constituição e em nossos valores democráticos, de apoiar a bandeira que lhe convir. Tem até mesmo o direito à hostilidade, e não acho que devamos mais nos estressar em demasia com isso. Assim como qualquer cidadão, a imprensa tem o direito de denunciar o poder público e externar seu ódio aos valores e ideias que considera nocivos ao país e ao mundo.

Tem um livro de Maquiavel menos famoso que O Príncipe, mas que na verdade é a sua melhor obra: Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, em que o florentino revela-se, decididamente, um entusiasta da democracia e da liberdade política. Nessa obra, há um trecho intitulado: Quanto le accuse sono utili alle republiche, tanto sono perniziose le calunnie. Não precisa nem traduzir, né? Na verdade, o título já diz tudo. Maquiavel traz exemplos da história antiga para provar a sua teoria, que será a mesma de Montesquiet, no Espírito das Leis: a calúnia deve ser combatida a todo custo, porque ela envenena o próprio coração da democracia, que é a liberdade de expressão. Ou seja, os caluniadores são os piores parasitas da democracia, porque eles semelham a um fascínora que se aproveita de um ambiente onde se permite que todos usem armas em público, desde que não as usem uns contra os outros, para violar essa regra sagrada e assassinar a reputação de um colega.

A solução é complexa, como ocorre com todas as coisas realmente importantes na vida. A captura e a punição a um caluniador mexe com os fundamentos morais de uma democracia, um sistema político até hoje instável ideologicamente, sempre se equilibrando, com dificuldade, entre os repuxões brutais dos defensores da igualdade política, à esquerda, e da liberdade, à direita. E, no entanto, ambos dependem um do outro para não caírem no abismo. Igualdade sem liberdade se converte em tirania, o que destrói a própria igualdade. E liberdade sem igualdade se transforma em opressão, matando qualquer impulso livre.

Esses dilemas, no entanto, antes de nos desanimar, deveriam nos provocar um grande entusiasmo espiritual, porque eles nos indicam um motivo de luta, um objetivo nobre, num mundo onde às vezes o desespero político parece dominar as mentes mais arrojadas. Não se trata, aliás, apenas de democracia, mas de alguma coisa ainda mais nobre que ela, alguma coisa que estava por trás, que estava ao fundo, quando um grego maluco decidiu que era melhor dar poder à maioria, ao povo, do que deixá-lo para sempre nas mãos de uma aristocracia arrogante. Trata-se de justiça, de paz, de amor, de conceitos extremamente antigos, extremamente contemporâneos, capazes de serem assimilados, em toda sua grandeza, por qualquer ser humano, independente de seu grau de cultura ou riqueza.

E já que um post recente fez sucesso justamente pela citação final de um poema de Rimbaud, segue um trecho de outro, intitulado "Democracia":

Adeus ao aqui, não importa onde. Recrutas de boa vontade, teremos a filosofia feroz; ignorantes para a ciência, astutos para o conforto; arrebente-se o mundo que vai. Esta é a verdadeira marcha; avante, a caminho!
(Tradução colhida aqui).

13 comentarios

jozahfa disse...

O negócio começou hilário o suficiente para me fazer rir e expurgar um mal-humor de um dia de merda onde um cretino no trânsito, chamou meu fiat uno de carrinho ostentando um carro mais caro e arrotando vantagem tudo porque é um idiota e não valeria a pena de forma alguma ter ficado irritado com isso mas fiquei e porque em seguida tive de queimar com nitrogênio líquido umas pintas na cara o que me levou a ficar circulando por todos os lugares com aquelas marcas de queimadura e o pior de todos foi na escola onde acabei inventando para os alunos uma história de que fui picado por abelhas assassinas e muitos até acreditaram.
Mas quero dizer que sobre as coisas mais sérias que você falou tem isso de que o negócio foi inventado para a liberdade e da igualdade serem mediadas pela fraternidade que é o que impede o sujeito de se aproveitar de vantagens genéticas ou histórico-familiares para dar um chute na igualdade e achar que é melhor que os outros.
É isso e obrigado pelo riso que me lembrou uma cena do spike lee quando o personagem não me lembro quem foi colocado contra a vontade com um cartaz onde se lia qualquer coisa como odeio crioulos e isso no coração de um bairro de negros em nova york.
Um abraço!

Anônimo disse...

O povo mesmo gosta de luxo, o tal janota nunca pôs os pés nestas regiões caóticas
De uma outra forma o Joãozinho Trinta foi no ponto
http://fantastico.globo.com/platb/fantastico30anosatras/2010/01/27/joaozinho-trinta-quem-gosta-de-miseria-e-intelectual-pobre-gosta-de-luxo/


spin

wilson cunha junior disse...

Sempre que o Miguel some por uns tempos, quando volta, volta sempre com um texto excelente. Nada como se afastar dos homens por um tempo...

Anônimo disse...

Wilson, estou tendo dificuldade com relação ao uso do facebook para mobilização aqui onde moramos, nossa base. O que fazer para aumentar contatos de Goiânia? Ao tentar enviar solicitação para pessoas de Goiânia a partir do FB de amigos o FB me alertou que eu só poderia convidar pessoas realmente conhecidas. Se eu já não gostava do FB agora então é que não gosto mesmo, tudo muito travado, a gente não pode se mexer,nem mesmo o twitter entrou na minha cabeça, há falta de plasticidade. Tenho FB, twitter e orkut só prá dizer que tenho. Miguel desculpe-me ter entrado com este assunto que não tem a ver com o poste

spin

Anônimo disse...

A Sofística

Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve um triunfo político da democracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que o domínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão, compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, os mestres de eloqüência. Os sofistas, sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se mestres de eloqüência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira de consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal, desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura, uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e empíricos e, portanto, superficial.

Leia mais: http://www.mundodosfilosofos.com.br/sofistas.htm#ixzz1YauQpPmL

Ana Maria

Rogério da Silva Santos disse...

A blogosfera está pipocando de bons textos
http://www.rodrigovianna.com.br/vasto-mundo/dilma-na-onu-sem-complexo-de-vira-lata.html

Tem o Eduardo Guimarães, PJa, muitos

Rogério disse...

A filosofia grega, a contribuição da Grécia à humanidade, é insuperável

Rogério

Anônimo disse...

Nunca vi um blogspot com grande número de comentários. Deve ter algum motivo, o formato. O designer da caixa de comentários complica na hora de responder algum comentário. Será que o blogger não sabe disso.

Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas.
Federico Lorca

Rogério

Anônimo disse...

Rogério, mesmo blogs como o do Altamiro Borges, com mais de 3.000 seguidores, vc não vê um comentário sequer
Será que o blogger sabe disso
Deveriam mudar totalmente o blog no que diz respeito aos comentários, é muito burocrático, não há interatividade entre comentarista, alguma coisa acontece

Manoel

Marco disse...

Companheiro,
Texto sobre a greve dos bancários:
http://oantipig.blogspot.com/2011/09/o-que-lenin-diria.html
Ajude a divulgar!
Saudações

Anônimo disse...

...............E o Merval na ABL. Que injustiça!!!

Anônimo disse...

AnÔnimo das 6:54 aqui o Merval e o Sarney com o Zé Agripino ao fundo. Que casa de espiritos iluminados heim

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/abl-e-os-novos-donatarios

Rogério Floripa disse...

Que delícia.




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